Soldados receberam elogio individual por “diligência exitosa” em que apreenderam três armas e ocorreu “auto de resistência” dos irmãos Solon, Marlon e Bruno Silva Matos, em Anagé, interior do estado, após buscas por suspeitos de assassinatos de PMs; corporação apagou postagem depois de questionamento da Ponte e disse que “não comemora mortes”
Dois soldados do 3º Pelotão de Anagé foram homenageados pelo coronel Ivanildo da Silva, que está à frente do Comando de Policiamento da Região Sudoeste da Bahia, e pelo major Alécio Marques de Andrade, comandante da 79ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM) na cidade de Poções, um dia depois dos irmãos ciganos Solon, Marlon e Bruno Silva Matos terem sido mortos em ação policial, em 28 de julho, quando a corporação se mobilizou em buscas por suspeitos de assassinatos de dois PMs em Vitória da Conquista.
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Os certificados de “elogio individual” conferidos a Cleonildo Silva Lima e a outro soldado que apenas identificamos como Vasconcelos são decorrentes dessa ação, que é descrita no documento como uma “diligência exitosa que culminou na apreensão de três armas de fogo e auto de resistência de três ciganos que participaram do duplo homicídio”. Já na postagem na rede social, a ocorrência é apenas referida como de “alto grau de relevância operacional recentemente na cidade de Anagé”, que é vizinha a Vitória da Conquista. Após a Ponte questionar a assessoria da corporação sobre a homenagem, a postagem foi apagada do perfil no Instagram da 79ª CIPM. O major Alécio Andrade também tinha repostado as fotos e as apagou.
A reportagem também pediu entrevista com os dois comandantes. O coronel Ivanildo aceitou dar entrevista por telefone, mas recuou no horário combinado. Marcamos para o dia seguinte, mas disse estar em reunião. Ele solicitou que a Ponte entrasse em contato com o Capitão Moreira o qual disse que responderia as perguntas por nota. Ele disse que “as medidas tomadas pelo Comando do CPR Sudoeste visaram capturar um grupo específico de criminosos, não todo um povo ou uma etnia, em absoluto” e que “a PMBA não comemora mortes, sejam elas quais forem, e que nossa missão constitucional é prover segurança ao nosso Povo e todas as suas manifestações de gênero, etnia, crença e origem”.
Não foi respondida a questão sobre a exclusão das postagens. O capitão enfatizou que “nas situações onde, infelizmente, houve óbito, esse se deu por ação de resistência à prisão por parte de alguns indivíduos que foram, logo após, identificados como integrantes do grupo que assassinou os policiais, esclarecendo que, nos dias posteriores ao atentado, diversas pessoas foram abordadas e não há registro formais de maus tratos ou abuso”. Ainda afirmou que denúncias de abusos podem ser realizadas à Corregedoria e a órgãos competentes.
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Em 13 de julho, o soldado Robson Brito de Matos, 30, e o tenente Luciano Libarino Neves, 34, foram assassinados a tiros no município de Vitória da Conquista. Ambos eram lotados na 92ª CIPM Rural (Companhia Independente de Polícia Militar) e estavam atuando à paisana como P2, policiais que são credenciados no Comando de Operações de Inteligência da corporação e fazem investigações. A PM afirma que eles estavam apurando sobre um acampamento de ciganos no qual os ocupantes andariam armados e praticavam crime de receptação no distrito de José Gonçalves.
A investigação da Polícia Civil aponta que, quando a dupla foi pedir informação sobre o acampamento em uma loja, a sobrinha do proprietário avisou um adolescente de 13 anos que homens estavam procurando o local. O menino avisou o pai Rodrigo da Silva Matos. Ele teria ido com os outros filhos atrás dos tais homens e dispararam contra eles, levando armas e celulares dos policiais, que não resistiram. De lá para cá, oito ciganos dessa mesma família, suspeitos de envolvimento nos homicídios dos PMs, foram mortos – sete deles em ações da polícia em busca dos autores do crime. O adolescente, chamado Morais, que ficou em casa no dia do crime, foi morto por um atirador em uma farmácia quando estava com a mãe, no dia seguinte ao ter prestado depoimento à polícia confirmando a informação.
