Cabeleireiro foi detido no dia 10 de março acusado de ter participado de um roubo de uma moto em Guarulhos (SP), em novembro de 2021; especialista aponta fragilidade do reconhecimento
“A gente está aqui falando com você só por Deus. Porque um pai e uma mãe em uma situação dessa, tendo um filho bom, educado, atencioso, que todo mundo gosta dele e pretende ajudar, é só Deus que está deixando a gente de pé, que está dando essa calma”. O desabafo é do motorista de caminhão Eduardo de Oliveira Leite, 53, que há mais de 20 dias tenta provar a inocência do seu filho, o estudante Rodrigo Soares Leite de 19 anos.
Na manhã do último dia 10 de março, o jovem estava trabalhando na barbearia no Jardim São Domingos, em Guarulhos, na Grande São Paulo, quando policiais civis chegaram e o informaram sobre um mandado de prisão expedido contra ele. No momento da ação, Leandro Senra de Freitas, 23, estava no salão para cortar o cabelo e acabou acompanhando o cabeleireiro até a delegacia. À Ponte, ele conta que os policiais também levaram a moto de Rodrigo e que os jovens não sabiam que se tratava de uma acusação de um roubo que aconteceu no dia 12 de novembro do ano passado.
Segundo o boletim de ocorrência registrado no 4º DP de Guarulhos e assinado pelo delegado Vitor Moreira Libano, a vítima relatou que dirigia sua moto no bairro do Pimentas, em Guarulhos, com a sua esposa na garupa, quando foi obrigado a parar por volta das 23h20 ao ser abordado por dois assaltantes que estavam de capacete em uma outra moto e um deles armado. Depois de fazerem ameaças, os criminosos roubaram um celular modelo Samsung, cartões bancários e a moto vermelha modelo Y/Yamaha, que ainda estava sem placa.
Neste mesmo dia, a vítima buscou imagens de câmera de segurança onde havia estacionado a moto cinco horas antes do roubo, em frente a uma igreja que frequenta, e apontou que, nas filmagens, dois indivíduos passaram “olhando” o veículo. Segundo a investigação policial, dias depois, a vítima informou que teria visto os autores do roubo dentro de uma barbearia na mesma rua da igreja. Ao procurar pelos suspeitos nas redes sociais, a polícia mostrou a foto de Rodrigo e do adolescente à vítima, que apontou ambos como autores.
Passados quase quatro meses da ocorrência, Rodrigo e seus colegas de trabalho foram levados para a delegacia onde participaram de um reconhecimento pessoal com as vítimas. O auto de reconhecimento não detalha a descrição das características dos suspeitos, apenas que havia mais pessoas presentes e que ambas as vítimas reconheceram “sem sombra de dúvidas” o cabeleireiro. Leandro conta que naquele dia também foi colocado ao lado de outros rapazes que estavam na barbearia e foram levados ao 4º DP: “ela disse que reconheceu o Rodrigo como um dos assaltantes e chegou a falar ‘parece um pouco com ele’. E aí o policial perguntou ‘parece ou você tem certeza?’ e aí ela disse que tinha certeza”.
Apesar de ter negado envolvimento no crime, Rodrigo foi denunciado pela promotora Priscila Gomes Barcellos Borges no dia 14 de março e teve a prisão temporária convertida em preventiva pelo juiz Caio Ferraz de Camargo Lopasso, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). O advogado de defesa Raphael Oliveira aponta que o reconhecimento pessoal é o único elemento que coloca Rodrigo como autor do roubo.
“Era a noite e a própria vítima disse que ele estava de capacete, então não tem como ver o rosto, só vê os olhos da pessoa. O estado psicológico estava alterado e a lembrança pode ser fruto de uma falsa memória também. O fato de ele estar olhando a moto, no vídeo, é insuficiente para dizer que ele planejou esse crime porque olhar uma coisa parada na rua não é crime”, esclarece.
O pedido de habeas corpus protocolado pelo advogado em caráter liminar foi negado com a justificativa de não ser o momento oportuno e agora aguarda um julgamento de mérito. A audiência ainda não tem data para acontecer e o jovem segue preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) I de Guarulhos.
