Teimosos e insistentes: projetos culturais resistem nas periferias de Salvador

Iniciativas como o Acervo da Laje, em São João do Cabrito; o Jaca, de Cajazeiras; e Musas, da Gamboa, transformam as realidades das suas regiões

Vilma Santos na Casa 02 do Acervo da Laje | Foto: Gabrielle Guido/Entre Becos 2023

Com criatividade e estratégias de resistência, agentes culturais de bairros populares de Salvador estão desenvolvendo projetos para preservar a memória e incentivar a produção artística, cultural e educacional dessas regiões, driblando as dificuldades de acesso à políticas culturais para elas.

Na região da Cidade Baixa, no bairro do São João do Cabrito, Subúrbio Ferroviário de Salvador, a Associação Cultural Acervo da Laje (Acal) é uma dessas iniciativas. Fundado pelo pedagogo José Eduardo Ferreira e pela professora Vilma Santos, o pequeno museu foi construído na parte superior das duas residências do casal.

“Nós temos esse local como um espaço de convivência, abrimos para mostrar a memória do nosso lugar, que produz as artes e conhecimentos”, afirma Vilma. As obras e coleções do Acervo da Laje são frutos de doações, aquisições, como também obras que foram descartadas por outras pessoas.

Com a atuação nos 22 bairros que compõem o Subúrbio Ferroviário desde a adolescência, o casal queria mostrar uma outra perspectiva sobre o território, que costuma ser reconhecido sempre como violento. A questão se tornou tema da pesquisa de mestrado de Eduardo no doutorado, conta Vilma.

“O professor disse que a violência estava em todo o lugar. Mas, qual seria o impacto da beleza no subúrbio? No medo não conseguimos valorizar o nosso lugar”, afirma. A partir desses estudos, o Acervo da Laje começou a tomar forma.

Surgiu o projeto de fotografar mulheres que tiveram suas vidas marcadas ao perderem seus filhos para a violência policial. “Começamos a fotografar as mulheres negras e foi difícil. Quando mães perdem seus filhos, elas perdem a vontade de viver, de se arrumar. Incentivamos essas mulheres a tirar fotos, mas respeitamos os dias em que elas não estavam prontas”, conta a professora.

Assim nasceu a primeira exposição “Cadê a bonita?”, do fotógrafo Marcos Luminati, que capturou a beleza de mães, avós e professoras atuantes em movimentos sociais. Essa intervenção está disponível no acervo até hoje.

Exposição fotográfica do Acervo da Laje | Foto: Gabrielle Guido/Entre Becos 2023

Para valorizar esses trabalhos, o casal passou a realizar um processo de curadoria das obras expostas no Acervo. “Agora temos que ser curadores para abrir espaço para essas artes, mostrar os artistas do Subúrbio à sociedade para que sejam respeitados”, enfatiza Vilma.

Nessa abertura para novos talentos está Ivana Magalhães, artista plástica e pedagoga de formação. Moradora do bairro de Itacaranha, no Subúrbio Ferroviário, ela desenvolve grafismos autorais africanos e indígenas, sobretudo com as contribuições femininas, entre outras produções.

Ela conta que conheceu a história do acervo em um programa de televisão local. Até então, ela revela que produzia muito e não vendia suas obras diretamente para o cliente, mas para os lojistas, a preços baixos. Quando encontrou o museu, ofereceu oficinas para as crianças do bairro. Agora, diz ter encontrado novas possibilidades para refletir sobre seu trabalho com arte.

“No Acervo da Laje, José Eduardo trabalhava a questão de tomar posse da autoria de si. Disse algo que me impactou: ‘Tomar posse da sua própria autoria causa vertigem’, porque é preciso a gente se entender e se perceber como produtor de arte. No acervo, me senti valorizada enquanto artista, porque eles dão visibilidade àqueles que não têm oportunidade no campo das artes”, afirma.

