Os pesquisadores Renata Cruz e Erin Fernandes foram os convidados do sexto episódio de Da Ponte pra Cá, série de lives da Ponte, que abordou o que é e o que propõe o movimento anti-cárcere
O abolicionismo penal pautou o Da Ponte pra Cá da última quarta-feira (5/5) e marcou a estreia da repórter Beatriz Drague Ramos comandando uma live da Ponte. O bate-papo contou com a presença de Renata Cruz e Erin Fernandes, ambos abolicionistas penais. O tema também é abordado em Abolição, nova coluna do site da Ponte.
A sergipana Renata Cruz se entendeu como abolicionista durante a graduação de Direito na Faculdade Estácio, nas aulas de Aline Passos, professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, além de doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Renata mudou sua visão sobre a criminalização e resolução de conflitos. Hoje ela é pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim/CEI e pesquisa cárcere e relações raciais.
Leia também: Abolicionismo penal é tema de nova coluna da Ponte
Já para Erin Fernandes Bueno, o abolicionismo é uma questão que tem relação com a trajetória de sua família. Ele conta que viu seu pai ser preso e sua mãe ser privada de liberdade ao passar por instituições psiquiátricas. Erin só se definiu como abolicionista penal durante a campanha em defesa pela liberdade de Rafael Braga, ex-catador de latas vítima de uma prisão sem provas durante as manifestações de 2013 e que se tornou símbolo da seletividade da Justiça contra pessoas negras.
Nessa fase, o sul mato-grossense participou de debates e conheceu intelectuais que falam sobre o assunto e conta que acabou entendendo que o problema não é só individual, mas sim estrutural. Atualmente ele mora no Distrito Federal, é graduando em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) e membro da Frente Distrital pelo Desencarceramento.
Os dois convidados frisaram que a proposta do abolicionismo é a extinção do cárcere e não uma reforma ou possível humanização das prisões. “O abolicionismo é pensar novas resoluções de conflitos que não considerem o cárcere, além de ser contrário à indústria armamentista, contra a construção de novos presídios, entre outras coisas. Uma das preocupações é trazer a vítima para o centro do debate, o que o processo penal, hoje, não faz. A vítima acaba sendo um número. Uma das propostas é trazer a vítima para o debate, para ela ser ouvida e ela poder participar pensando nas questões daquele conflito”, explicou Renata.
Guerra às drogas: pilar do encarceramento em massa
O debate se torna ainda mais fundamental diante do cenário brasileiro. O Brasil continua ocupando o terceiro lugar no ranking mundial de países com a maior população carcerária. A repórter Beatriz Drague pontuou durante a conversa que das mais de 750 mil pessoas que estão presas no país, 66% delas são negras, de acordo com último levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Esta realidade é resultado de diversos fatores do sistema punitivista, sendo a guerra às drogas “um pilar fundamental do encarceramento em massa”, observa Erin. “Nós não estamos prendendo os grandes traficantes, estamos prendendo usuários e pessoas que estão ali no ‘varejo’ que é criminalizado. Mas, às vezes, pessoas que sequer estão relacionadas com drogas, pessoas que só estavam no lugar errado e na hora errada”, afirma. Uma das medidas pensadas pelo abolicionismo para reverter essa situação é a descriminalização das drogas e dos crimes de menor potencial ofensivo.
Leia também: Artigo de estreia | Abolição: da escravatura à justiça criminal
O ativista explica que a lógica do punitivismo é prender cada vez mais pessoas como forma de mostrar resultado à sociedade. No entanto, as alternativas a esse sistema não têm sido consideradas e nem mesmo aplicadas. Diante dessa realidade, a violência cresce e consequentemente o encarceramento em massa também, atingindo principalmente negros, pobres e pessoas periféricas. Erin afirma que há uma indústria da criminalização às drogas que lucra com isso e quem está realmente vencendo essa guerra são as drogas.
Pesquisadora da situação da mulher no cárcere, Renata destaca que a guerra às drogas é o principal motivo do encarceramento feminino, principalmente entre mulheres negras. Ela diz que presídios na Bahia e no Ceará, por exemplo, chegam a ter 90% de mulheres negras presas. “O nosso código penal faz um aumento da pena do tráfico de drogas em lugares que se aproximem de delegacias, estabelecimentos prisionais, ou seja, o Estado escolhe criminalizar mulheres, pois são as mulheres que são criminalizadas como ‘mulas’ [pessoas que atuam no transporte das drogas]”, comenta.
