“Eles focam demais na comunidade”, diz Camila Paes da Silva, mãe de Lucas, desaparecido desde dezembro de 2020 com outros dois meninos. Em maio polícia prendeu 17 pessoas como parte da investigação, mas não indica o que aconteceu com detidos
Sentada sobre uma mureta do condomínio Travessa Ascendino, na favela do Castelar, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Camila Paes da Silva, 29, esbraveja que a Polícia Civil do Rio de Janeiro deveria repensar suas prioridades quanto à investigação do desaparecimento das três crianças que mobilizou a cidade e o país. Dentre elas está seu filho, Lucas Matheus da Silva, 9, que sumiu junto de Alexandre da Silva, 10, e Fernando Henrique, 11. “Para mim, a polícia tinha que esquecer aqui, a comunidade. Eles focam demais aqui dentro”, explicou ela, reforçando que os meninos não estariam na favela.
Sua opinião ressoa com a das outras duas mães, Ana Jéssica da Silva, 31, responsável por Alexandre, e Tatiana da Conceição Ribeiro, 31, responsável por Fernando. Dando apoio umas às outras desde 27 de dezembro de 2020, quando os garotos desapareceram deixando quase nenhum rastro, as três defendem que a polícia pouco as ouve e perde tempo com teorias que não soam plausíveis para quem reside na comunidade. “Para mim, esse negócio do saco de ossos foi para despistar a polícia”, disse Ana Jéssica, referenciando a linha que a polícia seguia de que o tráfico teria mandado um morador jogar as ossadas dos garotos num rio.
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Tudo começou quando um homem foi à delegacia de homicídios denunciar que o próprio irmão estaria envolvido no desaparecimento. Segundo ele, as crianças teriam sido assassinadas por José Carlos dos Prazeres Silva, conhecido como “Piranha”, e os corpos teriam sido depositados num riacho ao fim da Estrada Manoel de Sá. Nessa versão, o irmão foi o responsável por se livrar do saco com a ossada. O motivo para tamanha brutalidade teria sido o roubo de um passarinho. A ossada, que foi encontrada no dito local no dia 30 de julho, provou-se, após perícia, ser de animais, não dos garotos. Os resultados do laudo foram divulgados no dia dois de agosto
Para essa narrativa toda, as mães respondem com desdém. Quase que em uníssono, as três repetem: “Meu filho não rouba passarinho.” Tatiana complementa que o tráfico local até poderia reclamar com os pais, caso as crianças tivessem roubado um animal, de fato, porém “matar meus filhos [o tráfico] não ia fazer.” Ela, assim como as outras duas, tem entre as principais suspeitas a milícia local.
Comando Vermelho Fé em Deus e Nas Crianças
A Ponte conversou com um representante do Comando Vermelho (CV) na região, que não quis se identificar. Ele reclamou que o número de operações só aumentou desde que as crianças desapareceram. “A polícia quer enquadrar nós… Já perdemos muitos [nessas operações].” Com a história do passarinho e da ossada, o rosto de membros da facção voltaram a ser expostos na mídia, e parte da opinião pública voltou contra eles. Para o representante do CV, isso é muito possivelmente armação da milícia, que hoje domina a maior parte das favelas de Belford Roxo.
As comunidades de menor porte no município estão sob gestão do Comando Vermelho enquanto as maiores ficam quase todas com as milícias, sobrando uma pequena parte para o Terceiro Comando Puro, facção que rivaliza com o CV e fecha acordos com os milicianos a fim de não ser destituída do poder pelos paramilitares. A Baixada Fluminense, num todo, sofre grande avanço das milícias e proporcional recuo do CV, como mostra o mapa publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência-USP, realizado em conjunto com várias entidades. Por meio desta pesquisa, sabe-se que hoje 57% do território do estado do Rio de Janeiro está sob comando das milícias, enquanto o CV ocupa somente 18,2%.
O representante da facção reforça: “Miliciano que mata criança assim, a gente não!”
Ele cita dois morros de Belford dominados por milícias: Areia Branca e Cantão, e suspeita principalmente da milícia de Márcio Cardoso Pagniez, vulgo Marcinho Bombeiro, ex-vereador pelo PSL, preso por suspeita de homicídio em 2019. O político é acusado de ser um dos principais chefes de grupos paramilitares na Baixada Fluminense. O representante do CV desconfia que, se não matou as crianças, a milícia pelo menos contratou os dois irmãos para criarem a narrativa da ossada no rio. Tanto o líder do CV na região quanto as mães acreditam que uma terceira parte pode ter tomado interesse nos meninos e teria capturado eles por motivos escusos, para só então os rivais da facção se aproveitarem para incriminá-los.
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“A facção não mata criança. CVFDNC: Comando Vermelho Fé em Deus e Nas Crianças, é o nosso lema. Se eu faço mal a uma criança hoje, se eu mato uma criança, amanhã o pessoal do topo pede minha cabeça. A gente não faz mal a criança”, explana.
