Babalorixá Sidnei Nogueira: ‘Só vamos combater a intolerância religiosa com diálogo e a negação da lógica capitalista’

    Em entrevista no Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, o doutor em semiótica ainda falou sobre a falta de políticas nacionais e da promoção de uma cultura de paz

    Defensores de religiões de matriz africana e da diversidade religiosa marcham a favor da Liberdade Religiosa em São Paulo, 8/8/2018| Foto: Sérgio Silva / Ponte Jornalismo

    Em 21 de janeiro de 2000 morria Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogum, mulher negra de Salvador, líder religiosa, ativista social, voz ativa em Nova Brasília, bairro da capital baiana. A causa biológica da morte foi um infarto. A causa social foi a intolerância religiosa após ter sido exposta por uma publicação religiosa como charlatã. Seu terreiro e sua casa foram invadidos, objetos sagrados quebrados, marido agredido. A intolerância religiosa matou mãe Gilda e a data de sua morte é dia de reflexão e de combate, instituído oficialmente em 2007 como Dia de Combate à Intolerância Religiosa, crime que está previsto na lei 7716 de 1989.

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    21 anos anos após a morte da líder religiosa pouca coisa mudou. Terreiros seguem sendo invadidos, pessoas de religiões de matriz africana seguem sendo hostilizadas. No entanto, atualmente, não há um canal de abrangência nacional que receba essas denúncias. “Não temos mais o disque 100, que era um dados precisos e importantíssimos sobre os casos de intolerância religiosa no Brasil. Nós precisamos agora contar com políticas municipais, estaduais”, explica o Babalorixá e Doutor em Semiótica Sidnei Nogueira, autor do livro Intolerância Religiosa, da série Feminismos Plurais da Editora Jandaíra.

    Para marcar o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa a Ponte entrevistou o professor Nogueira. Para ele, a data “marca o quão criminosa e genocida é a intolerância religiosa. Ela subalterniza, marginaliza, desemprega, exclui. Não é um dia de celebração, é um dia de combate”.

    O que é intolerância religiosa? 

    A intolerância religiosa se dá por meio cultural, social, individual ou em grupo de um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não-hegemônicas. São práticas estas que, somadas à falta de habilidade ou a vontade de reconhecer e respeitar diferentes crenças de terceiros, podem ser consideradas crimes de ódio que ferem a liberdade e a dignidade humana. É importante entender que as religiões hegemônicas dogmáticas são naturalmente intolerantes porque se elas partem da premissa de que elas possuem legitimidade, verdade absoluta e que Deus é um só, que todos somos filhos de Deus, o deus desta religião.  Ela se coloca no centro do mundo como única possibilidade religiosa capaz de defender a moral, os bons princípios, a ética, a bondade, a solidariedade, e sabemos que isso não é verdade.  

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    Onde é possível denunciar casos de intolerância? 

    Nós tínhamos, antes do último presidente, um canal que nacional que era o Disque 100, que coletava dados de racismo, intolerância religiosa, violência contra as mulheres, feminicídio. Ele funcionou um pouco até a segunda metade de 2019 e depois foi um pouco abandonado. Com o negacionismo da existência do racismo, da intolerância religiosa, da desigualdade social, esse canal perde a força tanto institucional quanto em termos de infraestrutura por conta da perda de força do Ministério dos Direitos Humanos. Então  começa a ter canais de denúncia estaduais. No caso por exemplo de São Paulo, nós temos uma Secretaria da Justiça e Combate à Intolerância Religiosa, existe um site, uma ouvidoria para denúncia, temos delegacias especializadas em diferentes partes do Brasil, mas elas estão pulverizadas e são poucas. Existem também iniciativas municipais mas depende muito do caminho adotado pela pela gestão pública do município ou estado.

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    De quais formas a laicidade do Estado ajuda na liberdade de crença e de culto?

    Lamentavelmente, a laicidade brasileira sempre foi muito frágil. Ela é constitucional, mas nós temos assistido a violações reiteradas a nossa Carta Magna e, dentre estas, está a violação à laicidade e à liberdade de crença. Quando autoridades políticas, governamentais, começam a se servir de um discurso religioso hegemônico para captação de eleitores, nós imediatamente já temos uma intolerância religiosa manifesta a partir do Estado, que quebra imediatamente o princípio da laicidade. Eu acredito que a laicidade nunca foi efetiva no Brasil. O país não nasceu laico, nasce cristão mas, em alguma medida, a Constituição Federal tenta garantir a liberdade de crença, o que, no entanto, também não tem sido suficiente. Nós temos acompanhado reiteradamente discursos de ódio, de perseguição e de intolerância religiosa. E esses discursos na maioria das vezes estão legitimados também por aqueles que deveriam garantir a laicidade, ou seja, os políticos. A política deveria garantir a laicidade. E isso não tem acontecido. Então me parece que a laicidade garantida na Constituição Federal perdeu a sua força diante de uma estratégia política que eu chamo de proselitismo eleitoral, quer dizer, você transferir o proselitismo religioso para a política e, então você tem um proselitismo eleitoral, você acaba convertendo as pessoas não a uma religião, mas, na grande maioria, a uma falsa ideia religiosa. 

