Victor Gabriel está preso há 19 dias por crime que aconteceu com sua moto, levada por um conhecido no dia 29 de abril, diz família
Era madrugada de quinta (29/4) para sexta-feira (30/4) quando a professora Amanda Frigatti Nogueira Albornoz, 42 anos, ouviu na delegacia um pedido desesperado de seu irmão Victor Gabriel de Almeida Frigatti, de 22 anos: “Procure as câmeras, eu não tenho nada com isso, procure”. Ela estava ajudando o irmão após ele ser detido por suposto envolvimento em um roubo de celular ocorrido com a sua moto na rua Vicente Ascêncio, no Grajaú, zona sul da capital paulista, por volta das 22h54 daquela quinta-feira.
Victor Gabriel é motoboy e foi preso em “flagrante” após ter se dirigido a uma base da Polícia Militar do bairro Cocaia, na zona sul da capital paulista, para denunciar o roubo de sua moto, que havia sido emprestada para um amigo horas antes do crime. Essa mesma moto foi utilizada em um roubo no Grajaú naquela noite. Ele está preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém 2, na zona leste de São Paulo.
Segundo o boletim de ocorrência (BO), elaborado às 2h55 da manhã de 30 de abril e assinado pela delegada Amanda Liberati do 101º DP (Jardim Imbuias), localizado na cidade Dutra, zona sul da capital paulista, os policiais militares Leonardo Rodrigues Aires e Gabriel dos Santos realizavam um patrulhamento quando foi irradiada via Copom (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo) a notícia do roubo que havia ocorrido na rua Vicente Ascêncio, onde houve uma colisão de veículos.
O documento policial narra que Yago Melo Nunes Almeida e mais um homem haviam roubado o celular de um motorista da Uber utilizando uma motocicleta.
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Após o roubo supostamente feito com uma arma falsa, o depoimento da vítima no BO aponta que, quando o motorista chegou em uma rua cortada por uma viela, os autores do crime viraram a motocicleta para a viela “com tudo”. Assim, a vítima bateu o seu carro em uma “tartaruga” (lombada) que havia ali e em seguida bateu o carro na traseira da motocicleta. O airbag do carro teria estourado e a vítima desceu do veículo sendo ajudada por pessoas que circulavam no local.
Quando os policiais chegaram na área do acidente solicitaram socorro e teriam visualizado o celular da vítima no bolso de Yago, bem como a suposta arma de brinquedo perto do autor do roubo, que estaria caído ao chão.
A vítima afirma em seu depoimento que o condutor da motocicleta era uma pessoa mais forte e o garupa era magro e ambos estavam de roupas pretas. Segundo o depoimento dos policiais, Yago teria dito que um indivíduo chamado Victor estava junto com ele praticando o roubo e que a motocicleta pertencia a ele.
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Na versão dos policiais apresentada no BO, ao saberem que Victor Gabriel e um amigo se encontravam no Posto Policial Militar de Cocaia, os PMs seguiram até lá ,onde Victor teria dito que “conhecia Yago e havia emprestado sua motocicleta para que ele efetuasse os roubos”. Os policiais também afirmam que Victor “admitiu que estava junto com Yago no roubo efetuado”.
Diante dos fatos, os PMs conduziram Victor e seu amigo, ambos algemados, ao Pronto Socorro Maria Antonieta, local em que se encontrava a vítima após o acidente para que fosse feito o reconhecimento por foto. Posteriormente os policiais seguiram ao 101º DP com os dois jovens.
No depoimento do amigo de Victor, ele afirma que estava na sua casa quando Victor chegou “assustado” dizendo que sua motocicleta havia sido roubada e foi acompanhá-lo até uma base da Polícia Militar, por volta das duas horas da manhã. Questionado pela delegada, ele disse que não possui motocicleta nem automóvel, que teriam ido caminhando até a base da Polícia Militar.