Álibi ignorado na investigação
Indignado com a situação do cabeleireiro, Leandro se juntou com a família de Rodrigo para ir atrás de provas e entender o que aconteceu em novembro do ano passado. Ele conta que encontrou contradições nas informações sobre o horário e o exato local que o roubo aconteceu.
“Procurando, descobrimos que tinha uma câmera de frente ao assalto e que o dono da empresa tinha a imagem e a câmera estava com uma hora adiantada. No momento do assalto ele conversou com a vítima e disse que um dos assaltantes tinha tatuagem na perna”, explica. Levando em consideração que a gravação estava adiantada em uma hora, segundo o dono do estabelecimento, o roubo teria acontecido por volta das 23h36 daquele dia, quinze minutos depois do horário registrado no BO. Além disso, a filmagem da câmera de segurança da igreja, pela qual a Ponte teve acesso, registrou o momento em que Rodrigo passa rápido pelo local e encontra com um amigo por volta das 18h49.
Segundo registros feitos pelo próprio celular, neste dia Rodrigo foi com a namorada em uma pizzaria na Rua José João Munis, no bairro do Taboão, a mais de 15 km do local do roubo que aconteceu na Rua Silvio Manfred. Momentos antes, ele trocou mensagens com a namorada e, minutos depois do horário do roubo, tirou fotos com ela.
Eduardo conta que seu filho nunca teve problemas com a polícia e que as próprias pessoas da vizinhança, que o conhecem, e o pastor da igreja frequentada pela vítima do roubo querem depor em defesa do cabeleireiro. “Eu trabalho na rua com o caminhão, tem sido dias difíceis. Um moleque de 19 anos, com a vida toda pela frente, sempre trabalhou, esforçado e agora está preso injustamente”, lamenta.
A dona de casa e manicure Josenilda Soares Leite, 51, também relata a falta que o filho tem feito e diz que não conseguiu mais atender seus clientes. “A gente sempre orientou ele a como se comportar, jamais ele ia levantar a voz para um policial. Desde quando ele nasceu ele mora aqui e todo mundo o conhece, é um menino bem trabalhador para ter o dinheiro dele e ter as coisas dele”, ressalta.
Provas frágeis
O advogado criminalista Damazio Gomes, que integra a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o processo a pedido da Ponte e apontou que não houve um reconhecimento fotográfico formal e que o reconhecimento pessoal feito na delegacia seguiu os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal.
No entanto, o advogado diz que a acusação não é suficiente para provar a participação dele por se tratar de uma prova frágil, que tem elementos que possam dificultar. “Os dois indivíduos que praticaram o crime de roubo estariam utilizando o capacetes, o que impossibilitaria de as vítimas reconhecerem Rodrigo sem sombra de dúvida conforme consta no inquérito”.
Para Damazio, Rodrigo foi apontado como suspeito pela investigação por se tratar de um jovem que mora em uma região pobre e por ter sido encontrado próximo a um dos locais que a vítima frequentava. “Dificilmente um caso como esse seria conduzido da mesma forma se tal situação tivesse acontecido em um bairro classe média alta”, critica.
A reportagem tentou em entrar em contato com a vítima do roubo, mas não obteve retorno.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP), do governo João Doria (PSDB), para questionar os procedimentos adotados no reconhecimento de Rodrigo, as provas para considerá-lo suspeito do crime e qual o andamento das investigações. A pasta encaminhou a seguinte nota como resposta:
“O caso foi investigado pelo 4ºDP de Guarulhos, relatado à Justiça em 11/03/2022 e não retornou à unidade para novas diligências. Questionamentos devem ser encaminhados ao Poder Judiciário.”
O que diz o MP
Procurado pela reportagem em relação às provas apresentadas para justificar a prisão e a denúncia de Rodrigo, o Ministério Público de São Paulo disse que “não se manifesta sobre as provas produzidas no bojo do inquérito policial”.
O que diz a Justiça
Também questionado sobre as provas apresentadas, o Tribunal de Justiça de São Paulo não retornou até a publicação desta reportagem.