Promotoria argumentou que agentes da Core assumiram risco de provocar morte ao, em operação de maio de 2020 no RJ, disparar contra jovens desarmados, e que manipularam o local para se eximir de responsabilidade; “passo importantíssimo para que justiça seja feita”, diz mãe do menino
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro denunciou, nesta quarta-feira (15), três policiais civis por homicídio qualificado e fraude processual pela morte do adolescente João Pedro de Mattos Pinto, 14, baleado enquanto brincava na casa de um primo durante uma operação conjunta das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, em 18 de maio de 2020.
De acordo com a denúncia, Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, lotados na Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), atuaram por motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima por terem efetuado diversos disparos contra um grupo de jovens desarmados, vindo a atingir o menino, e, depois, manipular a cena do crime para se eximirem da responsabilidade.
O trio plantou, segundo o documento, artefatos explosivos, uma pistola Glock calibre 9 mm, além de posicionar uma escada “junto ao muro dos fundos do imóvel em questão” e produziu “marcas de disparos de arma de fogo junto ao portão da garagem” para simular confronto.
Os três estavam em um helicóptero e desceram até um campo de futebol no bairro Itaoca, juntamente com o delegado e coordenador da Core Sergio Sahione Ferreira e o policial civil Jair Correia Ribeiro, “com a intenção de interceptar homens armados que teriam sido observados” durante o sobrevoo fugindo da residência atribuída a Ricardo Severo – conhecido como Faustão, um dos integrantes da facção criminosa Comando Vermelho. De acordo com a polícia, o objetivo da operação era cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão.
“O que restou sobejamente demonstrado nestes autos é que os denunciados Mauro, Maxwell e Meister – ao arrepio da lei – e diante do possível abate de criminosos, em nenhum momento demonstraram qualquer preocupação em lesionar ou matar pessoas inocentes, assumindo convictamente o risco de produzir o infeliz resultado que, de fato, sobreveio”, escreveram os promotores Paulo Roberto Mello Cunha Jr., Allana Alves Costa Poubel e Andréa Rodrigues Amin.
Na época, a família de João Pedro já denunciava a alteração de provas. O adolescente também foi levado por um helicóptero após ser baleado e só foi localizado por parentes no IML (Instituto Médico Legal) 17 horas depois. “Os policiais invadiram a casa”, declarou na ocasião à Ponte o autônomo Neilton Pinto, 41, pai de João Pedro. “Se tivesse bandido para o lado, como alegaram que estava no quintal, era para o helicóptero dar suporte para a pessoa não fugir e cercarem a casa. Entraram com morador, já atirando. Como quem pulou no quintal fugiu com vários helicópteros dando rasante? Forjaram muitas coisas ali dentro [da casa]. Fizeram uma bobagem, a casa está cravada de bala. Se aquilo foi fora da casa, o tiroteio, por que dentro estava cravado de bala?”.
O jornal Extra apontou, em agosto daquele ano, uma série de falhas na perícia e irregularidades na cadeia de custódia da investigação, como transporte inadequado de provas, acesso às evidências pelos investigados e entrega das armas dos agentes uma semana depois do crime. Também houve mudança de depoimento por parte dos policiais civis que atuaram na operação. Segundo o Extra, que acessou o inquérito, os agentes disseram primeiro que deram, ao total, 23 disparos. Uma semana depois, mudaram para 64.
A Polícia Civil entendeu que os policiais praticaram homicídio culposo (quando não há intenção de matar), mas o MPRJ discordou e apresentou a denúncia por homicídio qualificado e fraude processual. A promotoria não pediu a prisão dos agentes, mas solicitou o afastamento das atividades na Polícia Civil e a não aproximação de testemunhas. Cabe agora ao Tribunal de Justiça decidir se aceita ou não a acusação. De acordo com o jornal O Globo, a promotoria também vai apurar se outros agentes estavam no local do crime quando a cena foi manipulada.
Em maio deste ano, o Ministério Público Federal anunciou que reabriria as investigações por causa da morosidade no âmbito estadual. O órgão havia deixado o caso porque havia indícios de que apenas policiais civis atuaram no homicídio. A Ponte procurou a assessoria do MPF para saber se a apuração continua e aguarda uma resposta.
À reportagem, a mãe de João Pedro, a professora Rafaela Mattos, 37, disse que o sentimento é de “alívio”. “Estávamos angustiados a semana toda aguardando esse pronunciamento do Ministério Público para que essa justiça seja feita. Esse é um passo importantíssimo para que realmente essa justiça aconteça e os culpados sejam punidos”, declarou. “Podemos dizer que, de certa forma, é um alívio mesmo que nada vá trazer de volta o meu filho”.
O caso de João Pedro, morto dentro de casa no auge da pandemia, tomou tamanha repercussão que foi citado na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 635, como ficou conhecida a ADPF Favelas, em que o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), proibiu em junho do ano passado a realização de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais.
A determinação proferida de forma monocrática foi ratificada pelo plenário no mês seguinte. Desde novembro deste ano, o caso retomou para ser julgado pela corte em forma definitiva, já que a determinação estava em caráter liminar (de urgência). Porém, o julgamento, que já foi adiado várias vezes, foi novamente suspenso na quarta-feira (15), e deve voltar à pauta só em 2022, já que nesta sexta-feira (17) aconteceu o encerramento das atividades judiciárias no STF.
O que diz a polícia
A Ponte solicitou posicionamento para a Polícia Civil sobre a investigação e solicitou entrevista com os acusados e aguarda resposta. A pasta encaminhou a seguinte nota:
O inquérito da Polícia Civil foi encerrado. Cabe a defesa dos policiais, que estão afastados do setor operacional e se encontram em serviço no setor administrativo, se manifestar sobre a denúncia.
A reportagem não localizou advogados dos três.