Salvador chega a 100ª chacina em três anos, em meio a Carnaval com truculência da PM baiana

    Sob a gestão de Jerônimo Rodrigues (PT), Polícia Militar da Bahia é a que mais mata no país desde 2022. Em operação no bairro Fazenda Coutos na terça-feira de Carnaval (4/3), PMs mataram 12 pessoas

    Além da chacina, a PM-BA protagonizou episódios de truculência em meio à folia de Carnaval, durante os quais foi contestada por músicos sobre sua conduta | Foto: Vitor Barreto/Ascom SSP-BA

    A região metropolitana de Salvador atingiu a marca de 100 chacinas em menos de três anos na terça-feira (4/3) de Carnaval, ocasião em que a Polícia Militar da Bahia (PM-BA) matou 12 pessoas em uma operação no bairro Fazenda Coutos, na periferia da capital. Assim como nesse caso, a maior parte das ocorrências se deu em ações policiais: foram 67 chacinas cometidas pela PM, com 261 mortes.

    O levantamento foi feito pelo Instituto Fogo Cruzado, relativo ao período em que passou a atuar também na Bahia: desde julho de 2022. A entidade define chacina como qualquer evento em que ao menos três civis sejam mortos a tiros na mesma situação, independentemente da motivação — ou seja, pode ser em meio a um assalto, um confronto entre facções ou uma operação policial.

    No período sob análise, outro motivo recorrente para as chacinas foram as disputas entre grupos armados: 11 ao total, com 49 vítimas. Somados todos os casos, houve 373 pessoas mortas no período. A maior parte das chacinas se deu na capital baiana — foram 63, sendo 46 delas por ação policial.

    Política de confronto

    No caso recente em Fazenda Coutos, a ação policial se deu em meio a uma disputa territorial entre o Comando Vermelho, que pretendia invadir a comunidade, e o Bonde do Maluco, facção local também atuante no tráfico de drogas. Houve tiroteio na comunidade durante sete horas.

    O secretário de Segurança Pública da Bahia, Marcelo Werner Derschum Filho, afirmou, em entrevista coletiva à imprensa local, que os policiais teriam reagido a ataques a tiros e atuado na proteção a moradores que estariam sendo violentados. As vítimas fatais, que estariam de posse de 12 armas de fogo, teriam sido socorridas após o suposto confronto com a PM, mas não resistiram.

    O secretário baiano, que responde ao governador Jerônimo Rodrigues (PT), também disse que o setor de inteligência da pasta já monitorava previamente as pessoas mortas, o que, para especialistas ouvidos pela Ponte, evidencia uma política de segurança pública baseada no confronto.

    “A política de segurança precisa ser pensada para proteger os cidadãos, os moradores de toda a cidade. Quando 12 pessoas morrem em uma ação policial, fica claro que a prioridade é o confronto, e não a proteção”, diz Tailane Muniz, coordenadora-regional do Instituto Fogo Cruzado na Bahia. “Os moradores da região enfrentaram mais de sete horas de um intenso tiroteio, o transporte público foi suspenso, e a pergunta que fica é sobre quais são os resultados disso. O que vai mudar?”.

    ‘População no fogo cruzado’

    Cofundador da Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas, Dudu Ribeiro adota linha semelhante: “Nossa política de segurança pública tem mantido uma lógica que favorece os confrontos, que coloca a população no fogo cruzado, na linha do tiro, e que é responsável por um conjunto significativo das mortes violentas. Isso é no Brasil inteiro: estamos falando de uma crise desse modelo de segurança pública baseado em uma lógica de guerra”, diz.

    “Quando a gente tem 12 óbitos em uma operação, não é possível falar sobre eficácia e eficiência. Existe uma falha grave do ponto de vista procedimental. Inclusive, tendo a SSP afirmado que tinha informações prévias de inteligência, ainda assim, produziu 12 óbitos. Então, ou é uma falha grave, ou é uma eficiência dentro de uma política de segurança baseada na distribuição de morte”, acrescenta Dudu.

    O especialista diz ainda que essa não é uma política nova. Evidência disso é que, há cerca de dez anos, também em meio ao Carnaval, a capital baiana registrou o caso que ficou conhecido como chacina do Cabula, ocasião em que uma mesma quantidade de 12 pessoas foram mortas pela PM em uma operação.

