‘Banho de sangue’ em Varginha (MG) não vai coibir novos assaltos, diz pesquisadora

Para Jânia Perla Aquino, da UFC, operação conjunta da PM e da PRF que deixou 26 mortos não deve ser considerada modelo e quadrilhas tendem a se sofisticar em investidas com falta de investigação

Policiais invadiram duas chácaras em Varginha, no Sul de Minas Gerais, e alegaram troca de tiros. | Foto: Divulgação/PMMG

A ação das polícias Militar e Rodoviária Federal de Minas Gerais que deixou 26 mortos em Varginha não vai amedrontar quadrilhas que pensem em realizar assaltos no modelo que aterrorizou moradores de Araçatuba (SP), em agosto. Pelo contrário, vai fazer com que os assaltantes estudem e planejem melhor como farão os ataques e também prejudica a investigação para estabelecer conexões com outros roubos. Essa é a avaliação da antropóloga, pesquisadora e coordenadora científica do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC) Jânia Perla Diógenes Aquino, que estuda ações de domínios de cidades, apelidadas de forma imprópria de “novo cangaço”. “Eu não acredito que haverá impacto porque são quadrilhas interestaduais e há aí um vasto rol de pessoas que podem ser chamadas para um outro assalto como esse”, analisa.

No domingo (31/10), operação conjunta do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) da PMMG e da PRF invadiu duas chácaras em Varginha onde apontaram que estariam suspeitos de planejar um assalto em massa como aconteceu em outras cidades, realizando cercos, com armas pesadas, e investiriam contra uma agência do Banco do Brasil para roubar R$ 65 milhões. Na primeira, havia 18 pessoas. Os policiais afirmaram que vigias reagiram com armas pesadas, levando-os a abrir fogo. Na segunda chácara, mais oito morreram – também, segundo a polícia, após reagirem. Houve apreensão de armas, coletes e explosivos. Tanto os porta-vozes das corporações como o Ministério da Justiça e o governador Romeu Zema (Novo) comemoram o resultado da ação.

Oficialmente, a Polícia Civil de Minas Gerais, que não participou da ação, identificou 10 pessoas. O UOL apontou ainda mais 10: Thalles Augusto Silva, Julio Cesar de Lira, Dirceu Martins Netto, Itallo Dias Alves, Gleisson Fernando da Silva Morais, Arthur Fernando Ferreira Rodrigues, Francinaldo Araújo da Silva, Raphael Gonzaga Silva, José Rodrigo Dama Alves, Gilberto de Jesus Dias, Evando José Pimenta Júnior, Luiz André Felisbino, Isaque Xavier Ribeiro, Romerito Araújo Martins, Zaqueu Xavier Ribeiro, Eduardo Pereira Alves, José Filho de Jesus Silva Nepomuceno, Nunis Azevedo Nascimento, Gerônimo da Silva Sousa Filho e Adriano Garcia.

Em entrevista à Ponte, a pesquisadora considera que “uma ação que deixa como rastro um cemitério de 26 pessoas não deve ser comemorada nem deve ser considerada modelo”. A seguir, ela comenta sobre a dinâmica da tática de domínio de cidades adotadas por quadrilhas e as respostas que vêm sendo e deveriam ser dadas pelas forças de segurança pública.

Ponte – Como a senhora classifica a ação da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal de Minas Gerais que deixou 26 mortos?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Sabe-se muito pouco sobre a ação. Com base nas informações que se tornaram públicas, uma complicação inicial é que você não tem a possibilidade de ter nenhuma versão ou narrativa do que seria a quadrilha porque ninguém ficou vivo pra contar a história. A polícia parece que está agora no processo de identificação das pessoas. O que é dito, pelo que eu vi na TV pela pessoa que coordenou a operação, é que houve reação. Como a gente sabe, é [a versão] recorrente nesse tipo de ação. Eu acredito que nem todas as pessoas que estavam no sítio eram habilidosas ou treinadas para o combate armado porque sempre há, nessas ações, pessoas que se encarregam do serviço doméstico, para providenciar utensílios das quadrilhas. E é possível, sobretudo no grupo local de Varginha, que houvesse pessoas ali que não eram reincidentes e que não são na verdade assaltantes. Às vezes são pessoas que estão para atividade não ligada ao combate, o que é comum acontecer, e no caso até essas pessoas morreram e certamente vão ser apresentadas como altamente perigosas.

O problema principal que eu vejo é de não ter sobrado nenhum assaltante, nenhuma pessoa envolvida para dar alguns depoimentos. Eu não entendo. Se essas pessoas estavam reagindo, como é que é que ficou tanto explosivo que não foi detonado? Então, tem muita coisa nessa ação que eu acho que deve ter uma explicação e uma investigação em cima desse confronto para a sociedade porque não pode ser considerado um padrão a ser seguindo, seja de combate ao crime, seja de prevenção ao crime, uma ação em que tem como resultado para a sociedade um cemitério de mais de duas dúzias de mortos.

