85% dos policiais apoiam afastamento temporário de policiais que matam, aponta pesquisa

Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública contou com respostas de 9 mil policiais de diversas carreiras; apesar de polícias reivindicarem atuação de garantia de direitos, preferência por modelo militarizado revela falta de propostas para mudanças no sistema

Formatura de PMs realizada em 2016 |Foto: Eduardo Saraiva/A2IMG/Fotos Públicas

Um policial que se envolve em uma ocorrência que resulte em morte deve ser afastado por determinado período da escala normal de trabalho para preservá-lo. Esse é considerado um procedimento adequado para 85% dos policiais de todas as categorias que responderam uma pesquisa de escuta aos profissionais, entre março e abril deste ano, envolvendo diversas questões sobre o trabalho e a carreira, lançada nesta quinta-feira (11/11) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Esse índice aumentou desde 2014, quando 77,6% dos policiais responderam que concordavam com o afastamento temporário na edição daquele ano do levantamento. Nove mil policiais responderam o questionário de 71 perguntas.

De acordo com David Marques, coordenador de projetos da entidade, o afastamento acontece de formas diferentes em cada estado, mas, pelos resultados da escuta, os policiais querem que essa medida não seja vista como uma punição e sim para preservar sua integridade. Ele cita como exemplo o extinto Proar (Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco) no estado de São Paulo, que havia sido implementado em 1995 pelo então governador Mario Covas (PSDB) e obrigava os policiais envolvidos em homicídios a se afastarem do serviço de rua por dois meses, período em que passavam por acompanhamento psicológico e reciclagem profissional. “Era um programa muito positivo, mas foi descontinuado. Então, hoje, em São Paulo, a gente ainda tem esse afastamento [dos policiais que matam] da rua, mas permanecem [atuando] no administrativo”, pontua.

Essa pauta é uma das propostas da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, movimento que denuncia violações de direitos humanos nas comunidades paulistas, que foi enviada ao Ministério Público Estadual há um ano e conta com o apoio de 195 entidades.

Na pesquisa, os policiais também concordaram como medidas para casos de letalidade a garantia do apoio psicológico (98,1%), encaminhamento para período de capacitação com cursos sobre temas de uso da força (69,7%) e oferecimento de apoio jurídico (98,3%). Marques destaca que esses pontos estão intimamente ligados com uma discussão estrutural que não se avança sobre a letalidade policial dentro das corporações e que têm relação com discursos políticos que se restringem apenas a aumento salarial. “A questão da valorização profissional dos policiais geralmente vai numa chave de dizer que precisa de uma polícia de força e que os policiais precisam ser vistos como heróis e desse herói você só pode esperar que ele mate ou que ele morra porque ele está numa guerra”, exemplifica. “Essas essas concepções, esse discurso político é muito prejudicial aos profissionais porque justamente coloca em segundo plano as condições de trabalho que esse policial tem enquanto um trabalhador”, enfatiza.

E os problemas das condições de trabalho são apontadas por eles. Em 2014, 37,7% dos respondentes apontaram descumprimento de obrigações trabalhistas pelas corporações. Em 2021, aumentou para 49,3%. Há oito anos, 59,6% indicaram que foram humilhados ou desrespeitados por superior hierárquico. Neste ano, 54,8%. Também elencaram, dentre as questões:

  • Discriminação por ser policial (66% em 2014 e 67,6% em 2021);
  • Acusação injusta de ato ilícito (17,2% em 2014 e 44,7% em 2021);
  • Foram vítimas de violência física por parte de pessoa condenada ou suspeita de ato ilícito (26,9% em 2014 e 41,7% em 2021);
  • Foram vítimas de violência física por parte de pessoa condenada ou suspeita de ato ilícito durante a folga (10,6% em 2014 e 17% em 2021)
  • Sofreram amaça de morte ou de violência por parte de pessoa condenada ou suspeita de ilícito (47,7% em 2014 e 54,5% em 2021);
  • Teve o direito de defesa negado ou cerceado pela própria corporação (9,5% em 2014 e 24,7% em 2021);
  • Foi vítima de tortura ou violência durante treinamento ou fora dele (27,9% em 2014 e 18,4% em 2021);
  • Foi ameaçado de morte ou de violência física por outro policial (8,6% em 2014 e 10,5% em 2021);
  • Foi discriminado por suas convicções políticas ou por ser simpatizante de algum partido político (14,2% em 2014 e 20,2% em 2021).

Além disso, pontuaram fatores que dificultam o trabalho policial. Dentre os itens, os maiores índices são baixos salários (98,7%), contingente policial insuficiente (98,3%), falta de verbas para equipamentos e armas (97,8%), formação de treinamento deficientes (87,7%), desvalorização da perícia técnica e produção de provas de boa qualidade (93,4%), mas também se sobressaem pontos como ênfase desproporcional das políticas de segurança na repressão ao tráfico de drogas atrapalha o trabalho policia (82,5%) e priorização das prisões, em vez da adoção de policiamento comunitário e ações preventivas, que atrapalha o trabalho policial (71,4%).

