SP tem maior alta de letalidade policial em uma década

Duas pessoas, em média, foram mortas por dia pela polícia do governador Tarcísio de Freitas e do secretário Guilherme Derrite no ano de 2024. No total, foram 814 mortes — número 61,5% maior do que no ano anterior

Protesto ocorrido em 5/12/2024, em São Paulo, pediu o fim da violência policial e a saída do secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Em 2024, São Paulo teve a maior alta anual de letalidade policial em uma década. Foram 814 mortes, número 61,5% maior do que no ano anterior. A polícia de São Paulo, liderada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, matou, em média, duas pessoas por dia.

Ao todo, nos dois anos sob a gestão da dupla bolsonarista, 1.318 pessoas foram mortas pelo braço armado do Estado. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), divulgados na última sexta-feira (31/1) e analisados pela Ponte.

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Já no ano passado, São Paulo teve uma alta de mortes de 19%, revertendo uma tendência de queda que havia sido iniciada em 2020. O novo aumento registrado sob Tarcísio e Derrite atingiu um patamar, ainda assim, que não era verificado desde 2014 — quando o crescimento foi de 62%

Entre as vítimas da violência policial em 2024 está o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, morto aos 22 anos. Ele levou um tiro à queima-roupa disparado pelo policial militar Guilherme Augusto Macedo. O caso ocorreu no dia 20 de novembro, na Vila Mariana, zona sul da capital.

“Aquela madrugada foi o início do meu passaporte para o inferno”, conta o pai de Marco, o médico e professor da Universidade de São Paulo (USP) Júlio Navarro. O jovem iria se formar no fim deste ano e participaria de um congresso no dia seguinte ao que foi morto.

Marco Aurélio Cardenas Acosta, de 22 anos, foi baleado à queima roupa por um policial militar em novembro do ano passado | Foto: Arquivo pessoal

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) ofereceu denúncia contra os PMs em janeiro deste ano por homicídio por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima. Marcos estava desarmado. Apesar de tornar réus os agentes Guilherme e o policial Bruno Carvalho do Prado, que também participou da abordagem, a Justiça de São Paulo não determinou suas prisões.

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“São 75 dias de luta por justiça, com muito sofrimento e lágrimas”, diz Júlio. Para o pai de Marco, a polícia de São Paulo se comporta como se estivesse em um mundo distópico onde inocentes, como o jovem, são tratados como criminosos e os policiais, como heróis. “Onde estamos. Que mundo é esse daqui?”

Operações letais

O número de mortes pela polícia em 2024 é o maior desde 2019 — quando foram registradas 867 vítimas durante a gestão de João Dória, então do PSDB.

O ano de 2024 começou violento e marcado por discursos de apoio à letalidade policial vindos de Tarcísio e Derrite. A dupla já havia dado um recado à tropa quando, ao autorizar a Operação Escudo no ano anterior, não condenou nenhuma das ações que resultaram em mortes, apesar de denúncias de violações levadas inclusive à Organização das Nações Unidas (ONU).

A ação, deflagrada na Baixada Santista após a morte em serviço do soldado das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), Patrick Bastos Reis, 30, durou 40 dias e teve tom de vingança, levando o terror ao litoral. Foram 28 mortes, entre elas a do encanador Willians dos Santos Santana, 36, morto com oito tiros dentro de casa, no Guarujá, em agosto daquele ano. 

O sangue continuou sendo derramado na Baixada. A Operação Verão terminou em abril do ano passado com mais 56 mortes contabilizadas. A ação policial teve a fase mais letal e violenta após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, em fevereiro.

Entre os mortos estão os amigos de infância Leonel Andrade Santos, 36, e Jefferson Ramos Miranda, 37. Matheus Ramon Silva de Santana, 22, que tinha perdido o irmão adolescente meses antes na Operação Escudo, também morreu. O jovem levou tiros de fuzil ao ser abordado por policiais militares perto da casa em que morava com a mãe.

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Cobrado pelas mortes, o governador Tarcísio se mostrou indiferente em uma declaração feita em março. “Pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse, ao responder sobre denúncias de violações cometidas pela polícia. 

O tom de Tarcísio só mudou no fim do ano, quando a gestão foi confrontada com sucessivas denúncias de violência nas manchetes de jornais e telejornais. Um dos casos mais emblemáticos foi o de um jovem jogado de uma ponte pelo policial militar Luan Felipe Alves Pereira. A situação foi filmada por testemunhas e Tarcísio enfim veio a público dizer que estava errado quanto ao uso de câmeras corporais pelos agentes.

Durante a campanha eleitoral em 2022, Tarcísio fez críticas ao equipamento. “[…] isso representa um voto de desconfiança para o policial”, chegou a declarar. Em dezembro passado, no entanto, disse que estava “completamente errado” sobre a questão e chegou a dizer que ampliaria o programa.