Detalhe interno do Acervo da Laje | Foto: Gabrielle Guido

Em 2016 e 2018, o Acervo da Laje realizou duas edições do projeto “Ocupa Lajes” onde Ivana Magalhães participou com suas produções. “Em 2018, ocupamos museus da cidade, como o Solar de Brotas, Teatro da Gamboa e o Teatro de Plataforma. Eu já me sentia segura com as minhas produções e muito mais fortalecida da minha percepção pessoal como artista”, ressalta Ivana.

Segundo Vilma, as diversas atividades oferecidas no Acervo da Laje são mantidas por meio das contribuições dos visitantes e de instituições que contratam o Acervo para fazer curadoria, como outros museus. “Quando recebemos um dinheiro, primeiramente, ajudamos os artistas, a comunidade. Não temos nenhum tipo de financiamento”.

Para o produtor cultural e conselheiro de cultura do município, Romário Almeida, ainda há uma percepção equivocada de que a produção cultural só é realizada no centro da cidade de Salvador.

“Quando a gente fala em espaços culturais físicos, passa a impressão de que só existe cultura produzida no centro da cidade. Nas periferias existem produções sendo feitas, contrariando a ideia de que precisa de espaço para existir. Não porque não necessitam de espaços para que aconteçam, mas que elas acontecem até como uma forma de resistir e de existir apesar dessas ausências”.

Ouça o bate papo com Romário Almeida aqui.

Jaca, um espaço de expressão

Vagner Lima, Marivaldo Gomes, Cairo Costa sede do projeto | Foto: Bruna Rocha/Entre Becos 2023

Localizado na região da Cidade Alta, no bairro de Cajazeiras V, periferia de Salvador, a Juventude Ativista de Cajazeiras (Jaca) tem oferecido diversas atividades artísticas e culturais para as juventudes do local. Além da proposta de geração de emprego e renda, diante das poucas possibilidades de acesso a esses direitos.

Fundada em 2004 e atualmente conduzida por Cairo Costa, Marivaldo Gomes, Luar Vieira, Rilton Junior, Jagné L, a instituição promove atividades como o Sarau de Poesia, a Metareciclagem, Capoeira Angola, além de oficinas.

O Sarau de Poesia é um espaço que se tornou conhecido e consolidado para apresentação das linguagens artísticas dos jovens. “A juventude frequenta, curte, cobra e acontece por causa deles. Construímos esse espaço privilegiado onde eles se sentem à vontade para mostrar seus trabalhos”, conta Marivaldo Gomes, cofundador do Jaca.

Já Cairo Costa, também cofundador da associação, ressalta que o sarau existe porque atendeu a uma necessidade dos jovens. “O Sarau só deu certo porque atuou naquilo que o estado não conseguiu garantir, um espaço onde os jovens possam exercer a negritude, a juventude. Cajazeiras tem grandes áreas verdes, mas que são ocupadas por grandes empreendimentos. Espaços de lazer e interação comunitária são escassos. O jovem está ansioso para falar, porque sempre mandam ele se calar em casa, na escola, em todo lugar. Aqui a gente diz ‘fale’ o microfone estará aberto”.

Lissandra Ramos tem acompanhado as ações do Jaca e tem percebido como o sarau tem possibilitado mudanças no comportamento das juventudes. “O Sarau do Jaca é um palco de talentos já conhecidos. Vi muitos estudantes completamente tímidos se encorajarem a recitar e até mesmo começaram a escrever poesia depois do contato com o sarau. Passei a utilizar a lógica do sarau e as produções com as quais tinha contato como recurso didático”.

O acesso aos recursos para manter a realização constante das atividades culturais e artísticas continua a ser um desafio para atores culturais que atuam nas periferias da cidade. Para algumas organizações, a necessidade de ter um CNPJ é um desafio, como explica Cairo, do Jaca.

Convite para o Sarau do Jaca na sede do projeto | Foto: Bruna Rocha/Entre Becos 2023

“Boa parte dos editais que podem garantir de maneira contínua emprego e renda para os associados exigem o CNPJ de três anos de existência. Como uma associação vai se manter por três anos sem recursos? Temos CNPJ há cerca de 9 anos, mas os primeiros recursos chegaram recentemente e só conseguimos porque somos teimosos e insistentes”.