A visão de que a facção não faria algo do tipo é dividida pelas mães também. Ana Jéssica disse: “Ele não roubou passarinho igual tão dizendo por aí. Tão falando que foi o tráfico que matou, mas não foi o tráfico que mexeu com essas crianças. Isso a gente tem certeza. O tráfico não faz isso com criança. Se fosse de roubo mesmo eles chegariam pra cima da gente e falariam.”
17 presos
Em maio deste ano, a Polícia Civil prendeu 17 pessoas pelos desaparecimentos de Belford Roxo. Na época, as investigações apontavam para a instauração de um “tribunal do tráfico” na região, por um grupo que, segundo as autoridades, estaria cometendo roubos de cargas também. O representante do CV diz não estar envolvido nessas acusações.
“Esses cara aí que foram presos tinha de tudo, eles pegaram gente que tava com mandado por bater na esposa e puseram junto para acusar nós. Mas só quatro dos que foram presos eram dos nossos aqui [do Castelar]”, relata.
A acusação de tribunal do tráfico — prática que consiste numa pequena corte penal do tráfico que julga moradores que possam ter rompido com os códigos morais da comunidade — se dá porque os traficantes expulsaram um homem da comunidade, após torturá-lo por supostamente admitir que teria sumido com os garotos. Desse crime eles assumem autoria e justificam que o homem falou que teria sumido com os três garotos e que, portanto, deveria ser investigado. “Alguma coisa ele tem, senão não ficava falando assim por aí.”
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Nem a Polícia Civil nem o Ministério Público responderam às questões (quem são, onde estão, quais acusações de cada um) quanto aos 17 presos.
Em nota a Polícia Civil disse que “prendeu 17 homens durante operação para cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão contra traficantes que atuam no Complexo do Castelar, em Belford Roxo, em 21 de maio deste ano. Os suspeitos são apontados como responsáveis por uma espécie de tribunal do tráfico na região, além de diversos roubos de veículos e de cargas na Baixada Fluminense. Eles são investigados pela delegacia de homicídios, ainda, por envolvimento no desaparecimento dos três meninos da comunidade e por provocar a tortura e expulsão de uma família da localidade, acusando falsamente pelo sumiço das crianças com o objetivo de prejudicar o trabalho dos policiais.
A Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF) trabalha com algumas linhas de investigação. Entre elas, a participação de traficantes da região. No entanto, não é possível detalhar os procedimentos investigatórios, uma vez que a divulgação pode atrapalhar a elucidação do caso.
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Conforme informado anteriormente, as investigações e buscas continuam. Novas oitivas de testemunhas e outras diligências estão em andamento. A Polícia Civil acredita que em breve dará mais essa resposta à sociedade e às famílias.”
Em nota, o Ministério Público Estadual, questionado quanto à identidade, as acusações e o paradeiro dos presos, respondeu apenas que “a 1ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada dos Núcleos Duque de Caxias e Nova Iguaçu informa que acompanha as investigações que prosseguem em conjunto com a DHBF e, por ora, não irá se manifestar.”
No dia do desaparecimento
Futebol, pipa e bolinha de gude estavam entre os três passatempos favoritos dos garotos desaparecidos. Juntos, desbravavam o bairro do Castelar, subindo e descendo as vielas como quem conhece bem o mapa. Tinham o hábito de sair pela manhã para brincar com colegas da comunidade e voltar para casa para almoçar. “No dia que ele sumiu, eu fiz macarrão, frango assado e maionese — a comida favorita dele”, relembra Tatiana, com pesar na voz. Bastou que nenhum deles voltasse para o almoço para que a família ficasse em alerta.
Ana Jéssica foi a primeira a perceber a falta, logo Tatiana notou também e, por fim, Camila foi avisada pelas amigas. Juntas rodaram o morro todo, sem sinal dos garotos, recebendo aqui e ali dicas de onde poderiam estar, até chegar na feira de Areia Branca — local fora da comunidade e zona proibida para os garotos. Conversando com feirantes e transeuntes, descobriram que os três não só estiveram lá (o que foi comprovado por uma imagem de câmera recolhida pela polícia), como receberam gratuitamente um empadão de almoço de um dos comerciantes.
Segundo as informações que elas colheram, os meninos vinham frequentando a feira escondidos havia algum tempo, o que pode tê-los exposto a algum predador da região. A busca não parou por ali, as três viraram a madrugada rondando as ruas de Belford Roxo. A ficha só viria a cair três dias depois, quando veio a certeza de que nenhum deles atravessaria a porta tão cedo. “Eu choro muito de casa, daí o pequenininho [o filho de 6 anos] fala pra mim que vai voltar. Ele fala ‘mãe, ele vai voltar, ele não tá morto, tá preso com alguém’”, desabafa Tatiana.
Para Ana Jéssica, os primeiros dias foram os mais difíceis. “Não conseguia nem comer nem dormir direito.” Ela continua: “No meu coração, acho que ele tá vivo. Eu acho que tem alguém segurando eles, prendendo eles.” E Tatiana complementa: “Enquanto não vejo o corpo, tenho esperança de achar eles vivos!”