Cerca de 500 pessoas ocupam há cinco dias um terreno abandonado que pertence à USP. PM já esteve no local intimidando integrantes da ocupação; para tenente-coronel Adilson de Souza, ação da polícia pode configurar abuso de autoridade
Sem renda e sem condições de pagar o aluguel de onde viviam, cerca de 500 moradores da favela São Remo, na zona oeste de São Paulo, estão ocupando uma área ao lado da comunidade, desde a última sexta-feira (29/1). A reportagem da Ponte esteve na ocupação na noite desta terça-feira (2/2), após rumores de uma ação policial no local.
O clima que se percebe no ar é um híbrido de esperança e medo. Sonham novamente ter um teto, mas temem outra vez serem despejados. O terreno pertence à Universidade de São Paulo (USP). Segundo moradores da São Remo, está abandonado há cerca de 30 anos e já foi invadido outras vezes.
Não havia nenhuma viatura policial no local, mas a movimentação era intensa. O trabalho na ocupação seguia a todo vapor. O som que mais se ouvia por lá era o das enxadas na terra. Centenas de pessoas trabalhavam no terreno onde nasce neste momento uma nova favela.
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Um retrato cru e sem retoques do impacto imediato do fim do auxílio emergencial pago pelo Governo Federal em 2020, e também do agravamento da crise econômica na qual o país afunda, solapando principalmente as populações mais pobres e vulneráveis.
Os espaços já estavam aparentemente quase todos planejados, corredores, casas, tudo demarcado por cordões. Várias famílias já estão morando por lá, em barracos improvisados, sem água e com iluminação improvisada.
Apesar da alta de casos de Covid-19 na capital, a proteção contra o vírus por lá é zero. Além das condições precárias, ninguém usava máscaras. Nem os mais velhos.
Uma das famílias em busca de uma habitação no local é a de Antonia Pereira da Silva, 48, mãe solteira de um casal de adolescentes, uma menina de 14 e um garoto de 12. Sentada em um sofá velho, com olhar triste e aparência de cansaço, ela conta que morava há 33 anos na favela São Remo, sempre pagando aluguel.
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Antonia trabalhava com limpeza, mas está há meses sem trabalho por causa da pandemia e também por problemas de saúde. Além de uma doença cardíaca, está com depressão. “Estou tomando um monte de remédios, 15 ao todo”, conta. Ela diz que o fim do auxílio agravou ainda mais a situação. “Estou vivendo com duzentos e pouco reais [do Bolsa Família].”
Pai de uma filha de seis dias, Herbert Ferreira Junior, 23, quando soube da ocupação não teve dúvidas. Correu para o local para garantir um espaço para ele e sua família, que até o momento vive com a sogra, na São Remo. Junto com familiares, ele conta que está trabalhando no terreno há cinco dias.
“Esse quadrado aqui é o da minha família”, mostra o rapaz. “Até o fim do ano vamos estar com a nossa casa montada aqui”. Sobre uma possível ação de desocupação, ele afirma que não tem tempo para ter medo. “A vida na favela é assim, um monte de gente passando necessidade e todos se ajudando”.
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Com o aluguel atrasado e ameaçada de despejo na São Remo, Tatiana Cristina Ribeiro Lima, 31, foi convidada por um vizinho para tentar um espaço no terreno ocupado e topou no mesmo instante. “Fui na hora”, disse. Ela está morando na ocupação com seus quatro filhos, duas crianças, uma de dois anos, outra com seis, e dois adolescentes, de 12 e 15.
“Estou desempregada, recebia o auxílio, agora estou sem nada, não tenho o que fazer nem para onde ir”, lamenta Tatiana, que vive no momento com o auxílio dos amigos, que ajudam com alimentação para ela e os filhos. Ela também conta com eles para erguer seu novo teto.
USP já pediu a desocupação
Uma das lideranças da ocupação, Ivania Pedro da Silva, 34 – rouca, quase sem voz – conta que o planejamento para entrar no terreno já estava acontecendo há pelo menos uns dez dias. A história dela é semelhante a da maioria ali. “Sou mãe solteira e estou desempregada”. Ela trabalhava em um lava-rápido, mas foi demitida durante a pandemia.
Ela já está morando no terreno com o filho e assumiu parte da organização da ocupação. Uma das funções de Ivania é cadastrar as famílias que querem morar no local. “Já tem 500 pessoas aqui, acredito que sejam em torno de umas trezentas famílias, com muitas crianças e idosos.”
