Chamada ao 190 que teria motivado ação do Baep de São José do Rio Preto partiu de número que seria usado por cabo que participou da operação em 2019; TJ aceitou acusação contra 11 policiais por fraude processual pela denúncia falsa e por recolherem as armas do local
A denúncia anônima que gerou a atuação de 11 policiais militares do 9º Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) e matou seis pessoas em outubro de 2019 teria partido de um número utilizado pelo cabo Leandro Mariano, que participou da ação em outubro de 2019 em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, segundo o Ministério Público e a Polícia Civil. Os PMs haviam alegado que receberam a chamada com informações de que um grupo estaria em uma casa com armas de grosso calibre e planejavam um assalto a caixas eletrônicos, mas a ligação foi feita minutos depois que disseram terem sido acionados para atender a ocorrência. Na incursão, afirmam que revidaram os tiros disparados pelos suspeitos.
Em dezembro de 2022, a juíza Carolina Marchiori Bueno Cocenzo absolveu os 11 policiais militares das acusações por entender que não havia provas suficientes para uma condenação. Ela acatou os pedidos da defesa dos réus e do Ministério Público, que voltou atrás na acusação. “Os policiais militares réus atenderam ocorrência na qual houve confronto, troca de tiros. A retirada das armas da posse das vítimas foi realizada para preservar a segurança e vida dos sobreviventes, conforme ficou demonstrado pela prova oral. Além disso, a entrega das armas foi feita à autoridade logo após o ocorrido, bem como a comunicação de que as armas teriam sido retiradas para segurança das pessoas. Além disso, não se comprovou que a chamada proveio de próprios integrantes da polícia militar”, escreveu a magistrada, que aplicou o princípio in dubio pro reo, ou seja, na dúvida, a favor do réu. A sentença transitou em julgado no mesmo mês, ou seja, não há mais possibilidade de recurso.
O Ministério Público Estadual (MPSP) acusou os PMs por fraude processual devido ao que seria uma falsa ligação ao 190 e também por conta de terem recolhido as armas que atribuíram às vítimas, prejudicando a perícia. O crime tem pena de detenção, de três meses a dois anos, e multa. Nenhum deles foi preso pois o crime é considerado de menor potencial ofensivo. A Promotoria, no entanto, entendeu que o confronto aconteceu e que não houve crime de homicídio. “Após o confronto, os denunciados modificaram a cena do crime, removendo do local as armas [que] estariam em poder dos indivíduos alvejados, prejudicando o trabalho pericial e, pois, assim agindo, subtraíram do conhecimento dos peritos criminais a exata posição das armas, o que seria essencial para que pudesse identificar eventual excesso na ação policial que resultou na morte de seis indivíduos”, escreveu a promotora Valéria Andréa Ferreira de Lima. A acusação foi aceita pelo Tribunal de Justiça na sexta-feira (27/8).
Para o advogado e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais Ariel de Castro Alves, se os policiais militares fabricaram a denúncia, a investigação deveria apurar uma simulação de confronto. “Eles justificam atos irregulares dos PMs, de não preservarem o local do crime, para favorecerem os próprios PMs. Policiais civis e a Promotoria ao fazerem isso se omitem no cumprimentos de suas funções”, analisa. Dos seis mortos, apenas um, Weverton Jesus Souza Nader, 25, foi atingido na cabeça. Foram cerca de três a seis disparos em cada um. “Disparos que atingiram regiões letais dos corpos, principalmente nas cabeças e peitos. Existem indícios de homicídio”.
De acordo com o boletim de ocorrência, participaram da ação de 12 de outubro de 2019 os tenentes Luis Henrique Pinheiro e Vitor Silva Cassiolatto Souza, os sargentos Márcio da Silva Tomé e Osvaldo Brolini Junior, os cabos Leandro Mariano, Bruno Henrique Pereira Dias e Marcelo Vitor da Silva e os soldados [nome retirado por ordem judicial], Guilherme Guimarães, Rafael Augusto Vieira e Renan Keoma da Cruz Souza. Quem narra o que aconteceu na Delegacia de Plantão de São José do Rio Preto é o tenente Vitor Cassiolatto ao informar que, devido a uma denúncia anônima, foram acionados via Copom (Centro de Operações da PM) para ir até uma casa na Rua Dois, no bairro do Alvorada, “onde indivíduos estariam na posse de armamento longo e de grosso calibre” e tinham se reunido para planejar roubos a caixas eletrônicos. O chamado teria ocorrido, segundo eles, por volta das 21h22.