A delegada deliberou pela prisão em flagrante de Victor Gabriel e Yago Melo. O último segue internado no Hospital Geral do Grajaú sob escolta da Polícia Militar após ferimentos no acidente. No caso de Victor sua prisão foi convertida em prisão preventiva no dia 1º de maio pela juíza Maria Priscilla Ernandes Veiga Oliveira do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Defesa e família contestam policiais
A versão contada pela família e pelo advogado de Victor, que o defendeu até esta terça-feira (18/5), difere bastante do que foi dito pelos policiais. Segundo a família, incoerências no reconhecimento, ocultação de pessoas e provas, além de intimidações vêm ocorrendo nos últimos dias.
Apesar de Victor ter emprestado sua moto aos colegas, sua irmã Amanda aponta que ele estava na travessa Arroio Uirapuru com amigos conversando na hora em que o crime ocorreu na rua Vicente Ascêncio e logo ficou sabendo do acidente. Em seguida, segundo ela, ele foi direto ao posto policial avisar sobre o furto de sua moto junto com um amigo com quem conversava na rua. “Ele passou de vítima de um furto para assaltante. Ele não foi na casa do amigo, eles estavam juntos na rua. O Yago desmaiou na hora do acidente e não se lembra de ter acusado o Victor de ter participado do roubo”.
Na mesma noite Amanda conta que policiais foram na casa de sua mãe, por volta das 23h50 de 29 de abril. “Pediram para entrar, disseram que estavam procurando arma, que o Victor Gabriel havia sido encontrado na cena de um crime, que ele estava fazendo assaltos”.
Além disso, ela explica que em nenhum momento seu irmão confessou aos PMs que participou do crime e também não tinha nenhum ferimento por conta do acidente. “Levaram ele até o hospital Maria Antonieta e acusaram o Victor para a vítima, além disso no boletim a vítima diz que eram dois rapazes, vestidos de preto, com capacete. E depois ele reconhece o Victor Gabriel com todas as características, de altura, tamanho e vestimentas, diferente daquelas que estavam na moto, ele estava de jaqueta azul e calça jeans”.
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O nome do condutor que estaria na motocicleta e participou do roubo, é Luan, segundo a professora. No entanto, ele está foragido e teria se machucado gravemente no acidente. “O outro rapaz que saiu da cena do crime, está em estado gravíssimo, em coma, no hospital, mas ele foi completamente ocultado pelos policiais”, diz Amanda.
Victor foi preso sem o direito de audiência de custódia e para Amanda, houve tentativa de assassinato por parte do motorista da Uber. Para desqualificar esse crime os policiais colocaram no BO que o motorista perdeu o controle do veículo em uma tartaruga. “Contudo não há nenhum desnível desta natureza na rua do acidente”, diz a irmã de Victor.
No dia 2/5 outros policiais militares voltaram na casa da mãe de Amanda e confirmaram que Victor Gabriel não tem nada a ver com o assalto, diz a professora. “Eles já sabiam que os dois rapazes envolvidos no assalto estavam em situação grave no hospital, inclusive foram eles quem nos confirmaram o nome dos dois, mas a minha mãe não pegou o nome dos PMs”.
Outro desafio está em conseguir imagens das câmeras de segurança das redondezas. “A câmera que podia nos ajudar era a da casa de um policial que disse que a palavra dos policiais é a que vale. Todos negaram o acesso às imagens”, completa Amanda.
Luana Oliveira, 39 anos, professora de geografia na Rede Pública Estadual, mestranda em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, que está auxiliando a família no caso, conta que o bairro é conhecido por casos de roubo e que, por isso, os moradores que assistiram ao acidente têm medo de colaborar com as investigações. “Temos encontrado muitas dificuldades, porque essa região tem muitos casos de assalto, de roubo de celulares e assaltos a Uber.”
A população está influenciada pela mídia, segundo ela, “que propaga a ideia de que bandido bom é bandido morto”. “O que a gente precisa é que a população fique informada de que, realmente, um rapaz foi preso e estava envolvido na ação, porém, o outro não estava. E essa é a grande dificuldade.”
Agora a Rede ajuda a família com atendimento psicológico. “Estamos em contato com a mãe para que ela faça parte do projeto Escuta Liberta, para que ela possa compartilhar a experiência com outras mães que passam pela mesma situação. Para que ela se sinta um pouco mais acolhida, mais confortada”.
