Vídeos dentro de viaturas da PM não são exclusividade de youtuber estadunidense

Nomes como Elias Jr e programa Polícia 24h já estabeleceram padrão há mais de década e seguem na plataforma; pesquisadora fala que filmagens transformam trabalho de policial em produto de entretenimento

O youtuber americano Gen Kimura aparece segurando arma da PM de SP | Foto: Reprodução

Um vídeo divulgado pelo youtuber americano Gen Kimura junto de policiais militares durante uma operação na zona norte de São Paulo ganhou repercussão nos últimos dias. Nas imagens, Gen chega a segurar uma arma e um policial afirma que as mortes de criminosos são comemoradas com cervejas e charutos. Ao Metrópoles, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) confirmou o afastamento de todos os policiais que participaram da operação filmada. Apesar da resposta estatal ao caso mais recente, vídeos gravados em viaturas ou acompanhando a atividade policial não são incomuns. 

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Uma busca no YouTube, mesma plataforma onde o vídeo de Gen foi divulgado, exibe conteúdos na mesma linha. Alguns deles levam à reprodução de materiais que chegaram a ser exibidos na TV aberta. 

O vídeo de Gen foi publicado no dia 2 de junho e, até a manhã desta quarta-feira (26/6), já tinha mais de 1 milhão de visualizações. O canal do americano no YouTube tem 383 mil inscritos.

Na descrição do vídeo, há uma mensagem que diz que as opiniões expressas pelas pessoas filmadas não refletem necessariamente as opiniões do youtuber. “This channel does not endorse or condone any form of hate speech, discrimination, or violence”, escreve. (Este canal não endossa nem tolera nenhuma forma de discurso de ódio, discriminação ou violência, em livre tradução).

Gen Kimura diz que teve o aval da chefia da PM e passou a acompanhar o trabalho do 18º  Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M). Na unidade, conforme mostra o vídeo, ele é recebido pelo Capitão PM Bordim. É ele quem mostra a reserva de armas e granadas usadas pela corporação. No decorrer das filmagens, outro policial também chega a afirmar que mortes de criminosos são comemoradas com cervejas e charutos.

Para a coluna de Igor Gadelha no Metrópoles, o governador Tarcísio de Freitas disse ter conversado com o secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite cobrando explicações. Foi solicitado “punição exemplar”, o afastamento e a abertura de sindicância.

Também ao Metrópoles, a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) informou que a participação do youtuber foi autorizada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.  

Caso não é isolado 

A pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Ariadne Natal, lembra que este caso não é isolado. Ela diz haver vídeos similares aos do youtuber americano e lembra que até mesmo na televisão aberta já foram exibidos conteúdos na mesma linha. 

Um deles, chamado Polícia 24h, foi exibido pela rede Bandeirantes e tem episódios completos disponíveis no YouTube. O programa mostrava abordagens policiais feitas por diversas corporações pelo país. Há vídeos onde a equipe acompanha os PMs durante tiroteios e também anda com os agentes nas viaturas. Ariadna chama de falha grave que esse tipo de conteúdo continue sendo produzido. 

Outro exemplo são os canais de Elias Assis Neto, também conhecido como Elias Junior, onde ele compartilha conteúdos sobre a rotina da polícia militar. No canal autointitulado, Elias descreve o conteúdo como “um relato real da vivência e registro de mais de 30 anos embarcados em viaturas de todas as unidades de policiamento do especialista em Segurança Pública, Diretor Elias Junior”.

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Ele tem mais de 1 milhão de inscritos neste canal do YouTube e 124 mil no Instagram, rede social em que também compartilha vídeos. Um deles, publicado na última quinta-feira (20/6), mostra Elias em uma viatura da Guarda Civil Metropolitana (GCM) de Diadema. A descrição diz: “GCM de Diadema põe ordem na entrada da comunidade do Pombal.

Em um vídeo recente, publicado na terça-feira (25/6), Elias diz que “durante o patrulhamento com a Rota vespertina, por Guarulhos, nossa equipe passou por um veículo onde dois indivíduos que estavam no interior chamaram a atenção da nossa equipe”. 

Elias Junior chegou a usar trajes similares aos dos PMs em vídeos, tendo inclusive usado braçadeira em um filme que dirigiu, o “Rota Comando” de 2009.

