‘Saiu para trabalhar’, diz companheira de morto pela Rota em Guarulhos (SP)

    Jovem explica que Vitor Nascimento Barboza Alves trabalhava como motorista do aplicativo Uber, mas ultimamente fazia viagens particulares, antes de morrer com três amigos de infância: ‘foi pura crueldade o que fizeram com eles’; PMs são afastados pela corporação

    Vitor (ao centro), em uma conversa com Nicolas (à esq.) e Leonardo (de boné) | Foto: Arquivo pessoal

    Vitor Nascimento Barboza Alves, 21 anos, e Jéssica* namoravam desde o dia 6 de junho de 2019. Haviam se conhecido há pouco tempo e logo a paixão ganhou força, sem se desgrudarem dali por diante. Era inevitável imaginarem como seria o futuro. “Filhos, casar, ter uma casa, viagens de fim de ano. Ele ia compra nossa aliança de namoro”, conta a jovem à Ponte. Os sonhos tiveram fim praticamente antes de começar. Na noite de quarta-feira (17/7), Vitor e outros três amigos morreram em uma ação da Rota.

    A tropa mais letal da Polícia Militar do Estado de São Paulo garante que o carro em que os quatro amigos estavam era usado em roubos. Com ele, teriam dado fuga da Avenida Celso Garcia, no Tatuapé, zona leste de São Paulo, até o quilômetro 214 da Rodovia Presidente Dutra, que liga a capital paulista ao Rio de Janeiro.

    Com a morte dos quatro, a tropa matou ao menos dez pessoas desde maio, além de ter atuado na terceira ação mais letal da história da PM, com 11 mortos em Guararema, em abril deste ano. A alta mortalidade da Rota é também vista na PM em São Paulo num geral: desde a posse do governador João Doria (PSDB), os números de pessoas mortas pela tropa aumentam em comparação a 2018, em que houve queda nos homicídios praticados por PMs. Vale ressaltar que a comparação anterior, no caso 2017, foi o ano mais mortal desde que a SSP (Secretaria da Segurança Pública) iniciou a contagem oficial de mortes cometias pelo estado, em 1996: foram 939 assassinatos.

    Na versão dos policiais, um pneu do carro, modelo Hyundai HB 20, estourou na rodovia. Os quatro rapazes então, ainda na versão dos PMs, saíram atirando, forçando com que o braço armado do Estado reagisse e os matasse. Participaram da ação os policiais militares Wallace Araújo da Silva, Felipe Freitas da Silva, Alex Pequeno Oliveira e o subtenente Dorival Ramos dos Santos, integrantes da Rota; Cristiano Mendes dos Santos, Fábio Oliveira Moutinho e Marcelo Henrique Espindola Leita, da Força Tática da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas); e Luiz Gustavo da Silva Barbosa, do 15º BPM.

    A tropa não percebeu um adorno no veículo, um adesivo do aplicativo de transportes Uber, ao qual Vitor estava inscrito como trabalhador terceirizado – a empresa explica em nota que ele não registrava corridas há um mês.

    Jéssica relembra que os trabalhos como motorista na vida de Vitor começaram junto com a chegada do carro que a mãe comprou a ele. As parcelas de R$ 1.280 por mês seguem em dia. Era uma forma de sobreviver enquanto cursava a faculdade de Direito. Nos últimos dias, ela conta, seu companheiro estava com trabalhos particulares, realizados por fora do aplicativo. Por isso estaria sem registros oficiais, não estaria fixo nas corridas que eram solicitadas pelos usuários.

    “Ele estava trabalhando, falou para mim que saiu para trabalhar, não estava em rolê nem nada. Os quatro são amigos de infância”, diz a companheira. Vitor, Ronei Oliveira de Souza, 20 anos, Nicolas Vieira Canda, 19 anos, e Leonardo Rocha de Carvalho estavam no carro considerado suspeito pela PM, que convocou a Rota para dar suporte à suposta fuga.