Moradores de origem cigana denunciaram invasões de casas e intimidações enquanto o Instituto Cigano do Brasil ainda relatou caso de tortura que teria sido cometido contra uma idosa e três adolescentes parentes da família Silva Matos durante as buscas. A entidade também pede investigação sobre as circunstâncias das mortes, como a Ponte mostrou em 4 de agosto. A Defensoria Pública chegou a fazer um pedido de proteção para as mulheres e crianças da família Silva Matos pelo medo de perseguição.
À Ponte, o presidente do instituto Rogerio Ribeiro encaminhou nota repudiando as homenagens. “O ICB não só manifesta sentimento de dor, mas também solicita que haja o mínimo de respeito pelas mortes dos Ciganos, quando o policial diz que vai respeitar a vida, é a vida de todo mundo. E a polícia não pode infringir a lei”.
No dia 28 de julho, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública publicou no site oficial sobre a localização de três ciganos suspeitos e que foram mortos em ação da Polícia Militar, em Anagé. Depois, eles foram identificados como Solon, Marlon e Bruno. A nota diz que eles foram encontrados “às margens do rio Gavião, após uma denúncia anônima relatando a presença de homens armados” e que um quarto teria fugido. O texto diz que policiais da 79ª CIPM e da Delegacia Territorial foram “atacados a tiros” e que o trio ficou ferido, foi socorrido ao hospital da cidade, mas não resistiu. O texto diz que a arma do tenente Luciano foi encontrada com eles, apesar da Polícia Civil ter dito que foi localizada em 22 de julho em um terreno. A assessoria da pasta corrigiu a informação e alegou que a arma do soldado Robson que foi posteriormente encontrada no dia 28.
Ainda naquela tarde, imagens dos corpos de Solon, Marlon e Bruno, amontoados um do lado do outro numa sala de azulejo branca, eram registrados por um homem que mostrava as marcas de tiro e manuseava um dos braços do corpo de um deles para mostrar os ferimentos. A filmagem viralizou em grupos do WhatsApp. “Foi pouco para essa desgraça, tudo ruim, olha aqui a testa, a ponto 40 [arma usa pela polícia] furou bonito”, comemorava o homem ao aproximar o aparelho para um rosto de outro. “Foi tarde, vagabundo”, prosseguia. Na época, a Polícia Civil da Bahia disse que as “imagens estão sendo analisadas e o hospital foi oficiado para apresentar funcionários que tiveram acesso aos corpos” e que um inquérito foi aberto pela delegacia local para apurar o caso.
Em novo questionamento sobre as mortes dos ciganos, a assessoria da Polícia Civil disse que “as apurações prosseguem, não temos novas informações para fornecer”.
Sobre os assassinatos dos PMs, o promotor José Junseira Almeida de Oliveira ofereceu denúncia por homicídio qualificado, corrupção de menores e associação criminosa contra Rodrigo da Silva Matos, pai dos demais ciganos e o único preso, e os filhos Diogo, Solon, Marlon e Bruno, no dia 26 de julho. O Tribunal de Justiça não se manifestou se aceita ou não a acusação. Diogo ainda é procurado.
Ministério Público pede para arquivar apuração de violações contra moradores ciganos
De acordo com documento obtido pela reportagem, o Ministério Público Estadual recebeu denúncias encaminhadas pelo Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, no dia 21 de julho, e outra proveniente do Instituto Cigano do Brasil para apurar dois pontos: possível violação de Direitos Humanos de Comunidade Cigana em Vitória da Conquista e possíveis crimes de abuso de autoridade, tortura, perseguição e ameaça por parte da Polícia Militar no município. A Promotoria Regional de Vitória da Conquista foi designada para a apuração.
