Manifestações pedindo fechamento do STF e do Congresso também ocorrem na capital federal. Em SP, golpistas se reúnem na Avenida Paulista e democratas ficam no Vale do Anhangabaú
Um ano antes do bicentenário da proclamação da sua independência, o Brasil decidiu disputar nas ruas o futuro da sua democracia, com a realização de um ato golpista convocado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, neste Sete de Setembro de 2021.
No seu movimento mais avançado até agora em direção a um golpe de Estado em 2022 — o golpe que Bolsonaro e seus filhos ameaçam desferir no país desde antes da eleição, em 2018, e depois por repetidas vezes ao longo de três anos de governo —, o presidente e seus aliados não só convocaram um ato contra os ministros do Supremo Tribunal Federal como buscam trazer para a disputa os policiais militares, passando por cima dos regimentos internos das corporações que proíbem a participação de PMs em atos políticos.
Protegido na Procuradoria-Geral da República por Augusto Aras, que se omitiu tantas vezes sobre os crimes cometidos por Bolsonaro que ganhou o apelido de Poste Geral da República, e na Câmara dos Deputados pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP), que deixou de analisar mais de 120 pedidos de impeachment do presidente, Jair Bolsonaro resolveu investir contra os ministros do Supremo Tribunal Federal, em especial Alexandre de Moraes, que incluiu o presidente entre os investigados no inquérito das fake news, e Luís Roberto Barroso, que contestou as mentiras contadas pelo presidente sobre fraudes nas urnas eletrônicas.
Em São Paulo, o ato golpista começou às 11h na Avenida Paulista. Apesar da promessa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) de que todos os manifestantes seriam revistados para evitar a entrada de armas, a reportagem constatou que revistas tímidas ocorriam em apenas uma das barreiras montadas pela PM. Manifestantes carregavam faixas pedindo voto impresso e a destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
Apesar dos boatos espalhados antes do protesto que previam uma ampla participação ostensiva de policiais militares da ativa no protesto, o que significaria uma violação direta das determinações do governador, do comando da corporação e do Ministério Público, essa ameaça não se concretizou. A reportagem viu poucos policiais no protesto, bem menos do que em qualquer outro realizado na Paulista, e todos trabalhando na segurança. Alguns participantes disseram que haveria PMs circulando à paisana como manifestantes, mas isso não pode ser confirmado: se havia, agiram de maneira discreta e sem se expor. Até o coronel da reserva Paulo Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, ex-comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e diretor-presidente da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), que havia prometido levar uma multidão de “veteranos” da Rota aos protestos, não apareceu e evitou fazer postagens em suas redes sociais neste dia.
Ao longo de todo o dia, porém, os manifestantes tiravam selfies e abraçavam PMs que acompanhavam o ato. O comerciante Luiz Gonzaga de Oliveira, 63 anos, e sua esposa, a professora aposentada Rose Oliveira, 56, fizeram uma faixa chamando os polícias de heróis e posaram para fotos com vários PMs na manifestação. “A gente queria agradecer a eles por terem batido de frente com Doria e vindo para a manifestação. Tinha vários policiais à paisana apoiando o ato”, disse Luiz. “Quase todos pra quem pedimos foto deixaram e ficaram felizes. Só teve um comandante do Choque que disse que só podia tirar foto com bandeira do Brasil”, completa Rose.
Em entrevista coletiva realizada no Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) nesta terça (7), o governador João Doria (PSDB) disse que “fotos não representam apoio [tiradas com PMs], nem contra, nem a favor. Já vi em manifestações contrárias ao presidente Bolsonaro pessoas tirando fotografias ao lado de políciais militares”. Doria também comemorou o fato de não terem sido detectados, na sua opinião, manifestações feitas por PMs da ativa: “Poderiam ter manifestações, mas não ocorreram. É uma Polícia Militar sob bom comando, sob bom treinamento, disciplinada”.
