Tia busca por respostas um ano após morte de jovem por PM de folga em São Paulo

Thiago Gomes Cordeiro, 19 anos, foi morto em janeiro de 2023 no Glicério, centro da cidade. Inquérito aponta apenas um responsável, mas tia do jovem acredita que mais uma policial atirou contra o sobrinho

Morte de Thiago Gomes ainda não foi esclarecida pela Polícia Civil | Foto: Arquivo pessoal

Deuza Cordeiro de Lima, 57 anos, tem o olhar entristecido. Há um ano ela perdeu Thiago Gomes da Silva Lima Cordeiro, 19, sobrinho que a enfermeira criou como filho. O jovem foi morto no dia 7 de janeiro de 2023, no Glicério, zona central de São Paulo, a poucos metros da casa em que vivia com a família. O inquérito ainda não foi concluído, mas as investigações até aqui apontam como responsável um policial militar que estava de folga. A motivação, na versão do PM, foi uma tentativa de roubo. Deuza contesta a versão e denuncia omissão no socorro médico a Thiago. 

“Eu quero justiça para não acontecer com outros. Quando se mata um filho, mata a mãe, o pai, a família inteira”, diz Deuza.  

O caso ocorreu na rua do Glicério. Segundo Deuza, Thiago tinha saído para jogar videogame na casa de um amigo. O jovem que cresceu no bairro era o mais novo de quatro irmãos e tinha se matriculado em um curso universitário um dia antes de morrer. 

Prestativo, ele ajudou a tia na recuperação de uma cirurgia no tornozelo que a deixou de cama por dias. O cuidado é destacado com carinho pela enfermeira. “O Thiago que cuidou de mim. Ele me levou para o hospital, para tudo que é lugar”, lembra emocionada. 

Deuza, tia de Tihago luta por justiça | Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Quatro tiros atingiram o corpo do jovem esguio. O inquérito policial, conduzido pela delegada Daurita Martins Donaire, da 2ª Delegacia de Polícia de Repressão a Homicídios, tem o soldado Helvio de Matos Júnior como autor confesso dos disparos. Na versão do militar, Thiago quebrou o vidro do carro dirigido pelo PM e tentou roubar um celular que estava em um suporte. Mesmo avisado de que estavam no veículo dois policiais, o jovem teria insistido na tentativa de pegar o aparelho, projetando o corpo para dentro do carro e “dando a entender que estava armado”.

A resposta do PM, em sua versão, foram tiros contra Thiago. Helvio estava acompanhado no carro pela também soldado Denise dos Santos de Souza, sentada no banco do passageiro. Ela negou, nos dois depoimentos que prestou até agora, que tenha atirado contra o jovem. Ambos disseram estar de folga e que passaram pelo local após um almoço. O carro em que estavam é de propriedade de Denise. 

Vídeos mostram Thiago caído no chão já ferido. Os policiais Helvio e Denise aparecem falando no celular — em alguns momentos é possível ouvir a soldado relatando ao Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) uma síntese dos fatos e pedindo resgate. Armados, a dupla ronda o corpo por diversas vezes e pede aos populares que parem de gravar.  

Um dos vídeos mostra Denise mexendo no corpo de Thiago. Ela toca primeiro com os pés e depois, com as mãos, vasculha a lateral do casaco que ele vestia. Em determinados momentos dos vídeos, a policial aparece usando uma máscara preta no rosto, em um modelo comumente usado no período da pandemia de Covid-19. 

Thiago foi levado para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Vergueiro. Lá foi constatada a morte.

Apesar de mais de um ano de investigação, o inquérito está repleto de lacunas. 

Lacunas no inquérito

“Aconteceu de novo. Bandidos atacaram aquele carro ali, Datena. Quebraram o vidro do veículo, mas atacaram o veículo errado. Ali dentro, um casal de policiais militares que reagiram conseguiu balear um dos bandidos. Outros dois fugiram”, disse o repórter Lucas Martins no programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, exibido na data da morte de Thiago. Questionado pelo apresentador Datena sobre a autoria dos disparos, Martins disse: “a primeira informação que surge é que teria sido a policial”. 

A reportagem do policialesco também acompanhou a chegada dos peritos ao local e o repórter completou o boletim dizendo que o trabalho naquele momento estava “buscando elementos que pudessem identificar os criminosos que fugiram”. Três teriam atacado o carro e dois conseguido fugir. 

A versão noticiada logo após o crime também chegou aos ouvidos de Deuza. No dia do sepultamento de Thiago, ainda atordoada com a perda, ela foi ao local onde tudo ocorreu. Perguntou sobre câmeras, tentou achar testemunhas e contou ter ouvido de alguém que Denise foi responsável pelos disparos. O relato não chegou a ser apresentado por esse denunciante à Polícia Civil, mas foi dito pela tia em depoimento.

Essa hipótese não foi apurada até aqui. A arma de Denise, mesmo com pedido da Defensoria Pública para que fosse periciada, sequer foi apreendida. Apenas a arma registrada como de Helvio passou por análise. Uma perícia concluiu que três dos quatro tiros que feriram Thiago foram feitos com o armamento. Não consta no inquérito qualquer exame residuográfico, que poderia confirmar quem usou a pistola.