Sobre as mortes de Ramon, Arlan, Darlan, Solon, Marlon (que é colocado como Diogo por causa de uma confusão na divulgação do nome), Bruno e Lindomar, que morreram em ações da polícia, o único caso descrito pela Promotoria com maior profundidade é o de Ramon.
Quando a Ponte mencionou essa ocorrência, não havia detalhes de quais e quantos policiais participaram da ação. Constava que Ramon foi morto por policiais militares da 78ª CIPM de Vitória da Conquista, que alegaram estar em buscas dos suspeitos quando, por volta das 17h de 13 de julho, viram três indivíduos na região de Lagoa das Flores e que foram recebidos a tiros. Ele foi atingido, socorrido ao hospital, mas não resistiu. Um revólver calibre 38 foi apreendido.
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No pedido de arquivamento do MPE, que pediu diligências a respeito, é descrito que o laudo do IML (Instituto Médico Legal) identificou que Ramon foi atingido por três tiros no peito e um na coxa, tendo sido socorrido pelo Peto (Pelotão de Emprego Tático Operacional) ao hospital, onde ainda apresentava sinais vitais quando da sua entrada. Também relatou que o perito não mencionou “zona de tatuagem” ou “zona de esfumaçamento”, expressões que indicam tiros a curta distância.
O tenente Cristiano Rebouças Bulhões, que comandava a guarnição de quatro policiais que participaram da ação, disse ao MPE que “viu três homens entrarem dentro de um matagal efetuando disparos de arma de fogo”, que “desembarcaram da viatura e revidaram injusta agressão tendo Ramon da Silva Matos [sido] ferido por disparos de arma de fogo”, que “o resistente foi conduzido ao Hospital de Vitória da Conquista, vindo posteriormente à óbito”. Os demais também corroboraram a ação.
O relatório destaca que, num primeiro momento, pesa a alegação de legítima defesa, mas que será analisada pela Promotoria que atua na Vara do Júri. “O exame do laudo acima mencionado reforça a certeza de que inexistiu qualquer desproporção na reação dos policiais militares, que se encontravam a perseguir os responsáveis pelos homicídios de seus colegas de farda, e que teriam reagido aos disparos contra eles efetuados, isto a despeito da quantidade de ferimentos verificados pelos peritos”, diz o texto.
Também afirma que não recebeu “qualquer registro ou evidência de abusos por parte dos policiais nas buscas por esse cidadão, invasão de domicílios, agressões físicas, torturas, nenhum crime comum foi registro na Polícia Civil, inexistindo qualquer indício de materialidade delitiva nesse sentido”.
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Sobre Arlan e Darlan, cujas mortes ocorreram em 14 de julho na cidade de Itiruçu, a Polícia Civil escreveu que policiais militares da CIPE Central (Companhia Independente de Policiamento Especializado) do município vizinho de Jequié, e da 93ª CIPM informaram que avistaram um Cross Fox suspeito que tentava ultrapassar a barreira policial. Ao tentarem abordá-lo, disseram que o carro fugiu e passou a disparar contra eles. Os PMs, que também não são identificados, disseram que revidaram e atingiram Arlan e Dalvan, que morreram. Com eles, estariam um revólver calibre 38 e um revólver calibre 32. A Promotoria no relatório linka uma reportagem do G1 noticiando o caso e afirma que foge da sua atribuição pelo caso ter ocorrido em outra cidade.
A justificativa é similar sobre os casos de Solon, Bruno e Marlon, em 28 de julho, e de Lindomar, que foi morto na cidade de Aracatu, em 30 de julho.
Sobre Morais, a Promotoria afirma que o assassinato tem que ser investigado pela Polícia Civil. “Não é possível concluir, de logo e com as evidências apresentadas, que o autor da morte de MORAIS tenha sido um policial militar, posto que a morte não se deu durante um confronto armado e as imagens divulgadas apresentam uma pessoa não identificada, de capacete e blusão preto, como responsável pelos disparos”.