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Dona Eva, a mãe, está muito triste. Segundo Amanda, ela chora constantemente. “Temos olhado com atenção seu estado de saúde, já que ela é hipertensa. Sua maior dor se dá principalmente, por que pra ela, que é mãe, o filho inocente não deveria permanecer preso e continuar sendo acusado de algo que não fez. Os amigos dele nos procuram dando apoio emocional e demonstrando preocupação.”
Intimidações
Além do sofrimento causado pelo filho preso, a mãe de Victor vem sofrendo intimidação de outros moradores. “Dois dias depois da prisão do meu irmão um homem bateu na porta de casa e gritava perguntando pelo meu irmão, dizendo que ele tinha o roubado já depois de ele estar preso, chamando ele de vagabundo e depois foi embora”, conta Amanda.
Amedrontadas, a mãe e a irmã de Victor resolveram instalar câmeras na casa, como diz a professora. “Tudo isso mudou nossas vidas e também nossa forma de conviver, foi necessário colocarmos câmeras de segurança na casa da minha mãe, pois começaram a aparecer intimidações e como só moram mulheres na residência optamos por tentar nos proteger.”
Ela conta que se sente dilacerada e que está sendo horrível acordar e dormir com essa realidade. “Sabemos que por vezes a justiça é falha, diante da complexidade da vida e de vivências, contudo, nunca imaginamos que isso possa acontecer conosco. Saber que o Estado, deliberadamente, destrói a vida das pessoas, sentir na pele que o fato de ser negro, periférico te deixa mais propenso a ser ultrajado pelo Estado, vivenciar isso é uma rasteira que te deixa completamente desnorteada”.
Preso há quase 20 dias, Victor Gabriel é chamado carinhosamente de “Negão” pela família e é visto como um rapaz amoroso, carinhoso, tímido, amigo e protetor de animais, segundo a irmã. “Sempre que presente era atencioso, brincalhão e risonho. As datas comemorativas, como dia das mães, aniversários, são muito valorizadas por nossa família e ele sempre esteve presente. Imagine, como não foi o último dia das mães”, complementa Amanda.
Reconhecimento irregular
O último advogado de Victor Gabriel, Paulo Ricardo dos Santos, critica a forma como o reconhecimento foi feito, fora da delegacia e por meio de uma foto. “O reconhecimento pela vítima, passou longe de seguir os ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal, ele não foi reconhecido em delegacia junto com outros suspeitos”.
Diferentemente do que foi relatado pela vítima, Victor é negro e obeso e não vestia roupas pretas, reitera o advogado. “Conforme se verifica do caderno policial, a suposta vítima descreve o condutor da moto como pessoa parda e forte de roupas pretas. Todavia, o acusado aparece em sede policial e inclusive, podendo ser demonstrado por fotos, de jaqueta azul e calça jeans. Bem como tem pele negra e sofre de obesidade, na contramão do que supostamente teria relatado a vítima”.
Outra incoerência afirmada pela irmã de Victor está no uso de capacetes pelos supostos criminosos, o que complicaria o reconhecimento.
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Além disso, Paulo aponta em sua defesa que não foi juntado ao processo o exame de corpo de delito apesar da requisição ao IML, o que demonstraria que Victor não esteve envolvido no roubo uma vez que não tinha nenhum ferimento, diferente do suposto autor do crime que está internado em um hospital. “A moto ficou completamente destruída. A suposta vítima também foi ao hospital. Todavia, os próprios policiais em depoimentos falam que Victor Gabriel chegou sadio, caminhando ao posto policial. Como uma pessoa sai de um acidente tão grave sem nenhum arranhão?”, questiona.
Dificuldades na comunicação com as testemunhas também são relatadas pelo advogado, ainda assim, ele diz que os depoimentos serão feitos. “Pessoas que estavam com Victor na hora do crime podem muito bem atestar que ele estava com elas como assim farão em sede de juízo”, diz.
