Deputada estadual passou a andar com escolta após receber mensagens com ameaça de morte nas redes sociais; ‘tentativa é de tirar minha voz e tirar a voz das mulheres que esperam que eu fale por elas’, relata
Desde que a deputada estadual Andréia de Jesus (PSOL), de Minas Gerais, lamentou a morte das 26 pessoas na ação policial em Varginha, e se solidarizou com as famílias das vítimas, tem recebido ameaças de morte e ataques em suas redes sociais. Em carta aberta divulgada nesta quinta-feira (3/11), a deputada denunciou as mensagens que recebeu de ao menos 35 perfis. “Seu fim será como o de Marielle Franco”, diz um trecho fazendo referência ao caso da vereadora carioca que foi assassinada em 2018.
Andréia registrou boletim de ocorrência, assim como a Polícia Legislativa da Assembleia, que acionou a Polícia Civil e a orientou a aderir a escolta policial. A deputada também procurou a Delegacia de Crimes Cibernéticos para cobrar uma apuração e a identificação de quem proferiu os ataques.
Como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, a deputada pediu a investigação sobre a ação realizada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar de Minas Gerais e da Polícia Rodoviária Federal em uma chácara do município do Sul de Minas, na madrugada do último domingo (31/10). O presidente Jair Bolsonaro, o governador do estado, Romeu Zema, e o Ministério da Justiça e Segurança Pública elogiaram a atuação da polícia mesmo com o alto número de mortes. Na avaliação de especialistas de segurança pública, esse tipo de ação não deve servir como modelo para coibir as quadrilhas.
Em entrevista à Ponte, a deputada Andréia de Jesus também criticou a operação e comentou sobre as ameaças que tem sofrido pelo seu trabalho na Comissão de Direitos Humanos e como parlamentar. “A tentativa é de tirar minha voz e tirar a voz das mulheres que esperam que eu fale por elas. Eu estou preparada para o debate. O que não estou preparada é para essas xingamentos que não tem argumento e isso será combatido. Todas as pessoas que estão usando as redes sociais para me atacar com racismo e com ameaça a vida estão praticando crime”, denunciou.
Ponte – É a primeira vez que você recebe ameaças desse tipo?
Andréia de Jesus – Não é a primeira vez. Toda a minha militância, minha vida política, antes de ser parlamentar, eu já fui muito alvo. E como a maioria das mulheres negras, sou alvo por estar em espaço público, por defender uma classe e grupos sociais que são minoritários no poder: falo de sem-terra, de pessoas em situações de rua, mulheres que sofrem violência doméstica. Então, eu já sou voz dessa minoria política e maioria social. Mas desde a minha posse a gente percebeu que penetrar na institucionalidade também foi algo que incomodou muito. Na minha posse eu já fui atacada num ambiente que deveria ser seguro, questionando o fato de eu estar carregando a placa escrita “Rua Marielle Franco”. Houve ataques por parte de outros parlamentares questionando opiniões e falas minhas em plenário, ao ponto de falar que eu tinha que estudar, que eu falava “asneira”, sempre tentando desumanizar o discurso das mulheres e principalmente das mulheres negras. Os ataques nas redes sociais também se intensificam quando o assunto é segurança pública. Toda vez que você comenta que é lamentável a situação do sistema prisional e da segurança pública, a simples menção de solidariedade às famílias já é motivo de xingamento e ataque. Isso tem acontecido com outras autoridades, a gente vê até o STF passando por situações como essa e a gente tem cobrado inclusive por legislações que inibam e que tenham controle sobre esses perfis.
Ponte – Como você vê essa violência política crescente contra mulheres negras desde o assassinato de Marielle? Quais as motivações de fato?
Andréia de Jesus – A morte da Marielle foi o ápice. Eu acho que as mulheres vêm sofrendo várias violências, principalmente porque a gente é minoria ainda na política e em todos os estados. Surpreende a presença de mulheres no Senado, no Congresso, nas Câmaras — prefeituras são mínimas ainda com a mulheres à frente. Temos poucas mulheres na gestão pública e de política. Marielle já eleita, reconhecida, bem votada, cumprindo uma função constitucional que é a mesma que eu cumpro aqui, de presidente de Comissão de Direitos Humanos, que é histórica no nosso país desde o fim da ditadura. O papel das Comissões de Direitos Humanos é fundamental para a lisura das práticas de política pública, das ações estatais, inclusive para ter fiscalização e controle. E uma mulher ser morta ocupando uma função institucional é muito grave, porque você também abala institucionalmente esse lugar e é um abalo à democracia. Isso é alimentado por fundamentalistas que são tanto na política como também nos espaços religiosos questionando a institucionalidade e a legitimidade de figuras não esperadas nesse espaço. A gente também percebe que isso aumenta porque também há um aumento de mulheres participando da política. Estamos dividindo os votos que antes ficavam com uma elite tradicional, homens brancos. O nosso corpo aqui é para denunciar que não havia uma democracia de fato enquanto a gente não podia participar.
Ponte – De que maneira essas ameaças coíbem o seu trabalho?