    “O Vitor fazia direito, trabalhava, estudou no Senai, não tinha passagem. Foi pura crueldade o que fizeram com ele. Eles não tinha arma e nem nada roubado no carro. O carro era dele está no nome dele e eles [policiais] falaram que era roubado. Tanto que no carro tem o adesivo da Uber”, desabafa Jéssica, que denunciou que os policiais teriam armado para cima dos jovens.

    “Por volta das 22h, 23h, o rastreador do celular dele constou na delegacia 49, duas últimas vezes. E como o celular dele está lá e ele veio aparecer morto na Dutra?”, questiona. “O laudo dele consta a morte às 21h10 e do Leonardo, e dos outros meninos só à 1h. Como dois morreram antes e eles depois, sendo que estavam todos juntos?”, prossegue.

    Vitor era agitado, brincalhão e carinhoso, conta a companheira | Foto: Arquivo pessoal

    A Ponte questionou a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo sobre o horário e local das mortes, mas a pasta explicou que apenas o Samu poderia dar tais informações. A reportagem solicitou tais informações para o Samu, que diz não poder informar tais respostas, apenas a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, que deu a mesma resposta negativa à reportagem.

    A jovem sustenta que a história apresentada pelos policiais está mal contada. No WhatsApp, recebeu uma mensagem de Vitor antes dele morrer. Foi a última conversa do casal. “Moiô, vida”. Ela não foi a única. Ronei também contatou a família, mas por áudio. “Eu fui preso, tá? Eu tô indo preso. Eu te amo muito”, disse o jovem, antes de morrer.

    Segundo Jéssica, Leonardo também fez o mesmo, mas por ligação. “Quando eles foram presos, ligaram para a mãe do Leonardo e ela ouviu ele gritando no fundo, dizendo estava sendo preso, para avisa a mãe dele”, conta a namorada de Vitor, que dispara conta a polícia. “Sim, eles foram executados e depois forjaram a cena do crime. Eles não estavam com arma nenhuma. Isso não pode ficar assim, independente de qualquer coisa a justiça teria que ser feita prendendo e não fazendo isso”, sustenta.

    A jovem relembra de Vitor como uma pessoa agitada, que era atenciosa com quem convivia, sem perder o jeito brincalhão e ao mesmo tempo carinhoso. Os dois se conheceram por causa de Leonardo, que tinha uma amiga em comum com Jéssica. Eles viram que ela e Vitor poderiam formar um casal. Acertaram.

    “Dávamos muita risada com ele, era um amor de pessoa, ajudava todo mundo no que podia, não tinha reclamações dele, nada. Uma pessoa maravilhosa”, relembra. “Não tivemos tempo de nada, de viver, se conhecer melhor. Menos de um mês isso aconteceu. Não tivemos tempo de concluir o que planejamos, não permitiram isso”, lamenta.

    Vitor foi enterrado nesta sexta-feira (19/7) no Cemitério Vila Formosa, em bairro de mesmo nome, na zona leste de São Paulo. Os familiares colocaram junto de seu corpo seus dois livros prediletos: o Código Civil Brasileiro e Leviatã, de Thomas Hobbes. Os amigos Ronei, Nicolas e Leonardo também estão enterrados no Vila Formosa, em túmulos um ao lado do outro.

    Em nota, a PM explicou que “o veículo evitou a abordagem, partindo em fuga e atirando contra os patrulheiros. A Polícia Militar esclarece que, em cumprimento a preceitos legais para apuração dos fatos, foram instaurados Inquérito Policial Militar e Inquérito Policial pela Polícia Judiciária, a Polícia Civil. Desta forma, a Polícia Militar somente irá se manifestar sobre as circunstâncias da ação policial-militar ao final das apurações”, sustenta, sem responder os questionamentos da reportagem.

    A Corregedoria da Polícia Militar está investigando o caso por envolver policiais de unidades diferentes. Os quatro PM da Rota foram afastados do serviço de rua durante o andamento da apuração.

    *Nome fictício, a pedido da entrevistada, por questões de segurança

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