Leia também: Estudo inédito detalha os custos da guerra às drogas em RJ e SP
As frentes pelo desencarceramento espalhadas pelo Brasil possuem reivindicações que vão além do abolicionismo e pedem o básico do garantismo, previsto pela Constituição Federal, como o cumprimento da Lei de Execução Penal, que não tem acontecido. Erin lembra que quase metade das pessoas presas no país ainda aguardam pelo julgamento.
Problema estrutural
As diferentes perspectivas do abolicionismo levam em conta cada caso e crime. Pensando nos crimes mais cruéis, que ferem a dignidade humana, Renata Cruz afirma que o abolicionismo ainda não tem uma resposta para eles. No entanto, ela diz que é preciso repensar o que fazer com essas pessoas pois não existe ressocialização na prisão.
Os entrevistados citam o crime de estupro para explicar a complexidade do assunto. “A gente tem uma cultura do estupro no nosso país. Falar de estupro significa que a gente vai precisar pensar nos caras que não estão incluídos desse estereótipo, significa pensar em estupro que ocorre dentro do casamento, por exemplo”, afirma Erin. A dependência financeira do parceiro, a falta de apoio e atendimento adequado nas delegacias são alguns dos fatores que desestimulam a denúncia das vítimas.
O ativista cita que a vítima de um estupro ter que provar que houve crime é uma violência a mais que ela passa. Para ele, o problema é estrutural. “O sistema penal responde muitas vezes, no caso de presos por estupros, reproduzindo a própria violência sexual dentro das prisões. Então, o estupro não está sendo combatido”. Segundo ele, a mudança precisa ser coletiva e de estratégias que enfrentam e combatam o estupro definitivamente.
Leia também: População carcerária do Brasil supera limite em 312 mil
Renata reforça que os crimes também são cometidos por quem detém a força. “O Estado também é o violador. Ele também viola corpos, tortura corpos e mata corpos. A gente só pensa na punição quando estamos falando da pessoa e não da instituição. Quando a gente fala do dito marginal, do dito criminoso, pensamos em como punir, mas quem pune o Estado? Ninguém fala. Agora na própria pandemia, quando os juízes insistem em manter pessoas que poderiam estar respondendo em liberdade, e que não oferecem nenhum perigo à sociedade, lá dentro e essas pessoas morrem dentro do cárcere, quem é o assassino?”, questiona a pesquisadora.
Movimento anti-cárcere
O movimento abolicionista é uma luta perigosa e solitária, segundo o ativista Erin. Os movimentos sociais, no geral, não são muito engajados à esta reivindicação, por conta das divergências de perspectivas quanto ao sistema penal. “Também é por aspecto de segurança. Você precisa de muita coragem para engajar nessa luta porque significa que você será constantemente ameaçado e que as pessoas queridas por você e que estão dentro do sistema podem ser retaliadas”, afirma Erin.
A partir da seletividade do sistema penal, que é majoritariamente composto por pessoas negras e periféricas, os abolicionistas esclarecem que toda criminalização é política, pois há uma decisão a ser feita sobre condenar ou não uma pessoa. “O crime não é natural, ele é algo criado. Portanto, por essa opção de criminalizar, todo preso é um preso político. O cara não vai preso por ele cometeu delito tal, ele vai preso porque ele é preto e pobre”, avalia Renata.
A agenda pelo desencarceramento é estabelecida por um conjunto de questionamentos, entre eles a situação precária da maioria das prisões e as condições que os presos enfrentam no dia a dia, com torturas e maus tratos. “Os movimentos se comunicam como estratégia, mas não podemos ficar nessa linha reformista”, fala a pesquisadora. “O abolicionismo está questionando toda a estrutura da sociedade”, complementa Erin.
Por fim, os convidados citaram livros que trazem a discussão do abolicionismo penal para quem quer aprofundar o assunto: Estarão as prisões obsoletas? da Angela Davis, Corpo Negro Caído no Chão, da Ana Luiza Pinheiro Flauzina, Abolicionismos: Vozes Antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias, de Guilherme Moreira Pires, Vera Regina Pereira Andrade e outros autores.