Pastora Eliad Dias afirma que o objetivo da Bancada Evangélica Popular é ser um contraponto aos religiosos conservadores: “vamos apoiar projetos de esquerda”
Uma bancada evangélica de esquerda, com ideais progressistas e sem a imposição da teologia na atuação política. É com essa promessa que a Bancada Evangélica Popular, formada por pastores e presbíteros em São Paulo, tem se apresentado e se colocado como contraponto ao atual grupo político ligado aos neopentecostais.
Uma das fundadoras do movimento, a pastora Eliad Dias dos Santos, 54 anos, explica que o primordial é entender que a fé e a política devem operar separadamente. “O projeto político da atual bancada evangélica é de poder, de impor o que acreditam. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico”, explica à Ponte.
A teóloga atua desde 1990 no centro da cidade de São Paulo, na região da Luz, com assistência a mulheres em situação de rua, prostitutas, população LGBT+ e imigrantes.
Para Eliad, os evangélicos conservadores que dão sustentação ao governo de Jair Bolsonaro são motivo de vergonha para os cristãos progressistas. “É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. [Jair] Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil”, declara.
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Em entrevista à Ponte, Eliad fala da influência dos Estados Unidos na expansão evangélica nas Américas e que a atual Bancada Evangélica alinhada ao bolsonarismo não a representa. “Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra”, afirma, citando o ministro da Educação, o pastor conservador Milton Ribeiro, como exemplo de força dos evangélicos no governo federal. A bancada ainda não anunciou candidatura própria e nem definiu apoios para as eleições deste ano.
Confira a entrevista:
Ponte – Qual o objetivo da formação de uma nova bancada evangélica?
Eliad Dias – Decidimos criar uma bancada para apoiarmos candidatos e candidatas de esquerda com demandas que acreditamos ser os valores do Reino de Deus. Trabalhamos para todos terem acesso aos direitos fundamentais e que os representantes pensem nessas questões. Se é para ter um trabalho fundamentado na Bíblia, vamos pegar o que é sério, o que é verdade, não o que essa bancada que está aí quer, de privilégios, do desmonte da sociedade, de impor uma teocracia. O Estado é laico, não tem essa história de ter um grupo específico lá. O ideal é que não tivesse uma bancada evangélica, mas, se existe, temos que fazer contraponto a essa gente.
Ponte – Como foi a reunião dessas pessoas para fundarem o grupo?
Eliad Dias – Cada um de nós que estamos na bancada temos experiência na militância política. A grande questão é que falamos que somos evangélicos e morremos de vergonha pela bancada que está aí. Não nos representa. Faço parte, com Valéria Vilhena, da EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), formado para combater a questão que igrejas criam contra as mulheres, o papel das mulheres. Por isso existimos: para dizer que tudo que ele disse é bobagem. Não pode usar a bíblia para sustentar isso. Somos do estudo da religião, advogadas, um trabalho para fazer a desconstrução dessa teologia que os homens fazem para falar que mulher tem local de maternidade, de submissão. Quando Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] estava no auge, nos lugares que me chamavam para ir eu falava que sou reverenda e não pastora. Um cara falou que ela era pastora pela personalidade. Eu estudei quatro anos, fiz vestibular para ser pastora. Tudo o que ela representa ou fala em público jamais sairia da minha boca ou de outras mulheres. Não quero ser confundida com aquela criatura.
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Ponte – Vocês têm a intenção de fazer um contraponto?
Eliad Dias – É para mostrar que existe um povo evangélico progressista, cristão de verdade, que criamos a bancada. Não temos preocupação com lucro, dinheiro e poder. Queremos um país justo, que as pessoas tenham os seus direitos respeitados, sua cidadania exercida de fato. Hoje vemos ônibus lotados e a prefeitura vai dizer que está tudo bem. Isso aumenta as pessoas contaminadas [por Covid-19]. O auxílio emergencial: o que foi feito com as pessoas da classe média alta que conseguiram de forma irregular os R$ 600? Não aconteceu nada. Além de devolver, tinha que ter punição. Não deveria ter pedido se tem salário de R$ 10 mil. Os militares que receberam, não acontece nada? Verificamos que acontece um genocídio. O vírus caiu como um milagre para esse povo, a melhor forma de exterminar indígenas para ter suas terra, o modo mais fácil de exterminar a população negra, que sabemos estar sendo exterminada.
Ponte – Como é ser evangélica enquanto existe a Bancada Evangélica, com o peso que este termo carregou pela atuação no Congresso Nacional, e em meio aos apoios ao governo de Jair Bolsonaro?
Eliad Dias – Bolsonaro é o que existe de pior. Outra coisa que brinco com meus amigos: estive fora do Brasil e falei que ia dizer que sou angolana, porque morro de vergonha de dizer que sou brasileira por conta do Bolsonaro. É esculachado em todos os lugares. Só piada. O Jair Bolsonaro é o que ficou evidente que o Brasil sempre foi. Não existe mito do brasileiro bonzinho, que é acolhedor, vamos derrubar isso. É o racismo. Bolsonaro foi eleito por uma camada populacional que se identificou com ele, fora as promessas vazias, a construção da mídia e pela Globo, por todos os órgãos contra os partidos de esquerda, especialmente o PT. As pessoas elegeram um homem que dizia que não existia corrupção, que seria diferente. Está sendo o pior de todos os governos que já tivemos. É um governo genocida, fascista e que está acabando com a população. Não é nenhum Messias e Deus jamais enviaria uma criatura daquelas para a gente. É uma praga no Brasil.
