Tribunal cita laudos médicos para acatar habeas corpus a Oswaldo Kaique Lima Dias Souza; PMs o acusam de roubar carro e, após batida que fraturou o fêmur, correr e atirar
“Agora eu estou tendo a chance de fazer uma fisioterapia de verdade para voltar a andar”, conta Oswaldo Kaique Lima Dias Souza, 19 anos. O jovem está em uma cadeira de rodas, têm ferros na perna esquerda para corrigir as fraturas causada no fêmur esquerdo por uma batida de carro. Ele ainda tem fios e pinos na mão, baleada por policiais militares. A comemoração, apesar das lesões, aconteceu após o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) acatar um pedido de habeas corpus na quinta-feira (12/12) e liberá-lo da cadeia, onde cumpria prisão preventiva, acusado de roubo a carro e tentativa de homicídio contra dois PMs.
A defesa de Oswaldo havia entrado com o pedido de liminar argumentando que o CDP (Centro de Detenção Provisória) 3 de Pinheiros não oferecia tratamento médico adequado, já que ele passou por cirurgia por conta das fraturas no fêmur. A falta de escolta para levá-lo ao médico deixou que o rapaz fosse à uma consulta agendada para retirada dos fios de ferro e dos pinos da mão esquerda. Oswaldo relata ainda mais dificuldades dentro da prisão.
“Era uma situação horrível porque eu era o único cadeirante no raio, o CDP não tinha fornecido cadeira de rodas logo depois que eu operei, foram meus pais. Eles tiveram que ir atrás para mostrar que eu precisava usar. Precisava de muito auxílio para fazer as coisas, era carregado pelos outros presos para tomar banho porque a porta era muito curta [para a passar a cadeira] e eu não fazia fisioterapia”, conta o rapaz, com medo de ter os movimentos da perna e da mão comprometido pela falta de suporte médico.
A 7ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP concedeu o pedido de liberdade com base nos laudos médicos e no quadro clínico do jovem. “Nada há a indicar que, em liberdade, [Oswaldo] apresentará óbice à regular instrução criminal e ao julgamento do processo, salvo fato novo que vier a surgir em sentido contrário, a ser avaliado oportunamente”, escreveu o desembargador e relator do caso, Eduardo Abdalla. O acórdão prevê a aplicação de medidas cautelares: que Oswaldo compareça mensalmente ao fórum, não se ausente da Comarca sem autorização e permaneça em casa durante à noite e aos finais de semana.
Com o habeas corpus concedido e a liberdade confirmada, Valdir afirmou que o filho começou a realizar nessa semana o tratamento médico particular e, por conta das dificuldades financeiras da família, está tentando solicitar o acompanhamento pela rede pública de saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde). “Ele corre um grande risco de ter como sequela ficar com a perna menor do que a outra”, disse o pai.
Estas limitações são sentidas na pele por Oswaldo. “Certos movimentos meus estão restritos pelo fato de eu não ter feito fisioterapia logo após ter operado e agora vai ser um processo mais lento, mas pelo menos vou ter essa possibilidade de mesmo com sequelas voltar a andar sem usar muletas”, relata o rapaz, que tenta evitar que o atrofiamento dos músculos seja definitivo, bem como se prepara para tentar provar sua inocência na acuação de ter tentado matar os policiais. “E eu vou pagar pelo o que eu cometi, não pelo o que eu não cometi”.
Roubo e tentativa de homicídio
O jovem é acusado de ter atirado contra dois PMs após um roubo de carro em maio deste ano. Na perseguição, ele, que era o motorista, bateu em um poste na Estrada de Taipas, zona norte de São Paulo, e fraturou o fêmur em três partes. Os policiais acusam o jovem de ter saído do carro com uma arma nas mãos, corrido e atirado em direção aos agentes de segurança, mesmo comprovadamente tendo a perna fraturada. Com os tiros dos PMs, ele foi atingido cinco vezes, segundo o pai, Valdir: “dois tiros na barriga, um na mão, outro na área do pescoço, perto do queixo, e outro no escroto, que fez ele perder um testículo”, conta.
