‘Se eu tivesse atirado, não estaria aqui’, diz vigilante que perdeu visão baleado por PM em MG

Bruno Adão, 36, também não tem mais olfato e nem audição de um dos ouvidos. Policial, que atirou com arma da corporação após confusão de trânsito, está em liberdade

O vigilante Bruno Adão, 36 anos, ficou cego e surdo após levar o tiro disparado por um policial militar | Foto: Arquivo pessoal

A dor do vigilante Bruno Adão Gomes da Silva, 36 anos, não é apenas física. Ele tem a cabeça tomada por uma aflição constante. É um temor pela própria vida que domina o mais íntimo dos pensamentos. A luta de Bruno é para que a Justiça de Minas Gerais repare a agressão que quase o matou. A última coisa que Bruno viu com o olho direito foi um homem de capacete correndo armado em sua direção. O som do disparo também tirou dele a capacidade de escutar por um dos ouvidos. O atirador, um policial militar que estava fora do horário de trabalho e que usou arma da corporação, está em liberdade. 

Bruno dirigia nas proximidades da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, no dia 30 de setembro do ano passado. O plano era jogar bola com amigos. O vigilante estava sem camisa e usava uma boina e óculos escuros para proteção contra o sol. 

Perto da Toca da Raposa 1 (centro de treinamento do Cruzeiro), com o veículo parado, um motociclista tentou fazer uma ultrapassagem pela direita, próximo ao canteiro lateral da via. Quando viu o movimento, Bruno ficou apavorado. O carro que ele dirigia se moveu, tamanho foi o susto que ele levou.

Em resposta, o cabo da Polícia Militar Aldir Gonçalves Ramos passou a ameaçar Bruno – que naquele momento sequer sabia que o agressor era um PM. “Ele falou que iria dar um tiro no meio da minha cara”, diz. O vigilante viu pelo retrovisor que o homem tinha um volume na cintura e mexia no objeto que estava ali.

O PM então esperou Bruno fazer a rotatória e chutou a porta do carro. Bruno lembra que parou o veículo uns metros mais adiante, próximo de uma barraca de caldo de cana, para esfriar a cabeça. 

Ainda com o plano de ir ao jogo, ele pensou que as agressões tinham cessado. Planejou então ir até o posto da guarda municipal avisar que tinha um homem armado em uma moto antes de seguir para seu destino. “Eu imaginei que aquilo era uma briga de trânsito”, afirma.

Quando seguia o caminho em direção ao posto da GM, viu que o motociclista o aguardava no local. O PM teria entrado no meio da rua e apontado a arma para Bruno. “Para se não você morrer”, teria ameaçado o policial. Bruno parou o veículo, que passou a ser atingido pelo capacete do PM. O policial também bateu com a arma no carro de Bruno. Vídeos feitos por pessoas que estavam no local registraram a cena, que chegou a ser divulgada em reportagens à época do crime

Ao sair do carro, o PM começou a chamar Bruno de bandido. “Bandido. Você vai morrer. Eu vou chamar a Choque”, repetia o PM. O cabo também teria chamado Bruno de macaco. “Quando ele me chamou de macaco, eu não achei que era um policial nunca. Eu nunca vi um policial chamar alguém assim”, conta. 

Bruno diz que o PM tentou dar uma coronhada na boca dele, momento em que o vigilante reagiu pulando contra o homem para o desarmar. Ele conseguiu jogar a arma para longe e passou a gritar por ajuda. “Eu estava descalço, de bermuda. Ele branco por baixo de mim me chamando de ladrão. Por ser um bairro nobre, as pessoas imaginaram que eu era ladrão”, conta. 

O vigilante diz que implorou para que o PM parasse com a agressão e nega o ter agredido. Quando soltou o PM, Bruno correu pela orla da Lagoa da Pampulha. O PM subiu na moto e passou a perseguir Bruno, que correu para o posto da guarda. “Socorro, socorro. Tem um homem armado me perseguindo”, gritou.

O PM teria dito ao guarda do posto que era policial e o guarda teria mandado que Bruno botasse a mão na cabeça. “Essa foi a última imagem que tive lá de dentro da base da guarda”. O vigilante lembra só de acordar no hospital. Ele ficou cego do olho direito (perdeu o globo ocular), teve a audição reduzida no ouvido direito e não tem mais olfato. 

Demora gera angústia

A demora em uma resposta judicial deixa Bruno angustiado. “Eles fazem isso para cair no esquecimento, para cair na injustiça. Quero justiça, eu preciso de justiça”, afirma. 