Vestindo camisetas da seleção brasileira com o nome de Neymar nas costas, com bandeiras do Brasil amarradas ao redor dos ombros ou máscaras com os rostos dos ministros do STF ostentando dentes de vampiro e a inscrição Supremo Talibã Federal, carregando cartazes bilíngues em português e inglês de Google Tradutor, quase todos brancos e a maioria acima dos 30 anos, os participantes do protesto compartilham do mesmo sentimento de que estão sendo perseguidos e tolhidos em sua liberdade individual, ainda que nem todos defendam uma ruptura institucional.
Vinda de Cosmópolis (SP), a três horas de viagem da Paulista, a dona de casa Vilma Dourado, 47 anos, conta que está cansada de ser bloqueada no Facebook ou de receber tarja no Twitter dizendo que postou informação falsa. “As operadoras dizem que posto mentiras, mas não é. Eu pesquiso minhas informações e vou direto na fonte, como o Portal da Transparência ou a Secom do governo federal. Eu não posso mais dizer o que eu penso”, afirma.
E não só ela. Vilma também reclama do bloqueio e prisão contra várias das suas fontes de informação, como o presidente do PTB, Roberto Jefferson e os blogueiros Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos. “Todas as pessoas que dizem a verdade para a gente estão sendo presas”, reclama. Ela diz que é necessário achar “alguma maneira” de “sanear o STF”, mas não apoia saídas fora da lei. “Tudo tem que funcionar em harmonia”, diz.
“Vim para defender o Brasil da tirania do STF e do Congresso”, afirma o jornalista Angelo Perez, 40 anos. “São muitos anos dessa corja passando a mão em cabeça de bandido e mandando dinheiro para países comunistas.” Ele defende que os ministros do STF sejam substitutos por “juízes de carreira, aprovados em concurso”. Quando a reportagem aponta que isso seria impossível, por contrariar a Constituição, ele responde: “Tem que ter um jeito. Tem o artigo 142 [da Constituição, que a extrema-direita usa para tentar justificar um golpe de Estado]. Se o único jeito de tirar esses bandidos é intervenção militar, que seja.”
O caseiro Orlei Bianchini, 45 anos, não usou os chifres verde e amarelos por nenhum motivo em especial. “Um amigo me trouxe da Copa e resolvi colocar”, diz. Morador do Guarujá (SP), apoia uma intervenção para substituir o STF por um tribunal militar. “Fui militar por 9 anos em Santa Catarina foi uma época boa.” Ele critica o STF por silenciar pessoas que considera jornalistas, como “aquele aleijado lá” (o blogueiro Oswaldo Eustáquio) e Paula Marisa. “Se estão calando os jornalistas, que são a voz do povo, estão calando minha voz.” O ex-militar atribui sua visão política a uma questão racial. “Sou descendente de ucraniano, alemão e italiano, comigo o comunismo não tem vez.”
A sensação de falta de liberdade também foi a que levou Marlene Aparecida Silva, 58 anos, professora de matemática e biologia, a sair de Piracicaba (SP) e ir para a Paulista. “Hoje eu tenho receio de postar qualquer coisa, porque as pessoas interpretam tudo errado”, afirma. Ela defende uma troca de todos os ministros do STF e “voto auditável”, por acreditar que as urnas eletrônicas podem ser fraudadas. Se Bolsonaro perder a eleição em 2022, ela não vai acreditar. “Como alguém que movimenta tantas pessoas pode perder uma eleição? E nem dá para saber se houve fraude, porque o voto não é auditavel”, diz. Em caso de derrota, contudo,ela não apoia que Bolsonaro permaneça no poder ou uma intervenção militar. “Isso seria contra tudo o que nós defendemos”, afirma.
Ela tem saudades da ditadura militar. “Eu tinha 12 anos na época do governo militar e era muito bom. Podia sair na rua e não tinha perigo”, conta Maria Lúcia Melaré, ajudante geral de 69 anos. Ela saiu de Sorocaba (SP) para apoiar Bolsonaro “porque ele é de direita” e ela não gosta da esquerda. O que é ser de direita? “Ser de direita é querer o bem do povo”, define.
Bruno Onias Alves trabalha numa fábrica de tecidos no Brás e foi à Paulista vender bandeiras do Brasil a R$ 10 (R$ 5 para o patrão, R$ 5 para ele). Anunciando “bandeira a 10” com uma lata de cerveja na mão, comemorava ter vendido 40 bandeiras em seis horas de trabalho sob o sol quente. Além do lucro com o bolsonarismo, ele apoia a causa. “Bolsonaro é melhor que a esquerda. Esquerda é muito roubalheira, irmão”, reclama.
