Promotoria Militar denuncia PM que pisou no pescoço de mulher negra

Soldado João Servato foi acusado de lesão corporal grave, falsidade ideológica, deixar de cumprir a lei e constranger com violência dona de bar que já estava rendida quando foi agredida. Vídeo desmentiu versão de policiais que alegaram terem sido golpeados com barra de ferro durante abordagem em maio de 2020, em SP

O Ministério Público Militar denunciou o soldado João Paulo Servato por lesão corporal grave, falsidade ideológica, inobservância de lei, regulamento ou instrução e por constranger com violência a dona de um bar em Parelheiros, na zona sul da cidade de São Paulo. Imagens reveladas pelo Fantástico, da TV Globo, em julho de 2020, mostraram que o policial pisou no pescoço da vítima, uma mulher negra, que estava rendida no chão. Ela ainda levou um soco no peito e um chute na perna durante a ação, em maio daquele ano.

O cabo Ricardo de Morais Lopes, que participou da abordagem, também foi acusado por falsidade ideológica e por inobservância de lei, regulamento ou instrução. A promotora Giovana Ortolano Guerreiro argumentou que os PMs, lotados na 2ª Companhia do 50º Batalhão Metropolitano, não seguiram os procedimentos de abordagem e embasou a denúncia a partir das imagens, que mostraram as agressões, e que comprovaram que a dupla mentiu quando foi à delegacia, alegando que havia sido agredida com golpes de barra de ferro e chamada de “vermes”.

“Assim, os denunciados inseriram e fizeram inserir declaração falsa e diversa da que devia ser escrita, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, atentando contra a administração e o serviço militar”, escreveu Guerreiro. Cabe agora ao Tribunal de Justiça Militar decidir se aceita ou não a denúncia.

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O caso começou a ser investigado pela Polícia Civil como crime de abuso de autoridade ao constranger preso ou detento sob grave ameaça e submeter a situação vexatória não autorizado em lei, logo após a repercussão do caso, quando a vítima registrou um boletim de ocorrência, em 12 julho de 2020, mas acabou remetido 12 dias depois à Justiça Militar por determinação da juíza Adriana Barrea, do Foro Criminal da Barra Funda do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acolhendo o entendimento do delegado Julio Jesus Encarnação.

De acordo com o inquérito da Polícia Civil, que a Ponte teve acesso, a comerciante disse que mora no bairro há 29 anos e que abriu seu bar por volta das 13h. Disse que havia dois clientes, José e Luís (nomes fictícios) que estavam no local e que, em determinado momento, pediu a um deles para abaixar o volume do carro de som, que teria sido atendido. Depois, relatou que ouviu barulhos do lado de fora do estabelecimento e saiu, com um rodo na mão, para ver o que estava acontecendo. Ela afirma que viu José estava ensanguentado apanhando de um policial.

À Ponte, na época, ela contou que nem chegou a ser abordada e que foi agredida assim que tentou intervir contra as agressões ao cliente, tendo investido com um rodo por três vezes contra o policial, como também mostra a gravação. “O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM [Ricardo] parar, aí o outro [João] me jogou duas vezes na grade do bar”, contou na ocasião, citando ter recebido três pancadas antes de ter o pescoço pisado. “Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relatou a mulher.

Sequência mostra PM pisando em mulher e depois apontando arma para moradores | Foto: Reprodução

Traumatizada, disse na época que não lembrou ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço e que chegou a desmaiar. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava, explicou. Depois, o policial ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando estava jogada na calçada. A comerciante foi levada ao pronto-socorro do Hospital Balneário São José e depois ao 101º DP (Jardim Imbuias), junto com os outros dois clientes.