A família tenta provar que Oswaldo cometeu apenas o roubo e não a tentativa de homicídio contra os PMs, conforme revelado pelo pai, Valdir Dias Souza, PM aposentado. Contra ele também pesa a acusação de corrupção de menores, já que os outros dois rapazes que estavam com ele no assalto ao Ford Ka, utilizado por um motorista de aplicativo, não tinham completado 18 anos. Os dois morreram baleados na ação da polícia, sendo Oswaldo o único sobrevivente.
“Senti uma das maiores dores da vida, não aguentava me mexer. Em seguida, os policiais me tiraram do carro e me alvejaram com cinco disparos mesmo sem esboçar reação alguma”, relatou o jovem à Ponte. “Ele estava pedindo pelo amor de Deus. Tiraram ele do carro, colocaram sentado na calçada e atiraram. Foram dois tiros na barriga, um na mão, outro na área do pescoço, perto do queixo, e outro no escroto, que fez ele perder um testículo”, conta o pai, ainda incrédulo com a versão oficial. “Como ele sairia do carro com o fêmur quebrado? Ia cair na hora. E quem atira com a mão espalmada para frente, como está no exame? Ninguém!”, continua Valdir.
Segundo os policiais, duas armas calibre .38 foram encontradas com os três jovens, uma com Oswaldo e a outra com um dos adolescentes mortos. Uma das armas tinha seu número intacto e, após consulta ao Prodesp, sistema em que a polícia identifica a origem das armas, apontou que é de propriedade de uma empresa de segurança. Não havia nenhum relato de roubo, furto ou desaparecimento desta arma. A segunda arma também foi identificada, com o então dono relatando um furto ocorrido em maio de 2010.
No B.O. (Boletim de Ocorrência) do caso, aponta que a perícia da cena do crime foi comprometida por uma forte chuva que caiu no local. “Como se tratava de uma descida, a enxurrada levou um dos aparelhos celulares, bem como os cartuchos [das balas], que não foram recuperados, e também levou vestígios das manchas hematoides [ de sangue]”, diz o B.O..”, diz o documento, assinado pela delegada Gisele Maciel Rocha. Ainda sem 100% de certeza sobre os elementos da cena do crime, o promotor Norberto Joia deu sinal positivo para a versão dos PMs, que colocam Oswaldo como autor da tentativa de homicídio.
““Meu filho é réu confesso, quero que ele pague. Fez burrada, sempre teve bons exemplos em casa, dei o que ele precisava, mas errou. Qual meu medo? Que ele pague por um crime que não cometeu: a tentativa de homicídio. Errou? Errou, tem que pagar pelo erro, não o que estão colocando nas costas dele”, conta Valdir, sem eximir a culpa do filho.
Na época, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo explicou que o caso é investigado por inquérito policial no DHPP, responsável por casos de mortes causadas por policiais, e que “está ouvindo testemunhas e trabalha em busca de demais elementos que auxiliem no esclarecimento dos fatos”. “Dois policiais militares envolvidos na ocorrência foram afastados do serviço operacional”, informou.
Já a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) havia informado à reportagem que as denúncias de faltas de atendimento médico não procediam e que “os presos têm atendimento de saúde garantido em todas as unidades de todo o estado”. “Os casos mais complexos são encaminhados à rede pública de saúde e/ ou ao Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário da Fundação ABC, nos hospitais de referência em saúde e quando necessitam de atendimento em especialidades os presídios agendam por meio do Sistema SUS – Sistema Único de Saúde em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde”, sustenta a pasta, antes de explicar o caso específico da consulta não feita por Oswaldo Kaique Lima Dias Souza.
“Kaique tinha consulta marcada, porém como haviam 592 solicitações de escolta de presos, entre essas 61 de caráter emergencial para Pronto Atendimento, não foi possível realizar a escolta do referido preso ao Hospital. A unidade prisional ligou diversas vezes para o hospital a fim de reagendar a consulta e conseguiu o agendamento para 03/12/2018. No momento, Kaique também foi agendado para a realização da fisioterapia no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário”, justificou a SAP.