Inicialmente condenado a 18 anos de prisão por estupro, réu recorreu e tribunal reclassificou o crime como importunação sexual, com pena de 1 ano em liberdade; para especialista, TJ-SP “acaba por passar pano e deixar totalmente livre um abusador”
Abuso sexual de vulnerável só pode ser considerado estupro quando há penetração, decidiu a 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo em 28 de outubro de 2020 em um caso em que o tio abusou da sobrinha, de apenas 8 anos, em duas situações, ocorridas em 2017 e 2018, no interior do estado de São Paulo. O caso foi revelado pelo Conjur na última segunda-feira (2/11).
No acórdão [decisão judicial de órgão colegiado], relatado pelo desembargador João Morenghi, há detalhes dos abusos cometidos pelo tio e narrados, com firmeza, pela criança. Apesar de reconhecer as provas e afirmar que a palavra da vítima “merece credibilidade e é decisiva para a demonstração dos fatos”, o TJ-SP entendeu que, por não haver penetração, o caso não poderia ser considerado estupro de vulnerável, e sim importunação sexual. A diferença de penas pervistas em lei para os crimes é considerável: para casos de importunação sexual, o Código Penal prevê reclusão de um a cinco anos, enquanto para estupro de vulnerável a pena é de oito a quinze anos de prisão.
No inquérito policial, apontou a decisão, havia a informação de que “por diversas vezes” e “em horários específicos”, o acusado praticou atos “libidinosos diversos de conjunção carnal [termo jurídico para indicar penetração de um pênis em uma vagina] com sua sobrinha”, com então 8 anos. “Por pelo menos duas vezes, pegou a vítima, colocou-a sentada em seu colo e esfregou acintosamente sua região genital no corpo dela”, em 2017, e, no ano seguinte, apertou os seios da criança.
Apesar do medo, a criança contou para a avó e para a mãe, respectivamente sogra e cunhada do acusado. Na delegacia, a materialidade do crime foi comprovada após escuta protetiva [entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente realizada em órgão da rede de proteção] da menina. Para a avó da criança, o acusado havia dito que “tudo se tratava de uma brincadeira”. Na ocasião, a criança rebateu afirmando que não era uma brincadeira.
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Segundo o TJ-SP, “a vítima passou por conclusão técnica do setor de psicologia que apontou que os abusos eram críveis” e “sempre se manteve firme, mesmo na presença do acusado”. Apesar disso, a decisão afirmou que não era possível condenar o tio por estupro de vulnerável.
“Parece claro que, ao aludir a outros atos libidinosos alternativamente à conjunção carnal, o legislador não visou qualquer conduta movida pela concupiscência, mas apenas aquelas equiparáveis ao sexo vaginal. E os atos praticados pelo apelante – fazer a vítima se sentar em seu colo e movimentá-la para cima a fim de se esfregar nela e apertar os seus seios –por óbvio, não possuem tal gravidade”.
O caso chegou aos desembargadores após o réu recorrer da primeira condenação: 18 anos de detenção por molestar sexualmente sua sobrinha. Após a nova decisão, a pena caiu para um ano, quatro meses e dez dias, em regime aberto, substituída por prestação de serviços à comunidade.
A advogada Juliana de Almeida Valente, especialista em atendimento à mulher em situação de violência, explica que estupro, no Código Penal, que tem como definição “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, e, por isso, “quando se trata de menores de 14 anos, o estupro é presumido pela lei, independentemente do consentimento da criança ou adolescente, para o ato sexual ou conduta libidinosa”.
A especialista aponta que a decisão, por considerar que o estupro de vulnerável só ocorre mediante a penetração, é equivocada. “A decisão desconsidera a escalada de atos que envolvem a violência sexual contra crianças e não protege o melhor interesse destas, como pede o Estatuto da Criança e do Adolescente”.
“A criança é considerada vulnerável perante o Código Penal, o que torna a conduta praticada contra a criança, que não tem condição de consentir, como violenta, como um caso de violência presumida. Portanto, é estupro praticado contra vulnerável e não importunação sexual, que são atos libidinosos sem anuência, sem violência ou grave ameaça”.