Na delegacia, os policiais deram uma versão completamente diferente. Ricardo e João alegaram que receberam chamado a respeito de descumprimento de quarentena em um bar e tão logo chegaram ao local disseram que haviam quatro pessoas consumindo no estabelecimento, mas antes de conseguirem falar com o proprietário, um deles teria fugido. Ao tentar mandá-lo encostar na parede, os policiais afirmam que Luís teria dito “Vou colocar a mão na cabeça não, tio! Vai se fuder”, que chegou a empurrá-los e resistiu ser algemado.

A dupla alegou que, nesse momento, sentiram “pancadas na cabeça e chutes” e que apareceu “uma senhora descontrolada, utilizando uma barra de ferro para agredi-los, acompanhada de outros dois rapazes, que também os agrediam com chutes e socos”. Ricardo disse que conseguiu arrancar a barra da mão dela mulher e enquanto tentavam conter os demais que a população ao redor os chamavam de “vermes”. Disse que a comerciante retornou com um rodo e reiniciou as ofensas verbais e agressões físicas aos policiais militares e que a situação só se acalmou quando solicitaram reforço. Na ocasião, como a comerciante não teve alta do hospital, ela permaneceu sob escolta e não deu depoimento no dia.

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A delegada Isabela Pereira Bahia entendeu que a mulher e os dois clientes praticaram lesão corporal contra os PMs, além de desobediência, resistência à prisão e desacato, e também solicitou as prisões dos três. Em audiência de custódia, o juiz Fabrizio Sena Fuzari determinou que a comerciante e os dois clientes respondessem o processo em liberdade, cumprindo medidas cautelares (comparecimento mensal em juízo, não estar fora de casa entre 22h e 6h, não sair da cidade sem autorização), já que os três não têm antecedentes, têm residência fixa e trabalham. Esse caso ainda está em investigação à parte.

Já sobre as agressões cometidas pelos policiais, a comerciante disse que teve conhecimento dos vídeos entre cinco a seis dias depois do ocorrido e afirmou que chegou a ir à Corregedoria da PM, mas não foi atendida “sob a alegação de que não poderiam atender de imediato em função da pandemia de COVID-19”. Ela afirma que os policiais ainda teriam voltado à vizinhança atrás de imagens.

Luís disse que não se recordava como as agressões começaram e que estava “virado” há duas noites, “bebendo e usando drogas”, quando chegou bar, tendo encontrado em seguida chegou seu conhecido José em seu veículo, e passaram a ouvir música já que o carro tinha “som potente”. Em seguida, os policiais apareceram mandando para abaixar o som, o que foi atendido. Ele disse que lembra ter sido imobilizado pelos PMs. Já José disse que assim que desceu do carro, quando abaixou o volume, começou uma discussão com os policiais e foi agredido e imobilizado e que acredita que Luís estava “descontrolado” falando para os policiais “virem para cima” e que não ouviu o que a mulher dizia e depois a viu imobilizada no chão.

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Tanto Ricardo quanto João foram intimados a prestar depoimento na Polícia Civil, mas ambos ficaram em silêncio e disseram que se manifestariam em juízo. Com isso, o delegado Julio Jesus Encarnação entendeu, com base na Lei 13.491/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer e que transfere para a Justiça Militar a investigação de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, que é “competência da Justiça Militar Estadual e correlata atribuição investigativa criminal da corregedoria da instituição miliciana estadual a apuração das infrações da legislação penal especial cometidas por policiais militares, em especial dos delitos de abuso de autoridade”. O Ministério Público Estadual também seguiu o entendimento do delegado, que acabou sendo acatado pelo Tribunal de Justiça.

O que diz a polícia

A Ponte procurou as defesas do soldado e do cabo bem como as assessorias da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar..

A In Press, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota*:

As apurações sobre o caso prosseguem pelas polícias Civil e Militar, em cumprimento às cotas solicitadas pelo Poder Judiciário. Os policiais citados seguem afastados do serviço operacional.

*Reportagem atualizada às 18h34, de 17/06/2021, após recebimento de resposta da SSP.

Correções

*Reportagem atualizada às 18h34, de 17/06/2021, após recebimento de resposta da SSP.

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