O tenente afirma que os 11 chegaram juntos ao local, sendo que o portão estava aberto. O cabo Bruno Dias, segundo ele, ficou “na primeira casa onde haviam diversos moradores e ali ficou a fim de protege-los”. No caso, um casal é identificado como testemunha, mas o relato deles não aparece no boletim de ocorrência. Em seguida, no final do corredor, ele afirma que “um indivíduo trajando bermuda colorida e camisa cor cinza disparou contra os policiais” usando uma pistola Taurus calibre 380 de numeração raspada, cuja ação foi revidada por ele e pelo soldado Renan Keoma. Em seguida, narra que os policiais se separaram, e depois que “um indivíduo trajando camiseta azul e bermuda bege portava um revólver da marca Taurus calibre 38” atirou no peito do cabo Leandro Mariano, mas o projétil ficou alojado no colete à prova de balas, e o homem foi alvejado.
Depois, todos os outros quatro baleados no registro são resumidos a situação de confronto. O tenente Luiz Henrique e o soldado Guilherme Guimarães “confrontaram” “um indivíduo que trajava bermuda preta estampada e camiseta cor laranja” que estaria portando uma pistola da marca Taurus calibre .40, cujo uso é restrito das forças de segurança pública. O sargento Osvaldo Brolini, o soldado [nome retirado por ordem judicial] e o cabo Marcelo Vitor “confrontaram” “um indivíduo de camiseta regata de cor branca que portava um fuzil da marca Colt, modelo M4, calibre 5,56 e outro de camiseta preta e bermuda cor preta e que portava um revólver da marca Rossi, calibre 38 com cabo em madeira”. Os PMs acionaram o resgate Grau (Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências) e um dos médicos constatou as mortes dos seis no local. O cabo Leandro Mariano teve uma lesão leve no peito e foi ao Hospital de Base. Todas as armas foram apreendidas para perícia, mas o boletim de ocorrência não informa que as armas atribuídas às vítimas haviam sido recolhidas pelos policiais.
Posteriormente, familiares reconheceram as vítimas: Fabiano Alves Alexandre, 21, Silvano Francisco dos Santos Neto, 28, Wellington Rodrigues Veríssimo, 22, Weverton Jesus Souza Nader, 25, Felipe Anthony Baptista, 19, e Andrey Luiz Silveira, 26.
Em fevereiro deste ano, a Defenda PM (Associação de Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar) ainda tentou barrar a investigação dessas e de outras quatro mortes praticadas pelo Baep de São José do Rio Preto ao alegar que o processo seria competência da Justiça Militar. Os pedidos foram rechaçados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Um dos depoimentos que não se desdobrou em uma apuração no relatório da Polícia Civil é o da companheira de Weverton Nader. Ela disse na delegacia, em novembro de 2019, que quando conheceu Weverton também conheceu um homem chamado Rafael Soares, que depois soube que seria policial militar. A mulher afirma que ele tentou estabelecer relacionamento com ela, mas, devido à negativa, passou a atormentá-la e perseguí-la, inclusive na época em que Weverton ficou preso por tráfico de drogas, entre 2017 e 2018.
Ela denuncia que esse PM teria invadido sua casa cerca de oito vezes, em uma delas, ao vasculhar todo imóvel, ainda teria zombado dos retratos de Weverton e desenhos feitos por ele, dizendo que ela era “uma pessoa muito burra, que não queria algo melhor na sua vida, pois preferia ficar na porta de cadeia” e ameaçando de que sua vida “não iria ficar assim”. A mulher também relata que o suposto policial, que seria da Caep (Companhia de Ações Especiais de Polícia), ainda teria invadido a casa de Weverton pelo menos quatro vezes após ter deixado o sistema penitenciário, mas não encontraram nada de ilícito porque o rapaz teria deixado a criminalidade depois que foi solto.
Por causa disso, segundo ela, Weverton se mudou para a cidade de General Salgado, no interior paulista. Naquele dia 12 de outubro, teria dito à ela que precisava “resolver negócios” em São José do Rio Preto. Às 20h50, ainda teria feito uma chamada de vídeo com ele, em que o viu “abatido” com outros três rapazes também cabisbaixos sentados num colchão. Às 23h40, a irmã de Weverton ligou avisando que “fizeram maldade com ele”. Ela foi ao local e disse que os policiais não permitiam aproximação, sendo que “eram hostis e riam dos familiares que se desesperavam buscando por notícias”. Disse que ouviu conversas entre familiares dos mortos de que “os envolvidos estavam reunidos para que alguém fosse ‘excluído’ do partido [no caso, a facção PCC – Primeiro Comando da Capital]”. Ela disse que provavelmente seria Weverton porque ouviu conversas em que ele disse que “não iria pagar mais nada” e que queria “resolver sua vida”.