No último domingo (31/1) Ivania recebeu uma notificação da USP assinada pelo superintendente de prevenção e proteção da universidade, José Antonio Visitin, pedindo a desocupação em até 12 horas. A carta fala sobre medidas coercitivas com apoio da polícia, caso os ocupantes não saiam do terreno.
Segundo Ivania, a polícia esteve no local na madrugada de segunda (1/2). “Disseram que voltariam às 10h para retirar a gente, por volta de meio-dia eles retornaram, mas disseram que não fariam a desocupação porque ainda não estavam com o documento de reintegração de posse.”
Ela conta que todos os dias policiais estão passando por lá. “Ontem veio um major e me perguntou o que precisava para que houvesse uma reintegração de posse pacífica, sem violência, respondi que o que precisamos é de ajuda, estamos desempregados e com o auxílio cortado.”
Abuso de autoridade
Tudo indica que a situação caminha para uma reintegração de posse. Mas, enquanto a ordem judicial não sair, não há o que a Polícia Militar fazer no local, afirma o tenente-coronel da reserva da PM paulista, Adilson Paes de Souza.
“Não é papel da PM ficar mandando recado, nem passando de tempo em tempo avisando o que poderá acontecer”, acrescenta o tenente. Segundo ele, não cabe a ela pela própria norma da polícia fazer isso. “Quando receber a determinação judicial, deve preparar e planejar a reintegração de posse.”
Dependendo do contexto, essas visitas da PM à ocupação podem configurar abuso de autoridade, observa o tenente. Ele ressalta ainda que, após o juiz determinar a reintegração de posse, as partes devem ser convocadas para uma reunião, USP, pessoas da ocupação, prefeitura, para negociar uma saída pacífica. “Aí sim é o momento da polícia negociar, e não antes disso, informalmente no meio da rua.”
Na opinião do tenente-coronel, o judiciário deve levar em consideração a grave crise sanitária que o país enfrenta ao tomar uma decisão sobre o caso. “Espero que seja sensível ao momento grave que estamos passando, de uma pandemia recrudescida, que espere a situação se normalizar para expedir um mandado de reintegração de posse.”
“Tô na luta, levantando meu barraquinho”
Uma outra tentativa de ocupar o mesmo terreno ocorreu em 2014. “Colocaram a gente para correr”, conta Guilherme José, que esteve na ocupação e agora tenta novamente um teto no mesmo local. Ele diz que na época chegou a morar por lá com os dois filhos durante cerca de duas semanas. “Invadiram na madrugada e botaram a gente para fora.”
José hoje tem três filhos, um de dois anos, outro com três e o mais velho com seis. Ele conversou com a reportagem da Ponte com a enxada na mão. Estava trabalhando duro no espaço onde espera poder levantar sua casa, isso após ter trabalhado durante todo o dia com entregas. “Tô na luta, levantando meu barraquinho, estamos aqui desde sábado.”
No meio do terreno, uma bandeira da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade está hasteada em cima de um barraco que funciona como base da ocupação. Mas a reportagem não localizou nenhum integrante do movimento por lá na noite de terça-feira.
Local era usado para descarte de entulhos
Há alguns anos o terreno da USP chegou a ser cedido à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) para construção de moradia popular, mas o projeto nunca avançou, segundo informou o agente comunitário local, Ericsson Magnavita, 36. Ele mora desde que nasceu na São Remo e acompanhou a reportagem da Ponte até a ocupação.
O terreno ocupado está localizado entre às ruas Baltazar Rabelo, avenida São Remo e rua Pangaré, que dá acesso ao Hospital Universitário (HU) da USP. “Pelos moradores locais, lá é conhecido como ‘Buracanã’, mas na prefeitura é cadastrado como quadra 10”, detalha Magnavita.
Segundo ele, há décadas o local é usado para descarte de todo o tipo entulho, como pneus, peças de carro velho, sofás, colchão velho, madeira, resto de construção, além de lixo e mato. “Há tempos não tem função social, é um criadouro de ratos, baratas, cobras, escorpiões, aranhas, mosquitos e outros animais peçonhentos.”
Outro lado
A reportagem procurou a Universidade de São Paulo e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano.
A CDHU por meio de sua assessoria de imprensa informou que tem desenvolvido vários estudos para o a área citada, mas no momento ainda não há conclusões sobre o tema.
A USP ainda não respondeu.
ATUALIZAÇÃO: Este texto foi modificado às 11h de 4/2/2021 para incluir resposta da CDHU.
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