    Polícia mais letal do país

    A violência policial na Bahia tem se intensificado ao longo dos últimos anos, conforme a Ponte mostrou em várias reportagens. Desde 2022 — ainda sob gestão Rui Costa (PT), atual ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula, e quando ultrapassou o Rio de Janeiro —, é o estado em que as polícias mais matam no país, segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), submetido ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.

    Apenas em janeiro de 2025, a Bahia teve 131 mortes decorrentes de intervenção policial, quase o dobro do segundo colocado, o Pará, com 68 registros, conforme dados mais recentes também do Sinesp. Diferentemente de outros estados, o governo baiano não faz a divulgação ativa dos óbitos cometidos por suas polícias.

    A Ponte registrou, em 2023, que metade das dez cidades mais violentas do país estão na Bahia. Naquele mesmo ano, noticiou que uma “operação vingança” feita pela gestão Jerônimo com apoio do governo Lula (PT) matou mais de 50 pessoas. Além disso, publicou que, no ano em que as forças de segurança baianas se tornaram as mais letais do país, 94% das vítimas das polícias eram negros.

    A truculência da política de segurança pública da Bahia também veio à tona em episódios deste Carnaval em que policiais militares atacaram foliões. Na quinta-feira (27/2), o vocalista do Baiana System, Russo Passapusso, precisou interromper uma apresentação do grupo quando PMs passaram a agredir o público com cassetetes — o músico pediu aplausos aos agentes, que, constragidos, interromperam a ação.

    Já na segunda-feira (3/3), o cantor Igor Kannário abandonou um trio elétrico que conduzia após policiais agredirem foliões e fazerem uso de spray de pimenta em meio à apresentação. No mesmo dia, um sargento aposentado da PM baiana foi preso ao atirar contra um folião em meio a uma multidão.

    Para Tailane Muniz, do Instituto Fogo Cruzado, os episódios no Carnaval e a chacina da PM em Fazenda Coutos não têm uma ligação direta, mas guardam, ainda assim, um contexto em comum. “A população baiana convive com dados de violência armada inaceitáveis e sabe que a polícia é ineficiente na sua proteção. E pior: a polícia é também motor dessa violência. Então, é natural que a rejeição à política de segurança apareça em manifestações públicas”, argumenta.

    Já Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra, diz que são expressões de um mesmo modelo de segurança pública falido: “Enquanto mantivermos essa lógica bélica, de repressão com resultado morte, isso só reforça no conjunto da sociedade e na tropa esse sentimento de sangue, com episódios de vingança e exposição dos agentes da segurança pública”.

    O que dizem as autoridades

    A Ponte questionou a SSP-BA sobre as circunstâncias da operação na Fazenda Coutos, se reconhece o levantamento do Instituto Fogo Cruzado e por qual razão entende ter ocorrido tal número de chacinas nesses quase três anos. Perguntou, ainda, se a pasta apurava a conduta de algum policial ou mesmo se havia afastado algum agente em razão dos episódios de truculência em meio à folia.

    Em resposta, via assessoria de imprensa, a Secretaria de Segurança Pública baiana se limitou a listar indicadores de segurança que considera positivos — como o aumento do número de apreensões de armas de fogo e a queda de mortes violentas (se descontadas as cometidas por policiais). “A SSP reitera o compromisso de ampliar o trabalho preventivo, em parceria com outras instituições de Defesa Social, buscando a manutenção da paz”, escreveu na nota.

    Leia a íntegra da nota da SSP-BA

    A Secretaria da Segurança Pública destaca que nos últimos dois anos, as mortes violentas (homicídio, latrocínio e lesão dolosa seguida de morte) apresentaram reduções de 6% (2023) e 8,2%, na Bahia. Ressalta ainda o aumento do número de apreensões de armas de fogo, enfatizando o número recorde de 86 fuzis retirados das ruas em 2024. Salienta ainda que cerca de 170 líderes de facções, envolvidos com a prática de homicídios, foram alcançados, após ações integradas de inteligência. Por fim, a SSP reitera o compromisso de ampliar o trabalho preventivo, em parceria com outras instituições de Defesa Social, buscando a manutenção da paz.

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