Ponte – Pelo tipo de material apreendido, pode-se considerar que seria uma quadrilha de atuação típica de domínio de cidades, como aconteceu em Araçatuba (SP), e que é descrita de forma errônea como “novo cangaço”?

Jânia Perla Diógenes Aquino – A quantidade de material indica que sim, que são quadrilhas que atuam diante do ninho de cidades com agrupamento de 20, 30, 40, de dezenas de homens com armas de grosso calibre. Inclusive, além de fuzis, havia lá uma .50, que é uma arma pesada que precisa de um tripé para ser utilizada, então o armamento, as evidências apresentadas indicam que sim, [seria] uma quadrilha que invade cidades pequenas e médias e que tem um comportamento realmente de obstruir, de cercar as sedes das forças de segurança pública locais nas cidades onde atacam.

Ponte – Como a senhora avalia essa ação ter acontecido sem a participação da Polícia Civil?

Jânia Perla Diógenes Aquino – No Brasil, pelo fato de termos diferentes polícias, existe uma falta de consenso na divisão de trabalho e, às vezes, uma competição por visibilidade. A cooperação entre polícias é recomendada até por nós pesquisadores, mas causa um estranhamento não ter a participação da Polícia Civil, que eu acho que mereceria uma investigação no sentido de corroborar ou não a narrativa dos que participaram.

Ponte – Essa ação em Varginha pode impactar futuros assaltos?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Eu não acredito que haverá impacto porque são quadrilhas interestaduais e há aí um vasto rol de pessoas que podem ser chamadas para um outro assalto como esse. Existem aí dezenas de assaltantes que participam desse tipo de ação. Não é a primeira vez que você tem um banho de sangue como resultado de uma operação policial. Aconteceram dois casos que eu destacaria: Guararema, no interior de São Paulo, em 2019, e aqui no Ceará também, em 2018. Nesses dois casos, se cogitou a mesma coisa, de que teria uma intimidação, um impacto nas quadrilhas, e não ocorreu. O que pode acontecer é refinar cada vez mais, tomar mais cuidado sobre onde vai fazer um assalto, vigiar mais a ação da polícia. Ao realizar um assalto, ela [a quadrilha] acompanha toda a ação das forças de segurança pública, inclusive com drone. A Polícia Civil é tida como a polícia por excelência para investigar. Como tem havido muitos crimes com essa característica, causa estranheza não ter a Polícia Civil. Embora seja uma ação preventiva a um assalto que estava em andamento, no planejamento você perde os meses anteriores, os anos anteriores, de investigação de muitas ações com essas características no estado, porque certamente uma parte [dos que foram mortos] participou de outros assaltos. É estranho esse protagonismo da Polícia Militar.

Ponte – Como se daria esse refinamento das quadrilhas?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Essas operações de assalto são minuciosamente elaboradas, então se uma estratégia dá certo, ela tende a se repetir. Por exemplo, na estratégia do domínio de cidades, se é identificada uma fraqueza, as quadrilhas tendem a corrigir aquela fragilidade. Então, uma das possibilidades seria de repente tomar como ponto de apoio, como QG que vai articular toda ação sítios em municípios mais distantes. Tinha dois lugares [chácaras] para armazenar as armas, talvez evitar e colocar em mais lugares diferentes. Apesar de ter essa baixa de 26 pessoas, num contexto nacional, ocorrências anteriores mostram que essas ações não produzem impacto, as quadrilhas não ficam amedrontadas. O que se faz é sofisticar cada vez mais a logística, um plano que possa ficar cada vez mais detalhado, considerando cada vez mais imprevistos e [a possibilidade de] serem identificados por uma investigação policial porque, até então, são muitos poucos os casos em que você vê uma equipe se antecipar.

Realmente foi uma surpresa, mas diante do que eu tenho visto nas últimas décadas, é que cada vez que a polícia ataca uma fragilidade, as quadrilhas com capacidade de se recompor, facções que emprestam armas, se corrigem um intervalo de tempo até curto. Num contexto geral, não só dessas ações que têm sido chamadas de “novo cangaço”, mas no cenário de crimes financeiros no Brasil desde os anos 1990, o que se vê são ações que causam impacto entre si. São três variáveis: os sistemas de segurança das instituições financeiras, a atuação das forças de segurança pública e o desenvolvimento tecnológico, no sentido de armamento, veículos, comunicação, outros elementos de logística que possam contribuir para que essas ações articuladas sejam feitas.