Uma outra familiar que teria relação com Weverton e Felipe Anthony, e está como testemunha protegida, também disse na delegacia que Felipe tinha envolvimento com tráfico de drogas e com o PCC e que teria “obtido informações” de que a reunião dos seis era para decidir a exclusão de Weverton e Fabiano Alves da facção. Disse que soube das mortes por uma ligação de um número desconhecido e foi até o local. Uma das moradoras da rua teria dito a essa parente que “no momento da ação policial era ‘um tiro e um grito, um tiro e um grito'”.
Ela ainda denunciou que um mês antes das mortes, PMs teriam invadido a casa onde morava com Felipe e que pegaram uma correspondência que ele tinha recebido naquele dia na qual continha uns talões azuis sem saber do que se tratava. Ela ainda teria tentando ligar para Felipe na ocasião e, quando a ligação completou, um dos policiais teria puxado o aparelho e dito “se você não aparecer, quem vai se fuder é ela”. Ela ainda teria recebido choque com um cabo elétrico e sido obrigada a entrar na viatura, tendo rodado por alguns locais. Denunciou que só viu a identificação de dois PMs: Alcântara e Márcio, sendo que o restante teria descolado a identificação da farda.
A esposa de Fabiano Alves disse na delegacia que o conheceu em 2019 e passaram a morar juntos quando ele conseguiu liberdade em abril daquele ano. Ele teria começado um trabalho de motoboy em uma marmitaria na cidade. Ela relata que dois dias antes da morte, ele não apareceu em casa e que tentou procurá-lo na marmitaria, mas não o encontrou, e soube da morte por uma ligação por número desconhecido. Disse que não sabia se ele tinha envolvimento com facção.
A companheira de Silvano disse que por volta das 21h do dia das mortes, conversou por meio de chamada de vídeo com ele e visualizou três homens que não conhecia. Silvano teria dito que já havia cumprido pena com um deles em uma penitenciária. Segundo ela, Silvano passou a cumprir o regime aberto em maio de 2019 e estava morando em Monte Azul Paulista, mas ele decidiu ir a São José do Rio Preto porque um amigo o ajudaria a procurar trabalho no município. A mulher relata que, na chamada de vídeo, o esposo disse que estava fazendo um churrasco com amigos e logo iria embora.
Enquanto conversavam, afirma, a chamada caiu por volta das 21h15 e não conseguiu mais contato. No depoimento, disse que soube da morte por uma ligação telefônica de um número desconhecido. Ela também disse que Silvano tinha dificuldade de movimentar a mão direita por conta de uma deficiência “decorrente de um acidente com vidro” e que, sendo destro, não a movimentava muito bem.
É só no laudo de análise do local que é mencionado que “as armas de fogo presumidamente utilizadas pelos indivíduos motivadores da presente perícia, durante a reportada troca de tiros, já haviam sido recolhidas pela Polícia Militar, visando posterior apresentação à Autoridade Policial na Delegacia Seccional de Polícia – Plantão Policial -, de São José do Rio Preto/SP, para devida apreensão”. A perícia também apontou que o local não foi devidamente isolado e “não foram detectados vestígios técnicos satisfatórios, categóricos e irrefutáveis, que permitam precisar a dinâmica dos disparos”. No laudo complementar, a única direção mais assertiva apontada são os quatro vestígios de disparo nas grades do portão o qual o perito informa que a direção teria sido proveniente de dentro do corredor para fora, o que poderia indicar que houve confronto.
No relatório de investigação, o delegado Wander Luciano Solgon afirma que decidiu pedir a quebra de sigilo telefônico do número que fez a denúncia porque chamou a atenção testemunhas terem dito que ouviram disparos em torno das 21h sendo que no boletim a ocorrência é informado o horário das 21h22 e a chamada ao Copom, de fato, ocorreu às 21h27. Com a quebra do sigilo e identificação do IP (espécie de numeração que é identificado por provedor de internet), descobriram que o número era usado de forma anônima, tendo sido cancelado no dia seguinte à ação, e o local da chamada foi realizada em endereço do pai do soldado Rafael Vieira. Ele e Leandro Mariano usariam o número.