    A mídia tem estimulado a liberdade de crença ou a intolerância? De que forma?  

    A mídia não tem colaborado muito para a liberdade de crença na medida em que você tem um número bastante grande de canais de televisão que são comandados, liderados e geridos por instituições religiosas e isso não acontece na mesma proporção entre instituições religiosas diferentes. A maioria dos programas religiosos na TV são cristãos e nós sabemos que a televisão é concessão pública. Então veja: o Estado não vem garantindo a laicidade, a mídia também não garante a laicidade, nem tem criado o que eu chamo de uma cultura de paz. Para você criar uma cultura de paz, precisa dar espaço para religiões diferentes. E, ao contrário do que acontece, você deveria dar mais espaço às religiões perseguidas, demonizadas e satanizadas. Quando uma religião sataniza a outra, ela o faz estrategicamente para poder vender a salvação, a libertação, a solução dos problemas. Esse movimento é muito comum em relação às religiões de matriz africana, que não têm espaço na televisão. Quer dizer, para a gente conseguir um espaço, nós tivemos um processo de mais de dez anos e tivemos que obter um acordo para ter o direito de resposta na TV. O Estado vende o que deveria ser concessão pública para as religiões, e estas começam a usar isso para converter, e sempre nessa estratégia de bem versus mal. E quem sempre ocupa o lugar do mal são as religiões diaspóricas, as religiões de matriz africana no Brasil. A mídia não tem colaborado e, quando ela tenta fazê-lo, faz de modo estereotipado, colocando as religiões de matriz africanas no lugar de satânicas, de bruxaria negativa, no lugar de subalternidade. 

    O que é racismo religioso?

    Por que a gente tem tratado do tema racismo religioso no Brasil? Se a gente for olhar os dados do disque 100, nós vamos ver que 70% das denúncias, enquanto funcionava, até a segunda metade de 2019, eram relacionadas a perseguições à tradições de matriz africana como umbanda, candomblé, quimbanda, jurema, nagô-egba, batuque, xambá, que são as diferentes denominações consideradas negras porque, de verdade, têm uma origem diaspórica do espalhamento do negro africando escravizado pelo mundo. Nós vimos alguns casos da boca de deputados federais e de pastores dizendo que o continente africano é amaldiçoado, que as religiões de matriz africana são lugares de miseráveis, de gente desorganizada. O mesmo discurso aplicado ao racismo é o discurso aplicado às religiões negras no Brasil. Então, na verdade, o que nós temos é o racismo religioso, é o racismo estrutural agora manifestado contra uma religião negra. Porque essas religiões são negras. Você não vê o mesmo tipo de perseguição, o mesmo tipo de discurso aplicado ao judaísmo, ao budismo, nem aos ateus, que sofrem bastante perseguição, mas você não vê o mesmo nível de ódio, de subalternização, de marginalização. E é o mesmo discurso aplicado no racismo estrutural. O racismo religioso não é nada mais do que o racismo aplicado à religião que tem origem negra, africana. Por isso que nós insistimos na expressão racismo religioso.

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    Como tornar mais visível os episódios de intolerância no Brasil? 

    Nós temos feito um trabalho. Existe o Babalaô Ivanir dos Santos, Pai Rodney, existem lideranças em Salvador. Temos utilizado Instagram, Facebook, Twitter, são os canais que nós temos. A intolerância nos afeta diretamente e não temos mais o disque 100, que era um dados precisos e importantíssimos sobre os casos de intolerância religiosa no Brasil. Nós precisamos agora contar com políticas municipais, estaduais. Hoje, o que nós temos feito é contar com a mídia, existe uma mídia progressista, uma mídia dos direitos humanos e temos contado também com ativistas aqui, ali, acolá. Temos produzido na academia, temos literatura sobre o tema, então essas são as formas que nós temos utilizado no combate à intolerância religiosa. 

    Como as diferentes religiões têm se organizado para combater a intolerância? 

