Ministro Rogerio Schietti apontou que agentes municipais foram deixados de fora dos órgãos de segurança pública na constituinte de 1988
Abordagens e revistas, como as que os guardas civis metropolitanos da cidade de São Paulo fazem em pessoas em situação de rua constantemente, estão proibidas segundo decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O relator da matéria, ministro Rogerio Schietti, apontou as limitações das atribuições de tarefas das Guardas Civis Municipais (GCMs), tal como veda atuação dos agentes municipais como forças policiais.
A decisão colegiada vem reforçar algo que já está na Constituição Federal, que não lista as guardas civis como parte dos órgãos de segurança pública. O artigo 144 da Carta Magna determina no oitavo parágrafo que “os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.
O entendimento do STJ foi sustentado durante o julgamento de um homem que foi preso por tráfico de drogas após um enquadro feito por guardas municipais. O tribunal declarou como ilícitas as provas colhidas pelos agentes públicos e anulou a condenação do réu.
Em abril deste ano, também com relatoria do ministro Schietti, foi determinado que ninguém pode ser enquadrado e revistado apenas sob alegação de suspeita baseada nas impressões de agente público ou por conta da aparência ou “atitude suspeita”. Segundo o voto do magistrado, a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.
O posicionamento da corte em relação às guardas é contestado pelos servidores municipais que entendem que o trabalho de proteção ao patrimônio público também passa por medidas que precisam de intermediações contra pessoas tidas como suspeitas. Para Evandro Fucitalo, presidente do Sindicato dos Guardas Civis Metropolitanos de São Paulo (SindGuardas), abordagens fazem parte da proteção de bens, serviços e instalações do município.
“Nas ações na ‘Cracolândia’, por exemplo, tem muita gente que está ali escondendo armas e que representa um perigo para os servidores que precisam realizar trabalhos naquela região, como os profissionais da saúde, assistência social e limpeza urbana. Os guardas fazem o trabalho de proteção a essas pessoas que estão ali a serviço da prefeitura”, argumenta o presidente do sindicato.
Luciana Rocha trabalha como Guarda Civil na cidade de Canoas-RS e é mestre em Segurança Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). Ela, que faz parte do movimento Policiais Antifascistas, concorda que as abordagens feitas pelas forças de segurança são ineficientes.
“Há estudo nos EUA que mostram que buscas pessoais em adolescentes prejudicam o desempenho escolar deles. Obviamente a grande vítima desse método policial é a juventude negra. Não conheço estudo semelhante aqui no Brasil, mas imagino que encontraríamos a mesma correlação. Na minha pesquisa de mestrado com agentes de segurança pública, a produtividade desse método é baixa. A Justiça agiu acertadamente ao proibir esse método de abordagem”, garante.
O coronel da reserva da PM de São Paulo e ex- Secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho reconhece o trabalho das guardas municipais para o controle da violência, principalmente nas áreas urbanas, mas que elas deve se ater apenas às suas funções, que estão estabelecidas pelas Constituição Federal.
“Eles fazem vários trabalhos importantes que são essenciais para a segurança pública, mas que não precisam ser aqueles que já são feitos pela polícia. As prefeituras tem orçamento e estrutura para realizar vários trabalhos conjuntos para a prevenção da violência, não precisando os guardas fazerem o trabalho que é reservado às forças policiais.”
Mais uma polícia
Um levantamento feito pelo IBGE em 2020 mostra que 1.188 cidades no Brasil contam com guardas municipais, o que corresponde a 21,3% de municípios do país. Uma das preocupações apontadas pelo ministro Schietti em seu voto seria com uma possível proliferação de GCMs no território nacional como a falta de um controle externo para essas corporações.
“Ora, se, mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal, já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros”, descreveu em seu voto o relator.
Citando a lei de 13.022 de 2014, que institui normas gerais para as guardas municipais, ordenando o artigo 144 da Constituição Federal, o presidente do sindicato dos guardas civis de São Paulo atribuiu aos ministros do STJ uma interpretação equivocada ao que é determinado para a categoria.
“Sabemos as delimitações que a lei impõe. Mas não se pode dizer que a nossa função é apenas guardas prédios públicos, porque os bens e serviços do município são coisas muito amplas. Qualquer rua ou praça é um bem do município. O serviço é o transporte público, a fiscalização de trânsito e uma gama imensa de coisas. Quando um guarda municipal vê um flagrante delito, ele tem o dever de agir. Se a decisão do ministro está correta, todas as legislações sobre as guardas são inconstitucionais”, opina Evandro Fucilato.
Ainda sem data para ser votada no plenário da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/20, do Poder Executivo, que altera dispositivos sobre servidores públicos, tem um item proposto pelo deputado Capitão Wagner (União Brasil-CE) que concederia “natureza policial” às guardas municipais. Segundo Luciana Ramos, falta força política entre os guardas civis para que eles sejam reconhecidos como órgãos de segurança pública.
“Não estamos incluídos ainda porque falta organização política por parte da órgãos de classe para pressionar os congressistas. O STJ não inventa leis, apenas as interpreta, por isso é compreensivo o entendimento do tribunal.”
Para o Cel. José Vicente a lei vigente é suficiente para ordenar as guardas. Ele ressalta que a criação de novas policiais, além do problema de controle externo, custaria muito caro aos municípios e não teria uma formação adequada. “O valor que seria gasto com esses novos policiais poderia ser investido em programas de prevenção como iluminação pública e ordenamento do trânsito. Pense em uma cidade pequena do interior. Quem seria o primeiro chefe dessa polícia e que formação ele iria ter?”, questiona.
Histórico
No processo de redemocratização do país, algumas prefeituras decidiram municipalizar o serviço de vigilância de patrimônios públicos recriando as guardas municipais, que estavam extintas desde 1970, durante a ditadura militar.
O primeiro município do país a estruturar o serviço de segurança patrimonial nos moldes que são aplicados atualmente em Curitiba (PR), durante a gestão do prefeito Roberto Requião. Em 17 de julho de 1986 foi criado o Serviço Municipal de Vigilância (Vigiserv) na capital paranaense.
Quase três meses depois, em 15 de setembro, o prefeito Jânio Quadros instituiu a Guarda Civil Metropolitana (GCM) na cidade de São Paulo. Segundo a lei 10.115 o propósito do novo órgão seria o vigiar os bens municipais de uso comum e colaborar na segurança pública, com competência para o policiamento e fiscalização do trânsito.
A partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, foi definido no oitavo parágrafo do artigo 144 que “os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. Em 2014, foi sancionada a lei 13.022 que disciplina a dá diretrizes para a atuação das guardas municipais.
No artigo 4º fé exposto mais uma vez as delimitações do serviço prestado pelas guardas: “Competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município.”
Em março de 2021, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que todos os guardas municipais do Brasil, independente do tamanho do município, poderiam portar armas de fogo, porém caberia a cada uma das cidades armar ou não os seus servidores.