O novo Ouvidor das Polícias, Mauro Caseri, vê com preocupação o aumento da letalidade policial em São Paulo. Para Mauro, os dados apontam “para uma performance contrária à vida e a uma segurança pública que proteja os cidadãos”.

“Desastrosas declarações em favor da violência e da letalidade, idas e vindas em apoio às câmeras operacionais portáteis, entre outros equívocos, acabam passando para a tropa uma percepção errônea de que seria aceitável se cometer ilegalidades. Sem uma postura clara e firme dos comandantes sobre as boas práticas policiais, não será possível reverter esse quadro a curto prazo. É o que esses números têm mostrado”, critica o Ouvidor. 

Mauro avalia que o problema da segurança pública é complexo e de caráter transversal. O ouvidor diz que o órgão trabalha em frentes como a defesa da adoção das câmeras com gravação ininterrupta e cumprimento da norma que prevê o uso progressivo da força nas abordagens.

‘Licença para matar’

Apesar da letal operação, que perdurou de dezembro de 2023 até abril do ano passado, outubro foi o mês com maior registro de mortes: 96. Para a pesquisadora do Instituto Sou da Paz, Malu Pinheiro, isso demonstra que a letalidade é uma escolha política de Tarcísio e Derrite.

“O governo do Tarcísio, sob o comando de Derrite na Secretaria da Segurança Pública, fez essa escolha política por uma atuação da polícia que seja mais baseada nos confrontos e com essa licença para matar”, avalia Malu.

Os policiais em serviço foram os que mais mataram em 2024 — 676 pessoas foram mortas durante o expediente dos agentes, momento em que o Estado tem mais controle sobre a ação dos servidores. O número é 76% maior do que o registrado no ano anterior.

Considerando apenas as mortes cometidas por policiais militares, o total de mortos foi 776 pessoas. Neste caso, os PMs também mataram mais em serviço (650 mortes). O total supera em 84% o registrado no primeiro ano de Tarcísio e Derrite e em 153% o que foi registrado antes da dupla chegar ao poder.

Para especialistas em segurança pública, um indicador que mede o uso excessivo da força é comparar homicídios dolosos e mortes praticadas pela polícia. Segundo estudos de Ignacio Cano, o ideal é que essa proporção seja de até 10%. Para Paul Chevigny índices maiores do que 7% já são considerados abusivos.

O número de homicídios dolosos caiu 3,5% no ano passado em comparação com 2023. Portanto, a proporção de mortos pelas polícias ficou em 24% em 2024 — o maior índice da série histórica [abaixo].

Crianças e adolescentes na mira

A pesquisadora também destaca que a gestão de Tarcísio é marcada pelo aumento nas mortes na infância e juventude, grupos em que as mortes tinham sido reduzidas com a implementação das câmeras nas fardas. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que o uso do equipamento salvou 68 adolescentes de serem mortos em 2019.

Em 2024, 70 dos mortos pelas polícias tinham até 18 anos. O total aumentou 48% em relação ao ano anterior e 62% em relação a 2022, quando São Paulo era governada pelo vice de João Dória, Rodrigo Garcia (PSDB).

São exemplos da violência os casos de Ryan da Silva Andrade Santos, 4, e Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, mortos por policiais militares no Morro São Bento, em Santos, em novembro do ano passado. A criança brincava na rua quando foi ferida com um tiro no abdômen. Em fevereiro, Ryan já tinha perdido o pai, Leonel, que usava muletas, morto na Operação Verão.

Perfil dos mortos 

Com base na série histórica avaliada, é possível dizer que a polícia de São Paulo mata mais homens do que mulheres. Em 2024, das 814 mortes, 806 eram de homens. Outro dado é que pretos são a maioria entre os mortos pela mesma polícia. No ano passado, vítimas pretas foram 62% do total de mortes decorrentes de intervenção policial.

“As polícias não veem a questão racial como um problema na sua atuação, mas quando nós olhamos para os números, o que temos visto é que a população preta é a mais afetada pela letalidade policial e também por outras arbitrariedades que a polícia comete contra a população, principalmente a negra e periférica”, avalia.

Dados do MP-SP

A Ponte usou dados da SSP-SP para a análise presente nesta matéria e nas demais divulgadas nos últimos anos. Contudo, esse não é o único banco de dados sobre letalidade. O MP-SP também divulga dados sobre mortes em decorrência de intervenção policial, computados pelo Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp).

O Gaesp apurou 811 mortes cometidas pelas polícias em São Paulo. O número é menor do que os 814 registrados pela SSP. A Ponte questionou o Ministério Público sobre a diferença nos números, mas não obteve retorno.

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Os dados do MP também registraram uma alta nas mortes cometidas por policiais militares em serviço. Das 760 vítimas, 674 foram mortas por PMs durante o turno de trabalho. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a SSP-SP solicitando um posicionamento sobre o aumento da letalidade e de medidas que vêm sendo tomadas para redução deste número. Não houve retorno até a publicação desta reportagem. Caso haja, a matéria será atualizada.

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