Egressas falam de humilhações diárias e mãe de preso conta que agente mandou pelo correio balas de borracha que atingiram o filho para denunciar violência do GIR
“Quando chegaram no pavilhão 2, eles colocaram o cachorro por dentro da grade pra latir bastante e todo mundo estava chorando e com medo. É uma pressão psicológica desnecessária. O GIR é uma das piores intervenções que existe, ainda mais porque não tinha acontecido absolutamente nada”. De cabelos brancos compridos, Tempestade, como prefere ser chamada, lembra da atuação que presenciou do GIR (Grupo de Intervenção Rápida) quando estava presa na Penitenciária Feminina de Santana, na Zona Norte da capital paulista, em 2012.
Condenada a mais de dez anos por tráfico de drogas em 2008, a mulher de 66 anos passou cinco deles presa e tem medo de se identificar por responder o processo em liberdade. Ela preferiu não especificar o dia e o mês do ocorrido, mas conta que as detentas do pavilhão 1 tiveram os pertences destruídos naquele ano pelo grupo especializado. O GIR é formado por agentes penitenciários para controlar rebeliões e revistar celas atrás de armas e drogas e é conhecido como “tropa de choque” dos presídios.
“O diretor de disciplina na época autorizou por conta própria, não teve motim. Eles retiraram as coisas das pessoas, deixaram elas sem nada. Abriram os lençóis, jogavam os cigarros, xampus, sabonetes, os colchões, levavam tudo embora. A água que jogavam no corredor eles colocavam detergente, mandavam as pessoas correrem pra caírem, os cachorros latindo”, relata. “A sorte é que quando chegou no meu pavilhão, o diretor-geral brecou a ação. Começou às 6h, umas 12h30 foi suspensa a blitz deles. As minhas coisas não foram levadas”.
Mary Jello, de 58 anos, afirma que já presenciou várias ações do grupo nos nove anos e sete meses que percorreu unidades prisionais, no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha, na Penitenciária Feminina da Capital, Penitenciária Feminina de Sant’Anna e Centro de Progressão Penitenciária “Dra Marina Marigo Cardoso de Oliveira” de Butantan. “Todas as vezes que eles entraram foi porque [as detentas] tinham algum tipo de reivindicação para a direção: alimentação que estava estragada ou porque não tinha água ou não tinha luz, alguma presa que estava doente. Se tinha alguma briga entre presas, a administração já colocava o GIR para vir oprimir a gente. Eles entravam com os cachorros, já gritando, já xingando com palavrões. Era bala de borracha, mas não deixa de ser uma arma, de ser uma violência”, conta.
A egressa também afirma que não chegou a ser agredida fisicamente, “mas verbalmente, sim, do tipo ‘corre, sua puta, sua safada’”. E que presenciou outras detentas sendo agredidas e discriminadas. “O preconceito deles também era em cima de lésbicas. Eles não respeitam, eles escrachavam ‘você é homem’, o GIR não aceita”, complementou.
Assim como Tempestade, ela destacou que os pertences e produtos enviados por familiares, conhecido como “jumbo”, eram destruídos. “Quando eles entravam, eles destruíam nossa alimentação também. Misturando produto de higiene com produto de alimentação, não tendo o mínimo de respeito com a gente. Na nossa roupa limpa, eles jogavam comida, sabão em pó, detergente, fazendo aquela bagunça. Medicação controlada no caso das pessoas que tomavam, eles misturavam tudo, jogavam fora”, afirma.
De acordo com levantamento realizado pelo NESC (Núcleo Especializado em Situação Carcerária) da Defensoria Pública do Estado, e antecipado pela Ponte, 45% dos presos relataram terem sido agredidos durante atuação do GIR. As inspeções em 57 unidades prisionais também apontam queixas relacionadas à destruição de pertences (25,8%), mordidas de cães (22,9%), xingamentos (21,8%) e uso de bombas de efeito moral (19,4%).
Mary e Tempestade estavam num auditório lotado especialmente por mulheres mães, esposas, irmãs ou filhas de pessoas encarceradas para a audiência pública convocada pela Defensoria e entidades de direitos humanos, que aconteceu na quarta-feira (28/02), sobre a atuação do GIR.
Lágrimas escorriam dos rostos de algumas delas, elas se abraçavam, apertavam as mãos umas das outras quando viram imagens de uma atuação do GIR em que presos já imobilizados da Penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, a P2, foram espancados pelos agentes, que provocaram um incêndio em uma das celas ao jogarem uma bomba de gás lacrimogêneo no local para os detentos saírem. A gravação foi feita em 2008 pelos próprios funcionários, estava sob sigilo, e foi vazada em duas reportagens do SBT, em 2014. A reportagem aponta que uma sindicância foi aberta para apurar o caso seis anos depois do ocorrido. Nenhum dos agentes envolvidos foi responsabilizado e os presos condenados a cumprir 30 dias de isolamento, por se amotinarem, causarem o incêndio, se auto lesionarem, tendo que pagar, aproximadamente, R$ 117 cada um pelos danos na cela.
