‘Rifa’ para ajudar PRFs indiciados pela Chacina de Varginha tem sinais de irregularidades

Em grupos, mensagem pede participação em sorteio para custear despesas judiciais de policiais, mas site informa que recursos irão 100% para associação beneficente que, procurada pela Ponte, diz desconhecer campanha

Captura de tela do site em que se oferece a compra título de capitalização para um sorteio com imagem de viatura que remete às cores da Polícia Rodoviária Federal e descrição “Rodoviária de Prêmios” hospedado em site da empresa Dahora | Imagem: Reprodução

Entre grupos de policiais, circulou uma mensagem pedindo “apoio” a partir da compra de uma rifa para custear as despesas judiciais a 23 policiais rodoviários federais que foram indiciados, em fevereiro, junto a outros 16 policiais militares por crimes de homicídio qualificado, tortura e fraude processual pela ação que deixou 26 mortos em Varginha (MG), em 2021.

O texto diz o seguinte: “Os policiais rodoviários federais que atuaram contra os criminosos do Novo Cangaço, na cidade de Varginha/MG, em Outubro de 2021, precisam da sua ajuda. Eles estão sendo injustamente culpabilizados por defenderem a sociedade. Participe comprando a rifa e propiciando condições financeiras para a defesa dos nossos heróis! Ao adquirir uma das cotas da rifa você concorre a um prêmio de R$ 85.000,00, já livre de impostos“. A mensagem foi enviada por um ex-diretor geral da PRF.

No link que acompanha a mensagem, que é hospedado por uma empresa denominada Da Hora, é apresentado um flyer com o título “Rodoviária de Prêmios”, seguida de imagens de duas viaturas que remetem as cores azul e amarelo da Polícia Rodoviária Federal (PRF) com a indicação de prêmio de R$ 85 mil. Na descrição do site, é informado que o valor dado pelo participante irá “100%” para a Casa Ronald McDonald, que atua no atendimento de crianças e adolescentes com câncer. Não há nenhuma menção sobre o apoio a custas processuais para policiais.

Mensagem de ex-diretor geral da PRF | Foto: Reprodução

Institucionalmente, a Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) também compartilhou o link em apoio e fez uma mensagem padrão de “perguntas e respostas”. Nela, há menção de que 78% do valor arrecadado “irá para os policiais” e 22% para as outras organizações, sendo 5% para a Casa Ronald McDonald, 5% para a Capemisa, que é a seguradora responsável, 5% para o “sistema operacional”, 4% para o site Da Hora e 3% para custos financeiros.

Não se trata de uma rifa, mas de um sorteio a partir da compra de títulos de capitalização pela modalidade filantropia premiável. Uma rifa apenas pode premiar com objetos ou serviços e quem participa não pode ter o dinheiro de volta. Já o título de capitalização é diferente. Primeiro porque pode premiar em dinheiro e, em segundo lugar, porque é como se fosse um investimento. Dependendo da modalidade desse título, a pessoa que pagou pode obter um total ou parcialmente o valor de volta sem contar o prêmio.

A Ponte consultou advogados sobre o assunto, que explicaram que os títulos de capitalização são regulados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), que é ligado ao Ministério da Fazenda. Há uma portaria de 2022 que regulamenta todas as modalidades de aquisição de título de capitalização, a de número 656.

No caso da modalidade de filantropia premiável significa que esse valor de “resgate”, que é o que a pessoa receberia de volta, é destinado a uma associação beneficente. Por exemplo, o participante compra o título dessa modalidade no valor de R$ 2 para concorrer ao prêmio de R$ 85 mil e o valor de resgate é de 100%. Se ele ganhar ou não o prêmio, esses R$ 2 vão ser revertidos totalmente para a associação beneficente.

Mensagens do presidente da FenaPRF, Tacio Melo, à Ponte sobre “perguntas e respostas” a respeito do apoio ao sorteio em que há indicação de 78% do recurso arrecadado para defesa de policiais | Imagem: reprodução

Em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.332 voltada a compra de títulos de capitalização para entidades beneficentes. O artigo 4º é explícito de que “recursos obtidos por intermédio de campanhas das entidades beneficentes de assistência social com títulos de capitalização deverão ser utilizados, exclusivamente, nas atividades das entidades, admitindo-se apenas a realização de despesas com divulgação e promoção das campanhas de arrecadação”.

A portaria 656, da Susep, também aponta, no artigo 52, que a modalidade de filantropia premiável deve informar em destaque ao participante que o valor vai ser cedido a uma entidade beneficente e todos os dados relativos a ela devem ser divulgados. A instituição, para ser considerada apta a participar, tem que ser obrigatoriamente constituída no mínimo há cinco anos e possuir a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas), que é concedida pelo governo federal.

Ou seja, se a Casa Ronald McDonald, que tem essas certificações, é agraciada com os recursos desse sorteio, ela só pode investir em ações voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes com câncer.

Captura de tela do site do sorteio com grifo em amarelo feito pela reportagem sobre a indicação de que o recurso iria 100% para a Casa Ronald McDonald | Imagem: reprodução

Procurada pela Ponte, a assessoria da Casa Ronald McDonald disse que “não tem conhecimento sobre esta ação para angariar recursos financeiros para os policiais rodoviários de Varginha (MG) e, tampouco, tem qualquer vínculo ou relação com a classe”.