A defesa estava tomando todas as medidas cabíveis, enfrentando inúmeras dificuldades para tentar endossar a inocência de Victor Gabriel, explica Paulo. “Os amigos estão com bastante receio, tendo em vista que o posto policial acaba sendo próximo da casa de todos, mas estamos trabalhando duro”.
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Em 6 de maio, a promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de SP, Mariana Paes Barreto Scarabel, denunciou Victor e Yago. Ela justifica a prisão de ambos dizendo que “a gravidade concreta do crime que empreenderam justifica a custódia cautelar, que não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça”.
Após a denúncia, a defesa de Victor solicitou novamente a liberdade do motoboy no dia 9/5. “O primeiro pedido de liberdade dele infelizmente foi negado em 2 de maio. Entramos com habeas corpus, mas infelizmente, liminarmente foi negado e agora se abriu prazo para a vista”.
A juíza Adriana Costa, do TJ-SP, negou o pedido do advogado no último dia 12 de maio afirmando que o delito supostamente cometido é “grave e a periculosidade demonstrada em casos como este aconselha, para a garantia da ordem pública, a manutenção dos réus no cárcere”. A magistrada assume o reconhecimento feito de forma irregular, mas isso de nada interfere em sua decisão. “Inclusive, foi reconhecido pela vítima por fotografia como sendo um dos roubadores”, diz.
Diante de tantos indícios de falhas no processo, o advogado segue indagando. “Qual tipo de criminoso após cometer um assalto se dirige até um posto policial para informar que sua moto foi roubada?”
A advogada criminalista Fernanda Peron, da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio analisa que há ilegalidade no reconhecimento feito pela vítima, que aconteceu apenas por fotografia. “Atualmente, os tribunais já entendem que isso não é suficiente para provar a culpa de alguém. Ou seja, Victor está preso com base em um reconhecimento frágil, mesmo sendo primário e sem passagens pela polícia. Tudo isso, somado ao fato de que foi espontaneamente a um posto policial para informar que sua moto havia sido roubada, deveria ser levado em consideração para que, no mínimo, ele respondesse ao processo em liberdade”.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) do governo João Doria (PSDB) emitiu a seguinte nota, através da assessoria de imprensa terceirizada InPress: “o homem citado, de 22 anos, foi preso em flagrante, após ser reconhecido pela vítima e apontado pelo outro suspeito como participante do crime. Além disso, ele confessou suaoparticipação quando se apresentou na unidade policial . O caso foi registrado pelo 101ºDP como roubo, que autuou ambos os rapazes em flagrante. A autoridade responsável representou pela prisão preventiva, decretada pelo Poder Judiciário. O inquérito policial foi relatado e encaminhado para a Justiça tomar as devidas providências”.
A pasta, além de não responder sobre o pedido de entrevista com os PMs e com a delegada responsável pelo caso, não respondeu as seguintes questões:
Por que Victor Gabriel foi levado ao hospital Maria Antonieta? A delegada autorizou?
Qual foi a prova encontrada pela delegada para prender Victor em flagrante?
É procedimento da delegacia a vítima fazer o reconhecimento por fotografia?
É procedimento da investigação policiais entrarem na casa do suposto assaltante e fazerem perguntas aos familiares deles?
Onde se localiza a “tartaruga” citada no BO? As fotos mostram que não há nenhuma na rua mencionada.
Como a delegada explica o fato de Victor Gabriel estar com roupas e ter características diferentes daquelas apresentadas pela vítima?
Por que o BO foi lavrado somente às 2h55 da manhã de 30 de abril se o suposto crime ocorreu às 22h54 do dia anterior?
A promotora Mariana Paes Barreto Scarabel foi indagada sobre o reconhecimento não ter sido feito nos moldes como determina o Código de Processo Penal, bem como sobre a necessidade da prisão de Victor Gabriel, apesar de ele não apresentar antecedentes criminais, ter residência e trabalho fixos. Ela não respondeu às questões enviadas.
Procurado, o Tribunal de Justiça encaminhou nota em que explicou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”. De acordo com o texto, “os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.