No Anhangabaú, no centro da capital paulista, um ato pedindo o impeachment de Bolsonaro reúne movimentos populares, sindicatos e partidos de esquerda. “Estou aqui porque perdi a minha tia para a Covid-19 no dia 4 de fevereiro, depois de ela fazer 3 exames no público e hoje seria o aniversário dela”, diz a assistente financeira Léia de Almeida, 28 anos. “O que aquelas pessoas pensam de sociedade? O que elas pensam sobre as outras que choram? Quando você perde alguém para a Covid, depois de não conseguir nem dar um enterro digno para a pessoa. Como as pessoas podem defender um presidente que não é a favor da vida, essa luta não é sobre direita e esquerda é sobre o nosso lugar enquanto sociedade, não é possível as pessoas acharem normal um presidente que não defende a vida é insano”.
Na região do Anhangabaú, a PM agrediu a prendeu o jovem Eduardo Monteiro Lima pelo crime de desobediência. Segundo um amigo que o acompanhava, Eduardo é neuroatípico e “teve um surto por causa da violência policial com a qual chegaram reprimindo ele”. O jovem foi encaminhado ao 8º DP (Brás) e o caso está sendo acompanhando pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP). A comissão informou ainda que um segundo jovem foi detido por “porte de arma branca”, foi levado ao 2º DP (Bom Retiro) e foi liberado.
A pastora Flávia Sá, 46 anos, esteve no Anhangabaú e repreendeu em Cristo os apoiadores de Bolsonaro, questionando quem seriam os evangélicos no Braisl hoje: “O verdadeiro evangélico é aquele que acolhe, os oprimidos e todos os excluídos aqueles que propagam o ódio eles não vem de Cristo. Cristo é amor, é acolher todos os necessitados, e esse governo é hipócrita é fariseu, jamais colocaremos o nome de Cristo junto com esse governo”.
Segundo nota da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), os dois atos reuniram 140 mil pessoas no total, 125 mil na Avenida Paulista e 15 mil no Vale do Anhangabaú. A organização da manifestação pró-Bolsonaro havia previsto um público de ao menos 2 milhões de pessoas para o seu ato.
Em Brasília, na madrugada de segunda (6/9) para terça (7/9), manifestantes golpistas desobedeceram a polícia e invadirama Esplanada dos Ministérios antes do combinado, inclusive tentando remover os gradis em frente ao Congresso Nacional. Durante a manhã desta terça, manifestantes também tentaram arrancar gradis que protegiam o prédio do Itamaraty e foram dispersados com gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Também pela manhã, um jovem ciclista de camiseta vermelha que passava pelo ato foi quase linchado pelos presentes. Segundo o jornal Valor Econômico, o ato golpista na capital federal, que teve discurso presencial de Bolsonaro, contou com 5% dos manifestantes previstos pela organização.
Grito dos Excluídos abre oposição da esquerda no 7 de setembro em SP
Porém, na capital paulista, o dia começou pautado pela oposição a Bolsonaro. A fome, a falta de moradia, o desemprego e a crise sanitária são os principais motivos que levaram a Igreja Católica e ativistas de movimentos sociais do Grito dos Excluídos a se reunirem na praça da Sé, no centro de São Paulo na manhã deste 7 de setembro para se manifestarem contra a gestão atual do governo federal e por medidas assistenciais como uma renda básica cidadã.
A concentração do 27⁰ Grito dos Excluídos, que é realizado tradicionalmente na Avenida Paulista no feriado da independência do Brasil, começou às 10h da manhã com um ato ecumênico e seguirá até o final do dia com a participação dos manifestantes no protesto pelo “Fora Bolsonaro”, que ocorre no Vale do Anhangabaú, às 14h. No Anhangabaú também será realizada arrecadação de alimentos que serão doados para famílias em situação de vulnerabilidade social.