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Diante disso, explica Valente, a interpretação da lei deve considerar “a condição de vulnerabilidade, o atentado à dignidade sexual da criança e os impactos da violência sexual com ou sem penetração e também a condição de vulnerabilidade que é pressuposto de violência”. A criminalista lembra que esse também é o entendimento do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal) que, na maioria dos julgamentos dessa temática, “entenderam não ser possível a desclassificação de estupro de vulnerável para importunação sexual”.
Até 2009, o crime de estupro era o de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. A partir de 2009, a definição de estupro no Código Penal é ampliada e passa englobar qualquer ato sexual praticado com uso de violência ou grave ameaça contra qualquer pessoa. O capítulo de crimes contra a liberdade sexual voltou a ser modificado em 2018, quando a Lei nº 13.718 colocou em cena a figura da importunação sexual. Essa lei foi pensada principalmente para enquadrar homens que se esfregavam ou ejaculavam em mulheres no transporte público e que não podiam ser enquadrados em nenhum crime, apenas em contravenções penais, que não levam à prisão.
Para o advogado criminalista Guilherme Perisse, especialista em direitos humanos e das crianças e adolescentes, o ponto positivo da decisão é a valoração da prova. “A decisão é correta quando reconhece os fatos narrados pela menina como verdadeiros, valoriza a palavra da menina e mantém um caráter condenatório”.
Mas, continua Perisse, o grande problema está na classificação do crime como importunação sexual. “Ao fazer isso, os desembargadores entendem que os atos praticados contra a menina seriam atos sem violência. É inacreditável pensar que um crime dessa natureza não seja apto a levar para uma de detenção ou de prisão. A decisão acaba por passar pano e deixar totalmente livre um abusador que comete atos dessa gravidade”, aponta.
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“Ao meu ver, e é assim que orienta o STJ, a prática do ato com a menina de 8 anos, que é vulnerável, tem violência presumida, por ter violência presumida é um crime cometido com violência. Sendo um crime cometido com violência, a tipificação correta é aquela prevista no estupro de vulnerável”.
O advogado também compara a decisão com as decisões que o TJ-SP realiza para casos de roubos ou furtos. “Da forma como foi decidido, a dignidade sexual da criança acaba ficando menos valorizada do que o patrimônio”.
“Em muitos casos o Tribunal tem rigor com crimes contra o patrimônio e em um caso como esse, que é um crime sexual contra uma criança de 8 anos, a postura é oposta. Reconhecendo que o fato ocorreu e com provas, o Tribunal vai lá e valoriza muito pouco a dignidade sexual da menina”.
Valente lembra que romper o silêncio é uma das maiores barreiras para denúncia para casos de estupros e assédios sexuais “por vergonha, medo, culpa, entre outros motivos. Ainda assim, agentes públicos, da polícia até do Judiciário, reproduzem estereótipos e cobram as mulheres exaustivamente como se acusadas fossem em ambientes que deveriam ser acolhedores e não ambientes revitimizantes”.
A dificuldade nas provas, explica Valente, é outro empecilho para condenações por abuso sexual. “É possível que um estupro não deixe nenhuma lesão ou vestígio, pois estes desaparecem rapidamente, portanto, o exame de corpo de delito não é determinante para os casos de estupro”.
“Esse tipo de crime ocorre, geralmente, às escuras e muitas vezes sem testemunhas diretas. Por isso, outras provas, como avaliação psicológica da vítima e testemunhas indiretas, que conversaram com a vítima depois dos fatos, são tão importantes e levados em consideração para apuração das investigações e possível condenação”.
A sociedade, continua a especialista, “precisa avançar e dar credibilidade à palavra das mulheres, a impunidade está diretamente relacionada ao sistema machista e opressor para mulheres e meninas, que começa sobretudo da pressão e julgamento da sociedade”.
“Imagina quanta injustiça nós mulheres estávamos sofrendo ao longo dos anos, mesmo vivendo sob um estado democrático de direito. É triste expor todas essas injustiças, mas é necessário que esse conhecimento não sirva de desestimulo para a subnotificação. É muito importante rompermos o silêncio para que avancemos contra a violência contra as mulheres”.
Outro lado
A reportagem procurou o TJ-SP e aguarda retorno.
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