Ponte – Por que existe o apoio dos evangélicos conservadores ao atual governo?
Eliad Dias – Existe um projeto nos Estados Unidos, muito anos antes de Bolsonaro ser candidato, de que, nos próximos anos, as igrejas de lá, a direita norte-americana evangélica, colocaria nas Américas presidentes evangélicos tementes a Deus. Essas igrejas de massa recebem dinheiro de fora para abrirem templos. Bolsonaro é dinheiro e poder, podemos ver o aumento de casas desses pastores, a recuperação das igrejas. É o toma lá dá cá: te apoio, mas você me dá coisas. Essas igrejas têm pouco de igrejas, são empresas. Tem os milicianos e os evangélicos, que têm um projeto de poder por conta de dinheiro. Queremos denunciar, trabalhar para que sejam eleitos verdadeiros representantes do povo, não da milícia evangélica e de qualquer outra. Silas Malafaia, Edir Macedo… não é igreja, é empresa. Têm TV, avião, helicóptero. Uma questão de poder. O apoio dos evangélicos foi pensando nisso. Não à toa a bancada pôde indicar o ministro da Educação [Milton Ribeiro, evangélico conservador] por poder e dinheiro.
Ponte – Como avalia na prática a atuação desses religiosos na política?
Eliad Dias – Hoje não temos democracia. Em 2016, quando Dilma sofreu impeachment, foi o total rompimento da democracia. A carta à Bancada Evangélica assinada por ela [que falava de aborto e liberdade religiosa] foi quando tudo começou a ruir, ao não discutir pautas como o aborto. Se fortaleceram ali. Não só PSL, PSDB, mas o PT teve sua culpa pelo projeto de poder. Sentou com Edir Macedo, foi à inauguração do Templo de Salomão. Significa “estou coligada com você”. A partir do momento que um grupo tem como objetivo a destruição de outro, não posso me aliar. Não faz sentido eu convidar membros da Ku Kux Klan para fazer parte do meu aniversário. Tenho que evitar que a KKK chegue ao poder, não conversar como se fosse um grupo normal. Esses grupos nunca esconderam o projeto deles de poder, de impor o que eles acreditam. Esse é o problema.
Ponte – E como fazer contraponto ao que está posto no imaginário nacional do país ao ver evangélicos na política?
Eliad Dias – Não somos isso. Ninguém tem projeto de chegar e dominar o Brasil. Vamos apoiar projetos de esquerda, que no nosso entendimento são projetos condizentes com o que acreditamos enquanto reino de Deus. O que Jesus queria? Igualdade para todos. Por isso ele morreu, porque foi assassinado pelos religiosos da época. A bancada não tem projeto de poder que essa Bancada Evangélica do Congresso tem. Queremos que todas as pessoas e grupos tenham direitos e exerçam sua cidadania. Apoiar nomes de pessoas realmente comprometidas com o reino de Deus. Não queremos ser uma bancada que ganhou da outra. A teocracia não faz parte do nosso projeto, de jeito nenhum. O estado é laico. Estamos aqui, às vezes com medo de sermos a próxima Marielle, mas bora lá. Sabemos com quem estamos lidando.
Ponte – Como encara os casos recentes de violência policial?
Eliad Dias – Tenho primos que são policiais e é uma eterna briga. Nem fazemos mais Natal juntos. O meu avô já era da Força Pública, essa questão vem de lá. Eles não entendem que na PM, a escola militar, a formação, é voltada para a questão da violência. Existe um grupo no Brasil a quem você precisa dominar e exterminar, que é a população negra, a maioria do país. Não é concebível que um policial vai aprender a fazer uma prisão em curso que se tenha bonecos negros para ele aprender. É inconcebível. Minha filha é negra e a avisei: se tiver em um grupo de jovens e alguém estiver usando drogas, você vai sair. Eles, se forem brancos, serão os usuários e você será entendida como a traficante. É questão de segurança. Teve o rapaz que ficou preso por estar com 10 gramas de maconha e morreu com Covid-19. Fosse branco ele seria usuário. Como é negro, é traficante.
Ponte – O recrudescimento da ação policial vai além do discurso nacional, aparece nas falas de governadores, como João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC).
Eliad Dias – O Doria, logo que assumiu, disse que a polícia iria agir para matar, por isso ganhou [a eleição]. Um monte de gente entende que a violência vai acabar quando matarem os negros que não trabalham. Não conseguem entender esse racismo estrutural de a pessoa estar naquela situação, de termos meninos negros pedindo dinheiro no farol, de não terminarem a escola. A escola pública não os incentiva a ficar. Pelo contrário, os fazem sair. O professor não dispõe de tempo nem de olhar com carinho aos alunos. A autoestima é afetada, eles ficam no fundo, o professor não dá bola, acham que serão o futuro pagodeiro, ladrão ou jogador de futebol. E já sabe, é escadinha: não vai bem na escola, não consegue trabalho, não tem autoestima suficiente porque a sociedade diz que não serve para nada. A pessoa acredita nisso e acontece o que acontece. É estrutura, um ciclo. Teve reportagem recente do Frei Davi denunciando racismo nas igrejas. É estrutural. O Silvio [de Almeida, advogado] fez tanto sucesso no Roda Viva por conta disso. Mas o Brasil não discute, prefere matar, ir para o genocídio.
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