Infectados por coronavírus eram 226 em abril do ano passado, mas passaram para 17.285 em agosto; para Hugo Leonardo, presidente do IDDD, organização responsável pelo estudo, desrespeito às medidas contra superlotação e até “uso compartilhado de máscaras” explicam situação
A insuficiência de medidas para conter a proliferação do coronavírus dentro do sistema prisional do país, como maneiras de se evitar a superlotação, a falta do fornecimento de água e até mesmo o compartilhamento de máscaras pelos presos, podem ter feito com que a doença disseminasse num curto período de tempo num ambiente conhecidamente insalubre, aponta um estudo divulgado nesta quinta-feira (15/4).
Dados tabulados pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) revelam que, até 30 de abril passado, 226 presos haviam sido infectados pela Covid-19. Pouco depois, em 31 de agosto, o número já havia saltado para 17.285 doentes em todo território nacional. No mesmo período foram anotadas a infecção de 505 funcionários do sistema prisional até o final de abril, e outros 8.056 doentes no final de agosto. Vale lembrar que nem todos os estados paralisaram as visitas presenciais no mesmo momento. Os números foram obtidos pelo instituto após 56 pedidos via Lei de Acesso à Informação aos estados e ao Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
O estudo é divulgado na data em que a morte do primeiro detento por Covid-19 no Brasil, no Rio de Janeiro, completa um ano. O homem, que tinha 73 anos, estava preso no Instituto Penal Cândido Mendes, unidade destinada para idosos.
Além do total de infectados, a pesquisa mostra que não há um padrão quanto ao fornecimento de água nas prisões bresileiras. Segundo o levantamento, cinco estados (Alagoas, Ceará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo), além do Distrito Federal e do sistema penitenciário federal, declararam disponibilizar água potável e para higiene durante 24 horas por dia. Na outra ponta, Sergipe, por sua vez, informou disponibilizar água por apenas três horas ao dia. Tais informações equivalem ao segundo semestre do ano passado.
O levantamento também indicou uma precarização na limpeza das unidades, algo que, de acordo com especialistas, é primordial para contar a disseminação do coronavírus. Segundo o documento do IDDD, “cinco estados (CE, PB, RN, RO e SP) informam que a frequência da sanitização dos espaços das unidades prisionais eram feitas diariamente. Em contrapartida, a frequência informada pelo Tocantins era de 15 em 15 dias e, no Maranhão, a cada 30 dias apenas”. Um trecho do documento ainda aponta que no Espírito Santo “a desinfecção/limpeza das celas e estruturas das unidades prisionais estava sendo realizada pelos próprios internos”.
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Outor ponto abordado é o uso das máscaras para evitar a propagação do vírus. Em abril, todos os estados haviam declarado ter distribuído EPI (equipamento de proteção individual) aos agentes carcerários, contendo máscaras, luvas e álcool gel. No entanto, “em cinco estados (AP, AM, GO, RJ e SC), nem todas as pessoas presas receberam máscaras”, segundo o relatório, apenas as que pertenciam ao grupo de risco ou em deslocamento dentro da unidade prisional. Meses depois os documentos obtidos pelo IDDD mostram uma reviravolta, com todos os estados declarando haver distribuição de máscaras.
Para o presidente do IDDD, Hugo Leonardo, a proliferação da doença nas cadeias pode ser explicada pelo desrespeito à Recomendação 62 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) publicada em março do ano passado, que sugeriu a magistrados de instâncias inferiores que reavaliassem a manutenção da prisão de idosos, mulheres grávidas e portadores de comorbidades, grupo considerado de risco para infecção. Leonardo ainda afirma ter ouvido relatos do “uso compartilhado de máscaras” por presos devido à baixa quantidade do material nas penitenciárias. Também em março de 2020, o próprio IDDD (Instituto de Defesa do Direito à Defesa) entrou com um pedido de liminar no STF (Supremo Tribunal Federal) solicitando a soltura de presos que não tivessem cometido crimes violentos e que estivessem enquadrados em grupos de riscos à contaminação por coronavírus em todo o país. Logo depois, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu de ofício, monocraticamente, seguir parte do pedido do IDDD e recomendou que os tribunais de todo o país libertassem presos inclusos no grupo de risco do coronavírus.