A entidade disse que a Capemisa, seguradora cujo logo aparece no site do sorteio, “é uma das apoiadoras da instituição e destina recursos por meio de títulos de capitalização da modalidade Filantropia Premiável. A Casa Ronald RJ, neste caso, é uma beneficiada da modalidade, e portanto, sem qualquer responsabilidade em sua realização”.

A Capemisa, por meio de nota, também declarou que “desconhece qualquer ação para angariar fundos a policiais e não tem nenhum envolvimento com entidades deste tipo”. A assessoria relatou que “seus contratos com a empresa de promoção Da Hora e com a Casa Ronald McDonalds (beneficiária dos títulos de Capitalização na modalidade de Filantropia Premiável negociados pela Da Hora) seguem todas as normas da Superintendência de Seguros Privados (Susep), órgão regulador do setor vinculado ao Ministério da Fazenda”.

A inscrição Susep que aparece no site (15414.611407/2024-58) é o registro aprovado da Capemisa para fazer a venda de título de capitalização pela modalidade filantropia premiável, com prazo de 12 meses, iniciado em 18 de março deste ano. No documento, cujo número pode ser consultado aqui, não há indicação de destinar valores da associação a outras organizações ou pessoas.

A empresa Da Hora, por e-mail respondido por uma pessoa que se identificou como Adriano Brito, confirmou a veracidade do sorteio, mas disse que os contratos são referentes apenas à Casa Ronald McDonald, à Capemisa e uma terceira empresa não informada no site como “Segundos da Sorte”, “não existindo nenhum co relação (sic) com nenhuma outra entidade ou associação”.

A reportagem insistiu sobre o site de sorteio ter título de “Rodoviária de Prêmios” e imagens de veículos que remetem à identidade visual da PRF. Brito respondeu que “isso é de escolha do influencer que faz o sorteio”. A Ponte perguntou quem seria o “influencer”, mas não houve resposta.

A Polícia Rodoviária Federal, contatada pela reportagem, declarou que não havia participação nem parceria da corporação no sorteio.

Procurado pela reportagem, o ex-PRF que compartilhou a mensagem disse que havia contrato da FenaPRF com a Casa Ronald McDonald e que o presidente da federação poderia dar mais detalhes.

Buscamos o presidente da FenaPRF, Tácio Melo, que disse, por mensagens, que não havia contrato, sendo que a instituição apenas apoia o sorteio e não integra a organização. “A FenaPRF está no apoio da divulgação como sendo pra os PRFs (sic) se usaram indevidamente o nome dos PRFs, não faremos mais a divulgação”, afirmou.

A reportagem o questionou, então, quem havia oferecido o sorteio como forma de ajuda de custo para os policiais, mas ele não respondeu e pediu para entrar em contato com as empresas citadas. Também afirmou que a organização já fez campanhas de arrecadação coletiva, as populares “vaquinhas”, dentro da legalidade.

Vale ressaltar que fazer “vaquinha” não é ilegal, mas venda de títulos de capitalização detém regramento próprio.

À Ponte, a Susep reiterou as previsões legais e declarou que “com relação às possíveis irregularidades relativas à operação relativa ao título de capitalização mencionado, esclarecemos que, via de regra, a Susep depende do recebimento de denúncias para ter conhecimento de tais fatos e, assim, adotar as medidas cabíveis para apuração no âmbito de sua esfera de competência.”

A chacina

Em 31 de outubro de 2021, uma operação conjunta da Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar de Minas Gerais e da PRF invadiu duas chácaras em Varginha onde apontaram que estariam suspeitos de planejar um assalto em massa como aconteceu em outras cidades, realizando cercos, com armas pesadas, e investiriam contra uma agência do Banco do Brasil para roubar R$ 65 milhões.

Na primeira, havia 18 pessoas. Os policiais afirmaram que vigias reagiram com armas pesadas, levando-os a abrir fogo. Na segunda chácara, mais oito morreram – também, segundo a polícia, após reagirem. Houve apreensão de armas, coletes e explosivos. Tanto os porta-vozes das corporações como o Ministério da Justiça e o governador Romeu Zema (Novo) comemoram o resultado da ação.

Porém, de acordo com reportagem de fevereiro da revista piauí, por dois anos 20 peritos do Instituto Nacional de Criminalística (INC) se debruçaram sobre o cenário da chacina em Varginha e concluíram que 26 pessoas foram mortas sem chance de defesa. Tiros pelas costas, corpos levados já sem vida a hospital, 500 disparos feitos pelos policiais contra 20 tiros atribuídos aos mortos e simulação de confronto são alguns dos pontos evidenciados pelos peritos.

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A Polícia Federal indiciou, no mesmo mês, 39 policiais pela participação em crimes de homicídio qualificado, tortura e fraude processual. A Corregedoria-geral da PRF determinou o afastamento de 23 policiais das atividades nas ruas por entender que existem “indícios de possíveis excessos na ação policial”.

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