Ponte – Como assim?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Quando as instituições financeiras investem em sistemas de segurança cada vez mais modernos, cada vez mais sofisticados que possibilitam cada vez menos a atuação das quadrilhas, elas vão ficar tentando mecanismos para quebrar esse sistema de segurança, de contorná-lo, e, ao mesmo tempo, a intenção de migrar os grandes assaltos para as cidades pequenas e médias também é [consequência de] todo um aparato que se tem nas capitais. A partir do momento que agora se isso for se tornar um padrão recorrente, não só em Minas, mas em outros estados, certamente vai se ter muito mais cuidado nos momentos anteriores ao assalto. O que tem de mais recorrente é as quadrilhas que estão investindo no que acontece depois do momento da execução, do fator surpresa, da chegada súbita no município, e no momento posterior, como se pulverizar, não fugir com várias pessoas juntas. Se identificar a ação sendo planejada e atacar o ponto de apoio da quadrilha, certamente nas próximas ocorrências nós vamos observar mais cuidado, mais discrição do que já há de grupos de assaltantes na organização desses assaltos. Outro ponto que merece atenção é que, de certa forma, a incidência desses assaltos como aconteceu em Criciúma (SC), vêm de pontos fracos da estratégia do sistema financeiro nacional, sobretudo o Banco do Brasil, que elege algumas sedes perto de cidades médias com construções subterrâneas onde é armazenada grande quantidade de dinheiro que é distribuído para agências menores, consideradas mais vulneráveis. Essa articulação foi uma tentativa de diminuir assaltos nas agências maiores, que recebe dinheiro alguns dias antes, e daí tinha muito assalto pulverizado no início do mês.

É uma estratégia em que se tem cofres subterrâneos fortificados, poucas pessoas sabem da informação, que é secreta, mas as quadrilhas estão com capacidade elevada de acessar informações secretas não conhecidas pela sociedade. Para cooptar, seja pessoas de dentro da própria instituição, seja de empresas que prestam serviço de segurança ou se transporte, a capilaridade de afetar informações ultra sigilosas é uma das característica dessas quadrilhas. Esses focos de Varginha, Araçatuba, Criciúma não são escolhas aleatórias ou com dados mais gerais de cidades que estão movimentando mais dinheiro. Não. Isso parte de informações secretas, estratégicas do sistema financeiro nacional, que [as quadrilhas] conhecem muito antes de todos. Daí as polícias das cidades vizinhas da sede que armazena os recursos financeiros passaram a ficar em alerta, a procurar indícios de assaltos a serem programados. O fato de as agências acumularem muitos valores em cédulas, armazenarem muitas quantias líquidas, atrai as quadrilhas.

Ponte – O governador de Minas Gerais Romeu Zema comemorou a ação da PM e da PRF. Como você avalia a declaração dele?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Eu acho equivocado. Eu acho que uma ação, como eu já te falei, que deixa como rastro um cemitério de 26 pessoas não deve ser comemorada nem deve ser considerada modelo. Nem do ponto de vista estratégico nem do ponto de vista ético. Infelizmente, aponta um movimento nas forças de segurança pública, que é perigoso e preocupante no Brasil, que é a lógica do extermínio e dessa guerra ilegal em que polícia e bandido subvertem o Estado Democrático de Direito, disseminando para outras modalidades de crime, porque essa conduta exterminadora que se via nessas ações que têm como alvo regiões de favelas e bairros de baixa renda no Rio de Janeiro se caracteriza exatamente por isso. Conta-se com uma grande assimetria de efetivo e de armas num molde de guerra ilegal, porque se tem na Constituição e nos regulamentos dos estados que a polícia existe para também proteger a sociedade e assegurar direitos. Em casos excepcionais se age com letalidade, mas a letalidade não deve ser um padrão, não deve ser comemorada nem ser recomendada. Num país democrático, que procura ser visto no mundo como civilizado, esse padrão de operação que tem como marco dezenas de mortes não deve ser recomendado.

Ponte – O que deveria ser feito para coibir esses assaltos que aterrorizam as pessoas que vivem nessas cidades de médio porte?

Jânia Perla Diógenes Aquino – Investigação em que a situação do confronto seja excepcional, ainda mais a letalidade. Das forças de segurança pública se esperam inteligência e investigação ao mesmo tempo em que as instituições financeiras continuem investindo em segurança e evitem acumular quantias elevadas no mesmo lugar, por mais seguro que seja, e incentivar formas de transações financeiras sem o uso de cédulas. Havendo altas quantias acumuladas sempre vai haver tentativas de assalto das quadrilhas. Também, indiretamente, o combate ao tráfico de armas pode ter um impacto positivo.

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Uma prevenção não baseada em extermínio porque a partir do momento em que não se deixa ninguém vivo para expor sua narrativa, por mais que se diga que é legal, sempre ficará uma desconfiança. Por que a sociedade não pode ouvir o outro lado da narrativa? O que o Brasil precisa entender, o que parte dos profissionais de segurança pública precisam entender, é que o nosso sistema de punição é a prisão. Por mais que seja falho, por mais que os crimes sejam elaborados e articulados hoje nas prisões, que não recupera os apenados, no entanto é a prisão o sistema de punição prevista na Constituição e em lei, e não pena de morte.

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