Em entrevista à Ponte, Elias Assis Neto fala que sempre que esteve em viaturas da Rota ou de GCMs, teve autorização dos comandos. “Nenhum civil consegue sair embarcado em uma viatura, em especial na Rota, sem autorização”, diz. Ele também afirma ter treinamento para saber se comportar caso houvesse alguma situação como um confronto ou agressão. 

Em 2018, Elias processou o então comandante geral da PM paulista, coronel Nivaldo César Restivo, por abuso de poder. A argumentação ao longo de dez páginas é de que o então comandante-geral da PM proibiu o profissional de filmar ações policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e de frequentar o 1º Batalhão da PM. 

Sobre os trajes, Elias diz que não usa vestimentas oficiais. O diretor fala que peças como uma blusa da Rota com logo amarela estão disponíveis para compra nos batalhões e que civis podem adquirir as peças. 

Produto de entretenimento

Ariadne Natal alerta para o risco ao qual são expostos policiais e as pessoas que vão acompanhar o trabalho neste tipo de situação. Em caso de confronto, por exemplo, os agentes terão de proteger esses convidados e potencialmente se colocaram em perigo, diz a pesquisadora. 

No caso do youtuber estadunidense, Ariadne chama a atenção para o acesso que o criador de conteúdo teve a locais sensíveis, como a sala onde ficam armas e as imagens filmadas de câmeras de monitoramento. Mostrar esses locais pode colocar em risco a própria corporação caso, após a divulgação da localização, haja tentativa de roubo desses materiais. “Isso é totalmente inadequado”, afirma.

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A facilidade no acesso e no acompanhamento da rotina policial por criadores de conteúdo contrasta, diz Ariadne, com os pedidos feitos por pesquisadores que desejam desenvolver pesquisas com a Polícia Militar. Em geral, comenta, são pedidos autorizações formais, provas de que a pesquisa passou por comitê de ética.

Ariadne diz ainda que geralmente esses conteúdos usam de abordagem sensacionalista e preconceituosa. As comunidades patrulhadas são apresentadas como locais perigosos, onde todos são potencialmente criminosos, fala a pesquisadora. 

“O trabalho policial, que deveria ser para a proteção da sociedade, é transformado em um produto de entretenimento”, diz. “O que a gente vê nesses vídeos é o oposto disso. A gente vê sempre a prestação policial apresentada como uma intrusão. A sensação é de um filme de ação de guerra”, completa.

Para a pesquisadora, os vídeos também deixam claro uma cultura de violência. “Mortes são celebradas, o confronto é glorificado, a letalidade policial é vista como um trabalho bem feito”, afirma. As demonstrações vão contra o que diz o discurso oficial da Polícia Militar de São Paulo, que nega práticas violadoras. “Há uma dissonância muito grande entre o que se vê nesses vídeos e o discurso oficial.”

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Os conteúdos não são apresentados de forma crítica por quem os produz e divulga, diz a pesquisadora. “Eles tendem a reproduzir uma narrativa que não tem nenhum tipo de espaço para problematização, para crítica.”

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a SSP-SP, a prefeitura de Diadema e a produtora Medialand, responsável pelo programa Polícia 24h. O youtuber Gen Kimora também foi procurado pela reportagem. Não houve retorno da SSP-SP e dos responsáveis pelo programa e o vídeo.

Em nota, a assessoria de imprensa da prefeitura de Diadema confirmou a autorização dada ao youtuber Elias Junior para gravações com a GCM. A autorização, segundo a assessoria, teve objetivo de dar publicidade às ações dos guardas.

Leia nota na íntegra:

A assessoria de imprensa da Prefeitura de Diadema informa que o comunicador e youtuber Elias Junior foi autorizado pela Secretaria de Segurança Cidadã a acompanhar algumas operações Paz e Proteção da GCM de Diadema, cujo objetivo é inibir preventivamente as festas irregulares conhecidas popularmente como pancadões.

Ele apenas fez registro das imagens para divulgar nos seus canais, que têm como foco ações das forças de segurança.

A autorização foi dada com objetivo de dar publicidade às ações da GCM de Diadema e para que as pessoas conheçam como os agentes trabalham, sempre pautados no respeito aos direitos humanos. Os agentes estão sempre atuando de maneira técnica e naquilo em que eles foram treinados a exercer com uma ronda cidadã.

Os pedidos desse tipo são analisados caso a caso e apenas deferidos em ações preventivas, em que os riscos sejam minimizados, para não colocar civis em risco.

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