STF julga nesta quarta atribuições da Justiça Militar em relação a civis

Procuradoria Geral da República pede que Forças Armadas se limitem a julgar crimes disciplinares e de conduta, e não crimes de civis

Ônibus do Exército durante ato de esquerda em São Paulo, em fevereiro de 2018 | Foto: Daniel Arroyo/ Ponte Jornalismo

O Superior Tribunal Federal (STF) dará continuidade nesta quarta-feira (6/10) ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, impetrada ainda em 2013 pelo então Procurador Geral da República (PGR) Roberto Gurgel, que trata de processos envolvendo civis e que são julgados pela Justiça Militar. O processo foi retirado da sessão virtual em fevereiro, quando o ministro Ricardo Lewandowski fez um pedido de destaque.

Até o momento os ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello votaram pela improcedência da ação e apenas Edson Fachin se colocou como favorável ao pedido da PGR. A ação destaca que a competência da Justiça Militar ampliou-se de forma indevida, protegendo agentes das forças armadas em crimes que não tem relação com funções tipicamente militares, como em homicídios, por exemplo.

A atribuição de crimes praticados por agentes das forças armadas contra civis e levados para tribunais onde serão julgados por seus pares foi criticada recentemente pela ONU. Em um documento emitido pela Comissão para Desaparecimentos Forçados, as Organização das Nações Unidas recomendou que casos que envolvam militares sejam julgados por um tribunal civil.

“Relembrando sua declaração sobre desaparecimentos forçados e jurisdição militar, o Comitê recomenda que o Estado Parte tome rapidamente as medidas necessárias para assegurar que a investigação e o julgamento de casos de desaparecimento forçado sejam expressamente excluídos da competência dos tribunais militares”, destaca um trecho do relatório divulgado no final de setembro.

Especialistas avaliam que o julgamento desta quarta-feira (6), junto com outro marcado para 24 de outubro, onde o STF analisará se cabe aos tribunais militares julgar civis por crimes praticados contra as forças armadas, como o momento de debater possíveis reformas nas cortes mais antigas do país. 

O que está em jogo

Um dos pontos em que o pedido da PGR feito ao STF se baseia é de que haja igualdade e garantias constitucionais tanto para civis como para militares em julgamentos que não estejam fora da esfera dos quartéis. Para o coordenador de Enfrentamento a Violência Institucional da organização de direitos humanos Conectas, Gabriel Sampaio, o militares deveriam se limitar a julgar crimes de guerra e atividades irregulares funcionais a suas atividades.

“Eles não devem julgar condutas que se utilizam da força em de situações que podem ser consideradas abusivas fora das normas militares. Então para essas questões vale o modelo constitucional e do sistema internacional dos direitos humanos de que a sociedade civil, por meio de instância civis, deve controlar o uso das Forças Armadas”.

Mestre em ciências militares e oficial da reserva do Exército, Marcelo Pimentel acredita que o pedido feito pela PGR não passará no STF, mas que pode ser uma votação apertada. Porém, só o fato de a Justiça Militar estar em debate é algo salutar para a democracia brasileira.

“A tendência é que se mantenha. Acho que tribunais militares vão continuar julgando civis nesses casos. Esse é um debate técnico. O Supremo não pode criar uma norma. Ele faz o julgamento do que está posto na Constituição. Agora esse debate social é muito oportuno, justamente porque estamos diante de um governo militar na sua concepção, que tem trazido temas como liberdade de expressão, da Lei de Segurança Nacional como forma de intimidação, inclusive de militares.”

O que é um crime militar

De acordo com o pedido da Procuradoria Geral da República, os tribunais militares devem se restringir a julgar atos disciplinares dos agentes da Forças Armadas como insubordinações, motins e deserções. Porém, há infrações cometidas por civis que podem ser julgadas por militares, como explica a advogada especializada em direito militar, Ariadna Augusta. 

“Hoje são considerados crimes militares condutas feitas por civis contra administração militar. Por exemplo, se alguém passa na frente de um quartel e atira contra ele, pela legislação, esse é um ato que vai ser julgado pela Justiça Militar, mesmo ele ocorrendo fora dos muros da instituição. Talvez seja arcaico colocar essa pessoa para ser julgada por oficiais, mas é o que está na lei.”

“Eu também concordo que um civil que comete um crime contra um militar ou dentro de uma área militar deva ser julgado pela justiça comum. Por outro lado, crimes cometidos por militares fora dos quartéis, a lei prevê que o caso seja julgado fora da instância militar, mas a caserna não aceita isso. Meus colegas generais e coronéis não toleram isso que eles julgam como uma intromissão da Justiça Comum em casos militares”, avalia Marcelo Pimentel.

De acordo com dados obtidos pelo SBT News, a Justiça Militar julgou em 18 meses 771 civis, condenando 163 não-militares e absolvendo 51. Os crimes apreciados pelos tribunais das Forças Armadas vão de desacato e furto de frutas em quartéis até roubo de armas. 

“A Justiça Militar deve existir para cuidar de temas estritamente militares e a Justiça Comum tem que exercer o controle civil sobre os militares. Isso é fundamental para a construção da democracia. Militares e forças de segurança precisam se curvar ao poder civil”, cometa Gabriel Sampaio.

Uma justiça arcaiaca que precisa de reformas

O primeiro tribunal militar do país foi criado em 1808, mesmo ano da chegada da família real ao Brasil, sob o nome de Conselho Supremo Militar e de Justiça. Apesar de passados mais de dois séculos, alguns conceitos ainda não mudaram. Assim como no passado, os militares que fazem parte dos tribunais não precisam ter formação jurídica. Apenas na primeira instância da Justiça Militar existe uma juiz civil com formação na área. Há também civis em outras instâncias, mas sempre em minoria em relação aos oficiais

“Eu acredito que tenha que haver uma mudança legislativa. Essas alterações sempre são lentas e precisam acompanhar as mudanças na sociedade. Embora eu entenda hoje porque a Justiça Militar exista, não significa que eu concorde com a existência dela. Eu acho muito arcaica. A sociedade mudou e acredito que possa haver uma reforma”, avalia Ariadna Augusta.

“Há um preceito de que militares são julgados por seus pares porque existem questões específicas do cotidiano de quem serve às Forças Armadas que são muito peculiares, mas no atual estágio que a sociedade se encontra, algumas coisas precisam ser revistas. Na minha opinião a Justiça Militar é sim passível de uma reforma muito profunda”, declara Marcelo Pimentel.

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O oficial da reserva faz uma análise do atual momento do Brasil colocando em perspectiva outro tribunal especial; o trabalhista. “Eles querem por um lado ampliar a Justiça Militar e do outro diminuir a do trabalho. Independente de ser militar, eu acho que se há uma justiça que deveria ser reformada na sua essência é a militar. Numa equação simples, o que fosse enxugada na Justiça Militar deveria ser investido na do trabalho”, conclui.

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