O cabo Aldir foi preso em flagrante e teve a prisão convertida em preventiva após passar por audiência de custódia. Em depoimento, ele afirmou que Bruno teria fechado com o carro a motocicleta que o policial dirigia. O PM teria acreditado que a situação era um roubo e passou a perseguir o veículo. 

Ainda na versão do policial, quando Bruno parou o carro, Aldir teria se identificado como um militar. O vigilante teria então entrado em luta corporal com o PM e o desarmado. Quando foi solto, Aldir contou que correu até o posto da guarda atrás do motorista.

Desarmado, Bruno teria apontado o PM, que disse ter achado que seria atacado. Na tentativa de dar uma coronhada, ele conta ter atirado. Um vídeo da câmera de segurança mostra uma versão diferente. Na imagem, Bruno está rendido quando é atingido no rosto.

O guarda municipal Felipe Pereira Alencar, que estava na unidade quando ocorreu o crime, contou em depoimento à Polícia Civil que Bruno correu até o local alertando sobre alguém estar armado. Logo depois, o PM chegou ao local, se identificou como militar e foi na direção do vigilante. Alencar diz ter ouvido o disparo, mas não viu como a situação se deu. Contudo, vídeo que mostra a ação dentro do local, registrou que o guarda estava presente no momento do tiro (veja abaixo).

O caso foi registrado na 3ª Delegacia Noroeste, em investigação conduzida pelo delegado Thiago Pacheco, que registrou o caso como lesão corporal gravíssima (crime com pena de até oito anos). Em entrevista à Ponte, o delegado destacou que esse crime tem pena maior do que o crime de tentativa de homicídio.

A arma usada pelo policial – uma pistola 9 mm – pertence à Polícia Militar de Minas Gerais. O equipamento foi apreendido. Aldir não estava em serviço no momento em que discutiu e atirou contra Bruno.

Em dezembro, Aldir foi libertado após pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) para relaxamento da prisão. Na justificativa, o promotor Henry Wagner Vasconcelos de Castro destacou que o PM estava preso desde setembro “com evidente consubstanciação, pois, de excesso de prazo na formação probatória pré-processual”. 

A decisão foi acatada pelo juiz Roberto Oliveira Araújo Silva, que determinou medidas cautelares como proibição de que o PM se ausentasse da cidade sem autorização e o uso de tornozeleira eletrônica. 

Contudo, em janeiro deste ano, o policial Aldir foi visto em Montalvânia, no interior de Minas Gerais. Na ocasião, um advogado registrou um boletim de ocorrência contra o PM por ameaça. Imagens de uma suposta perseguição entre eles foram divulgadas pela Record TV de Minas Gerais

A Ponte questionou o TJ-MG e o MP-MG sobre o uso da tornozeleira eletrônica e também se houve pedido da PM para deslocamento até o interior. Não houve retorno sobre o questionamento. Já a Polícia Civil de Minas Gerais disse que não foi informada sobre o ocorrido. 

Apesar da conclusão do inquérito, o Ministério Público pediu diligências complementares após o fim das investigações. Até o momento, não houve denúncia contra o policial.

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Aldir segue trabalhando no setor administrativo da Polícia Militar de Minas Gerais. A Ponte procurou a defesa do PM, mas o advogado Alessandro Eugênio dos Santos informou que o cliente não iria se manifestar. 

Aflição tremenda

Bruno teve uma placa de titânio na testa e ficou 11 dias internado. Diz que não sente raiva, mas uma aflição tremenda. “Se fosse eu quem tivesse dado o tiro, eu não estaria nem mais aqui. Eles tinham me matado”, afirma. 

Bruno conseguiu voltar a trabalhar. Ele espera a conclusão do processo criminal para pedir indenização. O dinheiro será usado para colocação de uma prótese ocular.

O que dizem as autoridades

 A Ponte procurou a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e a prefeitura de Belo Horizonte, solicitando entrevistas com os agentes públicos citados no texto e com porta-vozes de cada uma das instituições. Não houve retorno de nenhum órgão quanto ao pedido. 

Em nota, a PM informou que o PM não estava em horário de serviço e que a apuração ficou a cargo da Polícia Judiciária. “Todas as providências cabíveis à PMMG foram adotadas e a instituição acompanha o caso”, completou o texto. 

Já a Polícia Civil disse em nota que o inquérito foi concluído no ano passado “dentro do prazo legal”. A Corregedoria da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte informou que instaurou uma sindicância que ainda não foi concluída. 

O TJ-MG informou que o juiz recebeu o inquérito da delegacia no último dia 14 de maio e o remeteu ao MP no dia 16 de maio. Já o MP-MG não respondeu. O espaço segue aberto.

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