    O ano passado foi complicado se organizar por conta da pandemia. Mesmo assim nós conseguimos fazer alguns encontros virtuais, inclusive fora do Brasil, em faculdades como Harvard, no MIT, em Columbia. Acabamos de criar uma disciplina na Faculdade de Educação da Unicamp, um giro espistemológico antirracista, pude tratar diretamente em sala de aula com mestres e doutores sobre o racismo religioso. Penso que nós precisamos nos conhecer, nós precisamos negar esse discurso capitalista de satanização de alguma coisa com vistas a venda da salvação e de um inseticida cristão para acabar com o demônio. Qual é a lógica cristã: ela tem seus personagens míticos, tem Jesus Cristo, o demônio, os anjos. Esses personagens  não pertencem à mitologia de terreiro, à mitologia do candomblé e das tradições diaspóricas. Eles são cristãos, nós nem conhecemos, não temos nenhuma relação. Eu penso que nós precisamos conversar para dizer isso. Para dizer: ‘olha, eu não sei do que vocês estão falando’. Eles querem nos imputar a adoração de um mito que não é nosso, que não nos pertence. Exu não é o demônio, nós não temos demônios, porque o demônio pertence ao cristianismo e não somos cristãos. Então, tem uma lógica perversa atuando que é a lógica do dogma, da verdade única, da verdade absoluta. Eles querem dizer: ‘é isso que existe e mesmo que vocês digam que não adoram, é o que existe, portanto, vocês adoram’. Esse é discurso altamente etnocêntrico, imperialista, genocida, que invalida a nossa existência, os nossos conhecimentos, a nossa epistemologia. Nós somos de uma religiosidade da auto responsabilidade. Não precisamos ficar culpando uma divindade x ou y por esse ou aquele problema. Acho muito problemática essa ética cristã que você tem uma piscina batismal, um grande lixão, na qual você se batiza, e imediatamente deixa ali toda sua falta de ética, toda seus problemas morais, todos os seus crimes, as mentiras. Você sai de lá renovado e puro porque se entregou a esse personagem mítico chamado de Jesus. É muito complicada essa filosofia, mas tudo bem. Eles querem seguir? Tá bom para mim, eu não preciso que eles deixem de existir para que existamos. A nossa ética não preconiza a inexistência do outro para nossa existência, por mais complicado que eu considere esse jeito de pensar, de significar e organizar o mundo. A grande questão é que nós precisamos entender que só vamos combater a intolerância a partir do diálogo, da compreensão e de uma negação de uma lógica capitalista que está diretamente atuando no discurso das religiões hegemônicas. 

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    Qual é seu ideal de liberdade religiosa para o país?

    Meu ideal de liberdade religiosa para o país é que nós possamos existir de verdade, é que todas as religiões possam existir, apesar das diferenças. Eu sou um babalorixá, eu sou uma autoridade civilizatória de uma religião de matriz africana. A minha religião não me impede de ser devoto de Nossa Senhora de Aparecida, de ser devoto de Buda, de Hare Khrisna. Eu só não sou devoto de Jesus Cristo porque Jesus não me aceita. Ele vai querer que eu largue a minha identidade, o meu ethos, a minha religião para poder segui-lo. Eu não vou fazer isso, é como tirar parte de mim.  Nós não somos o problema, nós não perseguimos. O nosso proselitismo se dá a partir do exemplo. Então, a nossa conversão a partir do exemplo. Uma pessoa vê você como praticante de uma religião de matriz africana e admira, vê seu comportamento, seus ensinamentos e, a partir disso, ela decide se inserir nesse grupo social religioso de matriz africana. Nós não temos um paraíso, não preciso sair convertendo todo mundo para ascender ao paraíso, não se trata disso. Então meu ideal de liberdade religiosa é que possamos existir sem essa utilização perversa, criminosa das religiões pretas como demoníacas para a venda da salvação. Nós só queremos existir. 

    Qual é a importância de um dia como o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa no Brasil?

    É fundamental. As datas são importantes, são significativas, sobretudo porque não temos um espaço para esse combate, um espaço a proporção da perseguição. O espaço que nós temos é desproporcional ao nível de perseguição que sofremos. Sem contar que o dia 21 de janeiro marca um grande crime contra Mãe Gilda, que morreu depois de ser exposta como charlatã, satanista, criminosa. Esse dia marca o quão criminosa e genocida é a intolerância religiosa. Ela subalterniza, marginaliza, desemprega, exclui. Não é um dia de celebração, é um dia de combate. 

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    De que maneira as pessoas podem se engajar na luta contra a intolerância?

    Eu penso que a partir da possibilidade de você compreender a religião do outro para além da voz das autoridades religiosas. As autoridades religiosas hoje, sobretudo das religiões hegemônicas, têm um discurso bastante panfletário, que é bastante capitalista, de venda. As pessoas religiosas precisam conhecer as outras religiões a partir de um movimento de ouvir o outro. Eu tenho um projeto que se chama “Nós falaremos por nós”. Grande parte do que as pessoas sabem sobre as religiões de matriz africana é dito por quem? É dito pelas lideranças religiosas que estão muito contaminadas pela necessidade proselitista, pela necessidade de conversão de massa, pela necessidade de venda do paraíso, da salvação, da limpeza moral. Essas pessoas que se pretendem religiosas e boas cristãs, e se pretendem partícipes de uma cultura de paz, elas precisam ouvir a verdade sobre nós da nossa boca. Existe bondade, ética, solidariedade, reciprocidade, organização fora da cristandade. A cristandade não é a dona da moral, dos bons costumes, da ética e da solidariedade. As pessoas precisam começar a nos ouvir. Nós, das tradições de matriz africana, sabemos tudo sobre eles. E o que eles sabem sobre nós? Eles só sabem que nós somos satanistas, adoradores do demônio deles, que nós nem conhecemos. Eu penso que há inúmeras barreiras a serem vencidas e a principal delas é a alienação porque é disso que se trata hoje  o discurso das religiões hegemônicas que fomenta o ódio e a perseguição aos considerados desiguais. Isso não vai acabar bem, não pode ser assim e não pode ser que alguém acredite mesmo que esse discurso seja capaz de fomentar uma cultura de paz.

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