A Metareciclagem, reciclagem de resíduos tecnológicos produzidos no bairro de Cajazeiras, é uma das ações realizadas pelo Jaca que contribui para a manutenção do espaço e das atividades. Computador antigo, impressora, carregador velho são objetos descartados pelos moradores e consertados para serem usados novamente.

Sede da Juventude Ativista de Cajazeiras | Foto: Bruna Rocha/Entre Becos 2023

“Ao receber um computador, o HD pode estar ruim, a placa boa, fazemos um Frankenstein e colocamos novamente na cadeia produtiva, a preço baixo para a comunidade. Assim, estimulamos ainda o conhecimento digital”, explica Cairo.

Para a professora Lissandra Ramos, a ação da Metareciclagem possibilita o acesso à tecnologia para a população. “O projeto promove acesso à tecnologia e viabiliza manutenção e reaproveitamento de computadores para a população de baixa renda. Imagina o que é um estudante ter a possibilidade de conseguir um computador a baixo custo para estudar?!”.

Musas e as imagens novas das periferias

Casa do Musas na Gamboa | Foto: Raysa Guedes/Divulgação

Intervenções visuais em bairros populares da cidade de Salvador foi a forma usada pelo coletivo Musas (Museu de Street Art de Salvador) para proporcionar experiências artísticas aos moradores desses locais.

Antes de oficializarem o Musas, os grafiteiros Jovivaldo Santos Silva, mais conhecido como Bigod, Marcos Souza Carmo, mais conhecido como Prisk, e Júlio Costa realizavam mutirões de grafite nos bairros e comunidades da região, como Palafita da Massaranduba, Cidade de Plástico, atualmente conhecida como Comunidade Zeferina, entre outras.

Bigod, Julio e Prisk, fundadores do Museu de Street Art de Salvador | Foto: Divulgação

Em 2012, o grupo se consolidou e criou uma sede na comunidade da Gamboa, onde além do grafite realizavam diferentes atividades culturais, como o Cinema do Musas, exposições fotográficas e a construção de uma biblioteca pública. As intervenções artísticas tinham o objetivo de repensar a estética das ruas e muros da comunidade.

“A gente fazia massivamente grafite na cidade toda e os políticos vinham e apagavam tudo. Nas comunidades, as moradoras não permitiam que essas artes fossem apagadas. O dono do muro, o pedreiro e o menino se reconheciam no grafite. As homenagens para quem morria não eram cobertas”, conta Júlio Costa.

Morador da Gamboa, o gerente operacional Leandro Santos acredita que as obras realizadas pelo Musas mudaram a autoestima de quem vive no bairro. “Minha percepção é que a partir da arte tudo ganha um novo contexto. Existia uma comunidade antes e hoje existe outra totalmente diferente, depois que o Musas e seu coletivo de grafiteiros acessou a nossa localidade. O grafite nos tornou visível perante a uma sociedade que só nos enxergava com um olhar enviesado.”

Para Leandro, as pinturas influenciam na preservação e manutenção do espaço. “Pense comigo, antes existia uma parede, um espaço sempre despercebido e hoje foi ressignificado e transformado em tela de arte a céu aberto. Logo, esse espaço passa a ser prestigiado e aqueles que habitam esses locais, por sua vez, se sentem homenageados.”

O Musas mantém suas atividades por meio da prestação de serviço de pintura. O grupo já acessou editais públicos, mas atuar como uma empresa que reverte sua renda para ações sociais foi o caminho viável, explica Júlio. “O Musas vai realmente se firmar como uma produtora. Quanto mais profissional a gente tiver, mais tinta vai sobrar para nossos projetos. Quanto mais ganhando a grana a gente tiver, mais vai poder movimentar outras pessoas. Então isso vai ampliando a cultura na cidade. É a lógica da economia criativa mesmo.”

Procurada para falar sobre os investimentos e projetos desenvolvidos nas regiões citadas, a Secretaria de Cultura e Turismo de Salvador não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

Esta reportagem recebeu o apoio do edital de bolsas de reportagem para coletivos de Salvador e região metropolitana do Instituto Fala.

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