Em relação à “alegações de perseguição, fechamento de estradas e ocorrência de danos ao patrimônio da comunidade cigana”, o MPE informou que pediu informações à Polícia Rodoviária Federal a qual respondeu que o policiamento foi reforçado nos dias 13 e 14 de julho “a fim de proporcionar maior segurança aos usuários da rodovia, haja vista que existia a possibilidade dos responsáveis pelo fato, em fuga, tentarem tomar veículos e/ou fazerem pessoas reféns” e que nenhum fato “anormal” foi encontrado.
A Promotoria afirma que visitou o acampamento da família, que foi queimado no dia do crime não se sabe por quem. O relatório informa que o local foi encontrado abandonado e não houve “ocorrência de crime incêndio ou dano a patrimônio na Delegacia de Polícia no mês de julho e, portanto, nenhuma vítima pôde, ou poderia, ser identificada”. Também não teria localizado pessoas no local que pudessem prestar depoimento e que, por isso, não teria elementos para prosseguir a apuração.
O Instituto Cigano do Brasil havia pedido apuração das mortes do adolescente do adolescente Adenilson Almeida, 15, que teria sido baleado ao ter a casa invadida em 13 de julho, e de Diego Santos Sousa, 39, cujo corpo foi encontrado carbonizado dentro do próprio carro no povoado de Boa Sorte, no sudoeste da cidade, em 18 de julho.
O MPE aponta que o pai de Diego informou à Polícia Civil que ele “trafegava em alta velocidade quando o pneu do veículo estourou, e, ao perder o controle do carro, o veículo bateu em um barranco e acabou pegando fogo”. O relatório informa que a causa da morte foi por carbonização e que não foi identificada ação externa, além de ele não ter relação com os ciganos.
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A Promotoria aponta que o pai do adolescente disse à Polícia Civil que tinha duas armas em casa e que respondia uma investigação de posse ilegal. O filho “no mês de março se envolveu em uma confusão, pegou uma espingarda do depoente e atirou contra um desafeto chamado Zé do Açougue”, segundo ele. E que Adenilson “era amigo dos
ciganos que moravam no distrito, inclusive recebia objeto deles para comercializar com os moradores”. De acordo com o pai, dois homens encapuzados de estatura baixa invadiram a casa a procura de “Cara Suja”, que seria o filho, e atiraram contra ele.
O MPE afirma que o caso tem que ser investigado pela Polícia Civil. “É difícil dizer, apesar de existirem indícios de um relacionamento entre o adolescente ADENILSON e possíveis membros da família SILVA DE MORAIS [Matos, não Morais], não existem elementos suficientes, neste momento, que possam vincular o homicídio deste com qualquer atuação da Polícia Militar”.
Sobre as demais violações contra moradores, incluindo a denúncia de tortura contra uma idosa e três adolescentes, a Promotoria critica que o Instituto Cigano do Brasil não encaminhou endereço e nomes das vítimas e testemunhas nem identificação dos supostos policiais militares que teriam cometido os crimes, o que levaria a arquivar o caso. O documento é assinado pelos promotores Beneval Santos Mutim, Marcelo Pinto de Araújo, Carla Medeiros do S. Nunes, Carolina Bezerra Alves, Caio Graco Neves de Sá e Gustavo E. de Oliveira Lima e Souza.
Questionado pela Ponte, Rogerio Ribeiro disse que o MPE não promoveu meios de garantir a segurança das vítimas, que estão sob os cuidados do instituto, e que pediu a apuração do caso pelo Ministério Público Federal. “Diante das falhas e insegurança para proteger as testemunhas que se encontram apavoradas e resguardadas, os órgãos do sistema estadual não mostram condições de seguir no desempenho da função de investigação e proteção, pressupõe que órgãos estaduais estejam falhando, em geral, porque há um envolvimento da polícia local”, escreveu. O ofício foi protocolado na segunda-feira (16/8).
O que diz o Ministério Público da Bahia
Procurado pela reportagem sobre o pedido de arquivamento e a apuração das demais mortes, a assessoria do Ministério Público da Bahia não respondeu até a publicação.