Andréia de Jesus – Isso vai criando obstáculos, exige muito mais energia para cumprir tarefas que antes era cumpridas naturalmente. O protocolo das Comissões de Direitos Humanos é, sempre que houver denúncia, acionar os órgãos para apurar. Papéis protocolares ficam pesados, gera um custo maior para o próprio Estado, porque hoje para eu continuar cumprindo meu papel eu preciso de segurança, de escolta policial, carro blindado, coisas que a gente já tinha visto isto com outros parlamentares.
Ponte – E de onde você tira forças para continuar nessa luta?
Andréia de Jesus – Primeiro, tem o papel aguerrido e uma trajetória que me preparou para estar aqui. Toda uma trajetória de vida que lutou ao lado de pessoas que historicamente foram excluídas do espaço de decisão, com um aprofundamento da desigualdade, dessa incapacidade, ou impedidas de acessar políticas públicas, me fez um sujeito capaz de questionar quando o Estado se ausenta, ou quando o Estado abusa do seu poder. Eu acredito também na espiritualidade. Tem mulheres que abriram caminhos, tem uma ancestralidade. O movimento negro vem construindo, aprendendo e ensinando os camaradas, preparando outros quadros políticos para assumirem com essa segurança de que nós não viemos para manter a estrutura como estava. Nós queremos de fato alterar essa estrutura.
Ponte – Como presidente da Comissão de Direitos Humanos, como você avalia a condução da polícia na ação em Varginha?
Andréia de Jesus – O que me surpreende e que me causou estranheza foi o número de mortos. Inclusive, vários especialistas têm se posicionado de que é estranho que em um confronto haja tanto número de mortos na sociedade civil e que não houve presos. Isso dificulta continuar com as investigações, permitir que pessoas sejam interrogadas. Me causa muita angústia também ver as famílias vitimadas por essa situação. Muitas mães nos procuraram, ainda continuam mandando mensagens por redes sociais, pedindo ajuda para enterrar os filhos, ajuda para levar os corpos de volta para sua cidade. Tem muitas famílias vulneráveis por trás dependendo do estado. Então, o papel da comissão é de cobrar que o Estado preste a sua assistência social às famílias. Não cabe aqui questionar se quem morreu era culpado ou inocente. Não existe pena de morte no Brasil. A pena é privação de liberdade. As pessoas tinham direito a uma segunda chance, as famílias não terão isso e não conseguem viver seu luto. São mães que ainda estão lutando para conseguir garantir o velório, o enterro do seus filhos. É muito grave isso e nos deixa muito perplexos. Como advogada popular e abolicionista penal, tenho discutido um outro projeto de segurança pública que não seja letal nem para a polícia e nem para a sociedade civil, que o uso de arma de fogo não seja a única resposta para conflitos sociais. Estamos falando de conflitos social, de crimes patrimoniais. Compra e venda de arma em mercados legais, consumo abusivo de drogas. Estes são debates que estão no campo do patrimônio e, muitas vezes, a própria manutenção da vida não está sendo discutida. Saúde pública não está sendo discutida. Nós queremos uma segurança pública que seja democrática, que não tenha ações distintas dependendo do território e que preze pela vida.
Ponte – Qual deveria ser o papel das autoridades e dos políticos em casos como estes? Há uma naturalização desta violência?
Andréia de Jesus – Nós estamos vivendo um momento, desde 2018, em que temos um presidente que estimula a posse de armas, em que existe, sim, na opinião pública o medo, a insegurança. As pessoas estão buscando uma falsa segurança em armas, uma resposta violenta a situações sociais. Isso é muito impulsionado por autoridades políticas. Essa tensão faz inclusive com que a opinião pública acredite que “bandido bom é bandido morto”, porque a criminalidade é algo insustentável. Também tem um discurso midiático para isso. Nós precisamos contribuir com letramento de que as vidas importam acima de qualquer coisa e é preciso ter investimento em educação, saúde mental, qualidade de vida, coisas que diminuem a violência. Sempre se debate o armamento, a presença ostensiva da polícia, sendo que o papel da Polícia Militar é preventivo. Há um crescimento da violência e as respostas são excludentes, de selecionar quem vai viver e quem vai morrer. Os corpos das mulheres ainda são descartáveis, os copos negros continuam sendo também objeto de controle e de poder.
Ponte – Como podemos tornar a política um espaço seguro para mulheres, pessoas LGBT+ e outras minorias políticas? O que é preciso mudar?
Andréia de Jesus – Tem um movimento muito forte na América Latina de mulheres se organizando para não só ocupar a política, mas também para não aceitar nenhum tipo de violência. Há um processo de formação de outras mulheres, de aproximação, de autocuidado que tem servido para me acolher. Essa violência dificulta a participação das mulheres e ainda expulsa quem consegue alcançar esses lugares. Existe uma tentativa de deslegitimar a ação delas e essa ação é orquestrada. As mulheres também estão conscientes de que existe um movimento de retração e elas vão vir com mais força para além de partidos. A violência contra nós é porque somos mulheres, não porque a gente é de esquerda, de direita. Nós podemos ter opiniões diferentes, mas nós precisamos debater e é isso que eu me coloco à disposição. Eu não estou aqui por acaso, recebi um convite maior do que meu corpo, maior do que a minha vontade e essas forças vão me ajudar a cumprir essa tarefa.