O aumento da miséria desencadeado pela crise socioeconômica do país, que conta com 14,4 milhões de desempregados, ou 14,1% da população economicamente ativa, segundo o IBGE, é criticado pelo coordenador nacional do Grito, da Rede Rua e ex-ouvidor da Defensoria Pública de SP, Alderon Costa, que ressalta as pautas do movimento. “A grande pauta é a vida, nesse momento que nós estamos vivendo, a questão da pandemia, a crise financeira, a fome, toda essa questão da morte, por conta da pandemia e da crise, a falta de moradia, o desemprego. Nesse cenário o grito quer trazer esse grito de vida em primeiro lugar, com o lema: na luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho e renda já”, aponta.
Dessa forma, a luta pela democracia e participação popular é também uma das principais demandas deste ano. “Queremos democracia, a participação popular e a nossa democracia está sendo ameaçada”. Costa também sublinha a importância da defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). “Já tinha um movimento de desmonte do SUS e graças ao SUS nós conseguimos salvar muitas vidas, apesar de muitas delas terem sido perdidas, mais de 580 mil pessoas já morreram nessa pandemia, inclusive por falta de políticas de vacinação”.
27 anos de Grito dos Excluídos
Surgido em 1994, o Grito dos Excluídos se manifesta todo dia 7 de setembro e propõe contrapor o discurso do Brasil como um país independente, explica Costa. “O Grito veio exatamente para ser uma contraposição a essas manifestações de 7 de Setembro e a ideia de que o Brasil é independente. Na verdade, a gente quer mostrar que não somos independentes, o país não rompeu com a origem colonial e escravocrata. O Brasil tem muita exclusão, é um país dependente, um país que não tem autonomia, não pensa no seu povo e esse dia 7 de setembro ter se tornado um dia de grande importância na resistência e na proposição de propostas do Brasil que queremos.”
O Grito surge a partir do processo da 2ª Semana Social Brasileira, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), cujo tema era “Brasil, alternativas e protagonistas”, inspirada na Campanha da Fraternidade de 1995, com o lema “A fraternidade e os excluídos”.
Ele lembra que o primeiro ato do Grito dos Excluídos ocorrido em 1995 teve também como tema a vida em primeiro lugar e ecoou em 170 lugares. “O primeiro grito traz um lema tão atual, como o de hoje, vida em primeiro lugar. O Grito tem essa trajetória, tem esse momento específico que é o período de 1990 que é todo sonho de um de um país mais incluído, mais igual, mais justo e que vem resgatando várias lutas que nós já tivemos pelo país.”
Mudança de local
A alteração no local onde o ato do Grito dos Excluídos iria acontecer provocou críticas de diversos movimentos sociais. O impasse aconteceu por conta da escolha de grupos bolsonaristas de ocuparem a Avenida Paulista no 7 de setembro. De início a determinação partiu do governador João Doria (PSDB) depois, a decisão foi levada até a Justiça paulista, que permitiu que os atos contra o presidente Jair Bolsonaro, incluindo o Grito dos Excluídos, ocorresse no Vale do Anhangabaú.
O coordenador nacional do Grito dos Excluídos explica que a escolha do lugar do ato é coletiva e que ocupar a Avenida Paulista era um ato simbólico. “A Paulista representa esse centro financeiro que exclui tantas pessoas pela sua concentração de renda. Era muito simbólico ali, com certeza.”
Para ele, a decisão de Doria foi autoritária, ainda que o grupo tenha resistido a essa decisão. “A proibição da caminhada lá na Paulista é um sinal dos novos tempos do nosso país, um ato autoritário do Governador, não teve diálogo, não teve consulta. É um ato autoritário do prefeito que também não se manifesta, deixou o Governador tomar as decisões por ele.”
O grupo que coordena o Grito dos Excluídos fez a resistência, pontua Costa: “a proibição do ato não foi aceita no primeiro momento, posteriormente dentro de uma negociação preferiram fazer o ato no Anhangabaú. Quero destacar o papel da coordenação do ato de que foi eminentemente uma decisão contextualizada nesse processo de luta pela democracia, é esse objetivo, o local é, mas dá pra fazer o ato em outro espaço e vamos continuar a resistência.”