Para David Marques, esses dados demonstram um cenário desmotivação dos policiais e um descrédito pelas instituições de justiça, já que eles avaliaram que a Justiça (46,8%) e o Ministério Público (48%) atuam com insensibilidade ou indiferença ao trabalho policial, além de inexistência de uma política de segurança pública e mau funcionamento do sistema penitenciário. “Em outras pesquisas, a gente percebeu que havia muita esse jargão de ‘a polícia prende e a justiça solta’, como uma incompreensão muito grande a respeito das audiências de custódia, e o policial sente que está enxugando gelo e pode ter uma leitura de que precise de uma reorientação do trabalho”, explica. “Ao mesmo tempo, as secretarias [de segurança] costumam medir como bom trabalho policial a quantidade de abordagens, de prisões e redução de indicadores criminais, mas qual é a qualidade dessa prisão? O fato é que a segurança pública costuma ser pensada também de uma forma muito isolada e isso não contribui, sendo que os esforços da redução da violência precisam ir além da polícia”.

Ao mesmo tempo em que há esse diagnóstico, também existem contradições. No caso de iniciativas de desmilitarização, os policiais apresentaram insatisfação com o modelo de carreira e se posicionaram a favor a criação de uma nova polícia ou da unificação das polícias, com ciclo completo e de caráter civil era de 56,9% em 2014 e reduziu para 46,8% em 2021. No mesmo sentido, o apoio à unificação das polícias com ciclo completo e uma única porta de entrada de caráter militar aumentou de 9% em 2014 para 14,4% em 2021. Querem que as PMs possam se sindicalizar e ter direito à greve (73,1%), mas acreditam que elas devem ser julgadas exclusivamente pela Justiça Militar (94,8%) e reivindicam que o foco de trabalho das polícias militares seja para proteção de direitos e cidadania (76,5%).

Também são favoráveis à retirada das polícias militares e corpos de bombeiros como forças auxiliares do Exército (55,9%), mas discordam da eliminação das hierarquias militares (54,75%). Um ponto que chama a atenção é que aumentou o número de policiais que acreditam que o modelo mais adequado para a realidade brasileira seja a manutenção do modelo atual de polícias estaduais, sem alterações na divisão de atribuições entre polícias, que era 14,2% em 2014 e foi para 16% em 2021. E existe uma relação considerável de policiais (42,6%) que acham que as estruturas hierárquicas e de gestão atuais são eficientes contra os que discordam (54,9%).

O pesquisador do FBSP, David Marques, identifica que as categorias estão sem alternativas atuais e, por isso, acabam se apegando ao que conhecem, ao militarismo, que acaba sendo explorado também por políticos de direita, eixo que acaba assumindo a pauta da segurança pública. “Essa demanda pela carreira única vai vir muito mais de carreiras de postos mais baixos, como soldados e cabos, porque quando você ver pelos oficiais e delegados, esse apoio se dissolve, é mantido um corporativismo ou carreirismo, que é preservar um certo privilégio em relação a forma como estão organizadas as carreiras e as instituições policiais”, explica.

Ao mesmo tempo, Marques pontua que os policiais não enxergam o militarismo como um dos fatores da vitimização policial. “Pelos resultados, estão dizendo que estão insatisfeitos, mas não colocam isso na conta das organizações militares porque vem muito da leitura em relação às outras instituições de justiça, como se ele estivesse sozinho contra um sistema, e também porque não se abriu outra possibilidade de mudança”, aponta. “O que sobrou no lugar foi a permanência de uma ideia de militarismo, que é uma ideia forte, é uma ideia organizada porque as instituições militares na segurança pública são bastante organizadas, são bastante uniformes, e isso acabou de certa forma conformando esse cenário contemporâneo que a gente tem na segurança pública”.

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Além disso, só foi promulgado um Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, em 2019, porém, sem que essa política nacional fosse priorizada, avalia Marques. Outro ponto é que a discussão da desmilitarização, por exemplo, não é uniforme. “Existe uma ideia de que se não existissem polícias militares, você teria um um serviço de segurança melhor, teria menos truculência policial, por exemplo, mas você pega e olha o caso do Rio de Janeiro, casos recentes da Polícia Civil lá com dezenas de mortes. Então, essa questão da desmilitarização é uma grande bandeira que assume determinados signos, determinadas propostas a depender do interlocutor do grupo com quem você tá conversando”, explica. “Falta trazer uma aproximação com esses policiais porque, com a ausência de propostas, é como se a gente tivesse impondo cada vez mais os policiais para o lado desses extremismos, reduzindo a discussão da segurança pública a uma ideologização, a uma partidarização, que existe e que tem cada vez mais insistido nas corporações, como a gente vem discutindo ao longo desse ano e do ano passado.”

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