‘Quais vidas importam num lugar onde a morte negra é algo comum?’, indaga manifestante sobre os 80 tiros disparados contra família no Rio
Mais de 300 pessoas se concentraram em frente ao vão livre do Masp, neste domingo (14/4), com o mesmo objetivo: repudiar a ação do Exército que executou o músico Evaldo Rosa dos Santos, 51 anos, há exatos 7 dias em Guadalupe (RJ), em ato intitulado “80 tiros em nós”. Foram 80 tiros alvejados contra o carro de Evaldo e sua família, que estava a caminho de um chá de bebê no domingo passado. Os 10 militares envolvidos na ação foram presos, apenas um foi liberado depois da audiência de custódia.
O governo federal demorou para se pronunciar sobre o fuzilamento do músico. Sérgio Moro, ministro da Justiça, classificou o episódio como um “incidente lamentável”. Para o governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), a operação que tirou a vida de Evaldo foi um “erro grosseiro”. O último a se posicionar foi o presidente Jair Bolsonaro (PSL) que, depois de seis dias de silêncio, alegou que “o Exército não matou ninguém” e que a instituição não poderia ser acusada de ser “assassina”.
“Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo. Por menos que contem a história, não te esqueço meu povo”. O poema ‘Insônias’, de José Carlos Limeira, foi recitado em coro pelas mais de 300 vozes durante a caminhada. O ato que começou às 14 h, caminhou até a sede da Presidência da República em São Paulo, na altura do metrô Consolação, às 16 h e foi encerrado por volta das 17 h. Em sua maioria de pessoas negras, os manifestantes trajavam preto, como pedia a organização do evento – que foi organizado por diversos coletivos dos movimentos negros.
O ato acontece no dia em que se completa 13 meses do assassinato da vereadora Marielle Franco, morta com 4 tiros no bairro de Estácio, zona norte do Rio de Janeiro. Um crime para o qual o Estado ainda não conseguiu dar uma solução definitiva. A Polícia Civil e o Ministério Público prenderam dois suspeitos de matarem Marielle, o PM da reserva Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, conhecidos por atuarem como assassinos de aluguel, mas não foram capazes até agora de apontar os possíveis mandantes do crime. Franco foi lembrada durante todo o trajeto aos gritos de “Marielle vive e viverá, mulheres pretas não param de lutar”, sempre seguido de “povo preto unido, é povo preto forte”.
Na linha de frente, com a bandeira principal, estava Douglas Belchior, professor e integrante da Uneafro. Em entrevista à Ponte, Douglas enfatiza que é preciso cobrar responsabilidade do Estado em mortes como a de Evaldo. “O governo é responsável pelas mortes das suas policias e do Exército. Isso é a síntese e tem que ser repetido. As pessoas não morrem aleatoriamente, no Brasil inclusive há uma predileção específica para a população negra que morre nas ações cotidianas da polícia, quando o Exército ultrapassa a barreira do que é aceitável agindo nas ruas, o que já é por natureza inconstitucional é para cumprir outra tarefa. A vítima desse Exército é a mesma que a da polícia”, argumenta Belchior.
O professor destaca que o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) acentua a situação. “A partir do governo Bolsonaro isso se aprofunda ainda mais por que você tem o reforço da narrativa violenta e racista explícita de um presidente que diz que a polícia tem que matar e quando ocorre um absurdo como esse não se pronuncia e quando se pronuncia diminui a importância da ação”, argumenta Douglas.
Para a educadora popular Maria Aguiar, 49 anos, o fuzilamento com mais de 80 tiros representa cansaço de ir às ruas pedir justiça por outro corpo negro tombado. “Nós não aguentamos mais ir para a rua para falar da morte dos nossos iguais. Mas, ao mesmo tempo, é importante a gente estar aqui para dizer que estamos vivos e estamos presentes, que a gente rechaça tudo o que está acontecendo no país. Isso aconteceu com o Evaldo, isso aconteceu com Marielle, isso aconteceu com Mestre Moa e por aí vai. Estamos aqui para dizer que vidas negras importam, vamos continuar gritando e defendendo nosso direito. Eu, enquanto mulher negra, tenho esse papel e essa missão com outros e outras”, destaca Maria.
Para o cientista social Wellington Aparecido Santos Lopes, 22 anos, o fuzilamento do músico carioca mostra que o corpo negro está em território inimigo. “O que aconteceu no Rio de Janeiro, com a morte desse músico, assassinado pelo Exército, demonstra mais do que nunca a importância que as vidas negras têm nesse território. A mobilização do movimento negro no sétimo dia de morte do músico é trazer à tona um questionamento importante: quais vidas importam num lugar onde a morte negra é algo comum?”, enfatiza Wellington.
Milton Barbosa, 70 anos, coordenador nacional de honra do Movimento Negro Unificado (MNU), mortes como essa são parte de um projeto genocida que perpetua no Brasil desde a abolição da escravatura. “A extrema-direita está muito forte em todo o mundo, eles tomaram a presidência através da manipulação, colocando um presidente obtuso [Jair Bolsonaro] que por trás tem um militar como o Hamilton Mourão [vice-presidente da república]. Colocam ele lá para falar as bobagens e passar um pano nas ações criminosas desse governo. Os tiros representam o genocídio da população negra, especificamente voltado para a juventude negra. É um projeto genocida que não é de hoje, vem desde os tempos da abolição da escravatura. Eles matam negros das mais variadas formas. Mas nós nos defendemos, apesar de toda ação deles nós a maioria da população”, aponta Milton.