“O que a gente descobriu nesse procedimento administrativo é que o Grupo de Intervenção Rápida sempre filmou informalmente, embora sempre negassem nos processos de execução, e a Croeste (Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Oeste Paulista), que é braço da Secretaria de Administração Penitenciária, recebeu um e-mail no mesmo dia que dizia que houve intervenção do GIR e que essa atuação teve o uso da força e, mesmo com esse e-mail, ela nunca disse que sabia que teve o uso da força e por isso o processo foi arquivado antes das imagens serem vazadas porque não tinha como provar”, aponta o defensor público Gustavo Picchi, que acompanha o caso.
A Defensoria impetrou um recurso que está na Corregedoria dos Presídios, no Departamento Estadual de Execução Criminal (Deecrim) 5ª Raj da Comarca de Presidente Prudente do Tribunal de Justiça, para solicitar que sejam realizadas filmagens das atuações do GIR, que o uso da força seja regulamentado, que os uniformes dos agentes sejam identificados, além de produção de provas para esclarecer os fatos.
Durante a audiência, algumas mulheres parentes de presos, a maioria mães ou companheiras, aproveitaram o microfone aberto para denunciar violações contra os encarcerados, além de humilhações que elas sofrem nos dias de visita, principalmente nas penitenciárias de Lucélia e Avaré 1 e 2, cujos relatos de agressões, destruição de pertences e intimidação eram os mais recorrentes nos relatos.
Balas de borracha via “Sedex”
Além do discurso emocionado, uma senhora de 59 anos carregava um pequeno pacote com duas trouxinhas embrulhadas em plástico. Dentro delas, balas de borracha que foram enviados por um funcionário da Penitenciária de Lucélia por encomenda à advogada dela,, que disse que “o agente tinha a intenção de denunciar os abusos”. A menor delas, com vários estilhaços, teria, segundo ela, atingido “queimando” o peito do filho no dia 14 de dezembro do ano passado durante uma revista do GIR. “Eles alegaram que tinha celulares na cela e placas de TV, já entraram atirando e deram um castigo coletivo no raio 1 porque não sabiam de quem era”, conta.
De acordo com ela, os detentos, incluindo o filho, ficaram dez dias no “pote da casa”, uma espécie de cela bem menor usada para aplicação de alguma sanção, onde os presos acabam ficando amontoados, e que ele não teve acesso a produtos de higiene e roupas. A ação se repetiu no dia 24. “Disseram que tinham encontrado um buraco na cela do lado e que eles estariam cavando para fugir. O GIR bateu de novo neles. Meu filho estava fraco porque não deram comida e ele pegou mais 15 dias [de castigo]”, denuncia. “Mas também sabemos que nem todos os agentes pensam assim, muitos discordam dessa atuação”, afirma.
À Ponte, a advogada informou que o detento “não teve direito de defesa, uma vez que ele foi condenado por falta disciplinar de tentativa de fuga, que é gravíssima, sem a minha presença” e que recorreu à Vara de Execuções Criminais de Tupã, no interior do estado de São Paulo. Além disso, apontou que o diretor da unidade tem dificultado o acesso da defesa e que não autorizou os pedidos dela para visitar o local onde o preso está encarcerado.
A preocupação em não se identificar também é recorrente por conta do receio de haver algum tipo de represália aos encarcerados. “Quando o Estado não tortura fisicamente, tortura psicologicamente porque o dia de visita no sistema prisional é pior do que estar no inferno. E falar do GIR, para nós familiares, é muito difícil. O Estado diz que gasta R$ 3 mil com preso, mas quem leva o jumbo é a família. O GIR entra e acaba com tudo”, desabafa Maria Railda da Silva, presidente da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos).
No mês passado, a associação também havia denunciado ao NESC (Núcleo Especializado de Situação Carcerária) Defensoria Pública práticas de violência em penitenciárias de Getulina e Dracena, interior do Estado, conforme a Ponte divulgou. Apesar do medo, Railda reforçou às mulheres presentes a necessidade das denúncias. “Nós temos que nos unir para fazer a transformação do sistema prisional”.
De acordo com o coordenador do NESC, defensor público Thiago de Luna Cury, será criado um grupo de trabalho em conjunto com entidades e as pessoas que depuseram para que medidas sejam discutidas e tomadas em relação ao GIR.
O presidente do Sindaspe (Sindicato dos Agentes de Escolta e Vigilância Penitenciária do Estado de São Paulo), Antonio Pereira Ramos, procurou a reportagem pra dizer que a entidade, uma das que representam os profissionais do sistema prisional, atua na base da legalidade e que não compactua com abusos que devem ser apurados pela SAP.
A SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), por sua vez, foi convidada para a audiência, mas não enviou nenhum representante. A Ponte também procurou a assessoria de imprensa da pasta para falar sobre as denúncias da Defensoria e das pessoas ouvidas nesta reportagem, mas não obteve resposta até a publicação.