“A arquitetura e superlotação inviabilizam qualquer solução sanitária, são totalmente aquém de se evitar a contaminação. As únicas medidas que o Estado têm tomado em relação à população é aumentar as prisões e impossibilitar saídas temporárias e o banho de sol. O recrudescimento das punições é uma situação calamitosa”, diz Hugo Leonardo.
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Assim como a quantidade de doentes avançou em quatro meses, o número de mortos passou de 15 em abril para 66 em agosto, segundo o estudo chamado “Dados sobre a Covid-19 no sistema prisional no 1° e 2° quadrimestres de 2020”. Já entre os servidores, a quantidade de óbitos registrada foi de oito em abril e 62 em agosto. Os números foram obtidos pelo IDDD após pedidos via Lei de Acesso à Informação aos estados e ao Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
“A impressão que se tem é que qualquer solução que se passa pelo sistema penitenciário se restringe a aumentar a repressão, tão somente isso”, critica Hugo Leonardo. Para o presidente do IDDD, que também é advogado, o poder judiciário, por não reconhecer os direitos dos presos, também tem sua parcela de culpa nos altos números. “Essa população está largada à própria sorte. A situação viola a Constituição Federal e pactos de direitos humanos subscritos e vigentes no território nacional”, explicou.
Além dos números de infectados e mortos, a restrição ao fornecimento de água e precarização na limpeza em alguns estados, o estudo do IDDD revelou que banho de sol, momento em que os presos tendem a evitar aglomeração, não é algo padrão no país. De acordo com o instituto, “o tempo médio destinado a pátio e banho de sol chegou a uma média de três horas diárias”. O levantamento apontou que, no segundo semestre, Mato Grosso do Sul informou uma média de três a oito horas diárias, enquanto que, no Espírito Santo, entre quarenta minutos e duas horas por dia.
Profissionais de saúde
O estudo ainda apontou uma escassez de profissionais de saúde que atuam no sistema prisional brasileiro. De acordo com dados oficiais do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) tabulados pelo IDDD, o número de profissionais de saúde era de 6.601 pessoas no segundo semestre, uma média de 115 pessoas presas para serem atendidas por profissional. O Brasil possui mais de 770 mil pessoas privadas de liberdade.
“O levantamento mostra a não adoção de providências mínimas, mostra o caos que estamos vivendo e a absoluta consequência desastrosa para toda sociedade. Mostra o buraco sem fundo que estamos vivendo”, explicou Hugo Leonardo.
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Para Geraldo Sales, vice-presidente da ONG Pacto Social e Carcerário, que atua no auxílio aos familiares de presos no estado de São Paulo, mas que recebe apelos através de cartas vindas de outras unidades federativas, a situação do coronavírus nas unidade prisionais é bem pior do que se imagina, e também pontua a falta de profissionais de saúde como um dos problemas.
“O Estado só fornece dipirona, não tem médicos de plantão nas unidades, se muito tiver é um enfermeiro ou um auxiliar de enfermagem nas unidades prisionais paulistas. Um preso que pega Covid não tem como separar ele dos outros. É necessário vacinar todos os funcionários, mas todos os presos também”.
Procurada pela reportagem por ter sido citada por Sales, a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) de São Paulo informou que “as equipes das unidades prisionais são compostas por um total de 1.129 profissionais de saúde, inclusive de médicos especialistas como psiquiatras, sendo que 67 presídios têm atendimento de equipes de saúde municipais que são contratadas com recursos do Governo do Estado para atuar dentro das unidades prisionais”. A pasta também alegou que “nos casos suspeitos de Covid-19 entre os presos, o paciente é isolado e a Vigilância Epidemiológica local é contatada. Os servidores em contato com o paciente devem usar mecanismos de proteção padrão, como máscaras e luvas descartáveis. Se confirmado o diagnóstico, além de continuar seguindo os procedimentos indicados, o preso será mantido em isolamento na enfermaria durante todo o período de tratamento”.
O Depen não se pronunciou até a publicação do texto.
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