A investigação da Corregedoria da PM também havia estranhado a divergência de horários quando ouviram moradores e vizinhos do local das mortes, que, em maioria, apontavam ter ouvido os tiros e visto a incursão do grupo entre 20h30 e 21h. Outro ponto é que o nome de Fabiano Alves foi pesquisado no sistema do Copom um dia antes da ação, mas a soldado responsável disse que não havia registro de solicitação e que provavelmente pesquisou a pedido de um colega, que não soube dizer qual, porque não disponibiliza senha.
Além disso, em um ano de investigação, os PMs não foram ouvidos na delegacia apesar de o delegado escrever que enviou intimação por pelo menos três vezes para que a corporação nomeasse advogados para os 11 prestarem depoimento. E que ficou restrito às declarações dos policiais à própria corporação que reproduziram a versão inicial do boletim de ocorrência. Um decreto do governador João Doria (PSDB) atrelado a uma interpretação do pacote anticrime inviabiliza as investigações de mortes cometidas por PMs ao determinar que os policiais sejam ouvidos apenas na presença de um advogado. Segundo o UOL, em reportagem de julho de 2020, ao menos 300 inquéritos ficaram parados por isso.
O delegado escreveu que não seria possível analisar as circunstâncias das mortes de forma que fosse possível concluir “excesso” dos policiais porque “a ausência de testemunhas que não fossem policiais militares certamente prejudicou o entendimento de como se deram os fatos”. Também escreveu que a perícia não foi capaz de elucidar esse ponto, mas alguns quesitos chamaram a atenção: “os disparos que atingiram os mortos, quando puderam ter sua trajetória definida, foram de cima para baixo”, atingindo em maioria peito e abdômen, “não havendo perfurações espalhadas; testemunhas teriam relatado rumores de que os policiais chegaram atirando; e “por fim, chama a atenção a posição dos cadáveres no local, espalhados por todo o terreno, aparentando mais que os mortos estavam tentando se evadir do local do que propriamente confrontando policiais, pois, se assim fosse, a lógica diz que procurariam se agrupar e esconder-se atrás de barreiras físicas para protegerem-se”. Com isso, em outubro de 2020, indiciou os 11 por fraude processual.
Entre julho e agosto deste ano, o delegado Wander Solgon também ouviu os delegados Paulo José Buchala Júnior e Alceu Lima de Oliveira Júnior que foram ao local do crime acompanhar a ocorrência. Ambos disseram que as armas atribuídas aos mortos estavam guardadas em uma das viaturas do Baep e que os policiais disseram que as recolheram por causa do atendimento médico que foi chamado.
O promotor José Márcio Rossetto Leite determinou o arquivamento do inquérito sobre o crime de homicídio porque entendeu ter ocorrido confronto e que os PMs agiram em legítima defesa. “As vítimas eram criminosos e diante da iminência da captura pelos policiais, agentes do estado que buscavam legitimamente cumprir suas funções, atacaram efetuando disparos, fato que também configurou a agressão atual”, argumentou. “Os policiais militares defenderam direito próprio revidando os ataques no intuito, ainda, de fazer cessar as agressões. Os diversos disparos que atingiram as vítimas explicam-se, pois, o ataque se dirigiu a vários policiais que atacaram simultaneamente. Não se pode esperar razoavelmente que os policiais aguardem que um colega tome a ação diante de um ataque, para depois agir”. O caso foi remetido a outra Promotoria e a promotora Valéria Andréa fez a denúncia por fraude processual.
O que diz a polícia
A Ponte solicitou entrevista com o delegado responsável pelo caso, questionou sobre as investigações e o andamento da apuração também dentro da corporação e se os 11 estão trabalhando normalmente.
A In Press, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública deu duas respostas. A primeira pedindo prorrogação do prazo porque só responde no final de semana demandas que tenham ocorrido no sábado e no domingo. Depois, que “o IP (Inquérito Policial) citado foi relatado à Justiça, portando qualquer posicionamento deve ser solicitado ao TJ e a Justiça Militar”.
Reportagem atualizada às 10h07, de 30/08/2021, para incluir informação sobre a pena do crime de fraude processual.
Reportagem atualizada às 15h45 de 14/12/2023 para atualizar com o resultado do julgamento e absolvição dos policiais.