A versão divulgada pelo programa Brasil Urgente de que mais pessoas participaram da suposta tentativa de roubo não consta nos depoimentos de Helvio e Denise. Eles mencionam apenas Thiago na cena.

Em depoimento, o irmão de Thiago disse ter escutado de um amigo do jovem morto (identificado no relato apenas pelo primeiro nome) que ele tentou roubar o celular após um colega desistir da ação. O irmão, no entanto, disse que nunca soube antes do crime de qualquer informação sobre delitos cometidos pelo caçula.

O irmão deu dois nomes para a Polícia Civil. Além do da pessoa que contou a história, identificou também o amigo que estaria com Thiago no momento do crime. Ele também mencionou em depoimento que teve conhecimento de uma hipótese de que os policiais queriam “fazer justiça” para coibir os furtos no Glicério. Antes de atirar, eles teriam passado pelo local três vezes. Os investigadores chegaram a fazer diligências tentando encontrar testemunhas que pudessem corroborar a versão. Essa busca, no entanto, foi feita em agosto, sete meses depois do crime. Ninguém foi localizado.

Fica ausente do inquérito também se foi usado algum objeto para quebrar o vidro do carro. Não é dito pelos policiais qual teria sido o instrumento e isso também não é questionado pela delegada responsável. A possibilidade de que o jovem tenha projetado o próprio corpo contra a janela não é apontada pela investigação.

Manifestantes pedem justiça para Thiago Gomes, jovem morto há um ano em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Os depoimentos dos PMs citam que Thiago fezem menção de que ele estaria armado, mas nenhuma arma foi encontrada com ele. Também não foi feita análise residuográfica para detectar vestígios nas mãos. 

Helvio, em depoimento, disse que não lembrava se atirou contra Thiago enquanto estava dentro ou fora do carro. A Polícia Civil não encontrou imagens de câmeras de segurança nas proximidades do local. O inquérito detalha que, no dia do crime, os investigadores tentaram procurar imagens, mas os estabelecimentos que tinham câmeras não registraram a ação. Uma nova visita ao local foi feita após pedido da Defensoria Pública, que advoga pela família. Mais uma vez, nada foi localizado. 

Com Thiago, a polícia encontrou um cartão de banco e um celular. O aparelho teve perícia autorizada pela família, mas ela não foi efetivada porque os peritos não conseguiram desbloquear o aparelho. A Defensoria pediu que o aparelho de Helvio também fosse periciado, ação que não foi feita. 

Nas imagens obtidas pela família que registram os minutos após os disparos, há um terceiro homem que aparece junto aos policiais. Em depoimento, Denise e Helvio contaram não saber quem era a pessoa, que teria se apresentado a eles como um policial civil. Conforme a policial, o homem teria dito que queria “dar apoio”. Ele ainda não foi identificado no inquérito.

Enfermeira, Deuza sofre ao pensar nas vidas que salvou ao longo dos anos de trabalho e que, no caso do sobrinho, ela não pode socorrer. O inquérito não detalha, mas a tia fala que Thiago agonizou por mais de 30 minutos até ser levado à UPA. 

Ferido na perna, nas costas, no pescoço e no rosto, Thiago não resistiu. Deuza só conseguiu encontrar o sobrinho na unidade de saúde, quando ele já estava sem vida. Ela diz que, pela gravidade do quadro, ele deveria ter sido encaminhado a um hospital de maior complexidade.

Protesto por Thiago

Manifestação pedindo justiça para Thiago ocorreu neste sábado (3/2) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Deuza se uniu a outras mães vítimas da violência do Estado para dar eco à história do sobrinho. Neste sábado (3/2), um protesto foi feito no mesmo local da morte para pedir por justiça. Mesmo antes da totalidade dos participantes da manifestação chegar, três viaturas e dois policiais em motocicletas ocuparam a calçada questionando a manifestação.

O grupo formado por mães, lideranças e membros de movimentos sociais seguiu mesmo assim. Uma faixa feita no local questionava: “Quanto vale uma vida?”. 

Emocionada, Deuza falou sobre o carinho que tinha por Thiago. O caçula de quatro irmãos fazia aniversário no mesmo dia que o pai, o que era motivo de festa. Os dois também dividiram a paixão por dirigir. Um caminhoneiro de profissão e outro aprendiz na direção, mas que se empolgou ao tirar carteira de motorista.

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Quando criança, Thiago pensava em ser policial. “Assassinar uma pessoa desarmada, indefesa. Ele nunca pegou uma arma na vida dele. Quando era criança, ele falava para mim que queria ser policial, porque ele falava que a polícia cuida das pessoas”, contou a tia. 

O grupo de manifestantes destacou as faixas que pediam justiça por cerca de duas horas em uma das sinaleiras da rua do Glicério. Também houve distribuição de panfletos contando a história do jovem. 

Por volta das 17h40min, o protesto terminou e foi servido um cuscuz feito por Deuza. O ato era simbólico. A tia sempre cozinhou para o sobrinho que morava em um apartamento no mesmo prédio que o dela. O ato de carinho ocorria sempre, como forma de agradar ao menino que ela criou como filho. 

Outro lado 

A Ponte procurou a Secretaria de Estado da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre os apontamentos trazidos sobre o inquérito. Não houve retorno. 

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