Artigo | O abolicionismo penal não é um projeto de Estado

Amparados em Thomas Mathiesen, Angela Davis e Thula Pires, entre outros, Erin Fernandes e Vitor Costa, da coluna Abolição, discutem os limites do Estado e sua própria existência na perspectiva de um processo abolicionista amplo

Ilustração Antonio Junião / Ponte jornalismo

“Se as pessoas estão presas e o fundamento da prisão é evitar a violência, não faz sentido político, racionalmente justificável, que o Estado seja re(produtor) de violência. Se o Estado ocupar esse lugar de produtor de violência sem que tenha sido autorizado para isso, é preciso que sejamos capazes de refazer os pactos políticos que nos trouxeram até aqui, colocando necessariamente esse Estado em xeque.” – Thula Pires

Um debate muito caro às perspectivas abolicionistas é sobre como entender o Estado, e como levar adiante a política abolicionista enfrentando os limites que o Estado impõe. Na esquerda, de modo geral, muito se discute os usos das políticas públicas como forma de alcançar os objetivos políticos de transformação que se almejam. No entanto, uma leitura radical da situação – isto é, que vai às raízes daquilo que queremos entender, discutir, questionar e transformar – precisa ser crítica em relação às capacidades do Estado, confrontadas pelas reivindicações por autonomia que sempre foram essenciais aos movimentos revolucionários.

É, no mínimo, ambivalente a forma como nos relacionamos com o Estado: ora rejeitando sua intervenção nos territórios, ora demandando sua atuação. Por muito tempo, o encaramos como um ator político – no limite, como mais um indivíduo com o qual nos relacionamos no dia a dia. Contudo, se o entendemos como expressão de uma relação viva entre os grupos de uma mesma sociedade, não deixamos de dizer que nos relacionamos no dia a dia, mas sabemos que não há um “alguém” específico que estamos enfrentando ou com
quem nos sentamos e dialogamos todas as vezes. Enquanto relação social, o Estado pode ser compreendido como uma síntese de forças sociais, organizadas em instituições, em normas e em condutas pretensamente totalizantes, que disputam a hegemonia entre si. Pode-se dizer, então, que essa ambivalência é fruto das ambiguidades que costumam ser construídas em meio a essas disputas.

Ao refletir, no Manifesto Comunista, sobre o projeto de revolução proletária que teorizava, Marx postulava, sim, uma ideia de construção de um “Estado forte”, que fosse orientado pela autoridade política da classe trabalhadora para garantir o acesso às riquezas produzidas pelo trabalho, exercer o controle da propriedade e regular as relações sociais no socialismo até que o Estado se tornasse superado e desnecessário. Parece contraditório, e podemos dizer que é mesmo, posto que o marxismo não rejeita as contradições, mas as
encara a partir de uma perspectiva dialética. Cruzando o tempo, uma das principais questões trazidas pelo movimento abolicionista (que tem o marxismo como uma de suas bases epistemológicas) é que o Estado controla formalmente a violência, disciplina os grupos sociais e, a partir dessas condições, exerce a punição no cotidiano. Tudo isso ocorre, não por acidente, assentado em marcadores como a raça, que organiza historicamente as hierarquias de acesso, poder, legitimidade e reconhecimento – e que significou para povos indígenas e negros, a instituição de um projeto genocida.

Desse modo, o controle do Estado que, por si, representaria a autoridade política legitimada socialmente, poderia ser a forma de garantir direitos e enfrentar os mecanismos de perpetuação da desigualdade, do empobrecimento e da higiene social que a colonização e o imperialismo nos legaram enquanto formas históricas de construção do patriarcado capitalista supremacista branco, para usar a definição de bell hooks. Do outro lado, as forças de segurança pública, as prisões, a vigilância e até mesmo as ideias sobre vandalismo, terrorismo, baderna e outras mais que validam os usos da violência representam a forma
como essa autoridade é constituída, à qual mesmo os grupos progressistas e de esquerda recorreram historicamente, escudados pelo entendimento do Estado enquanto provedor – este, por sua vez, moldado em torno da figura do pater, ou seja, pelas próprias estruturas de poder que, em tese, serviria para combater.
É por isso que mesmo teóricos abolicionistas clássicos, que enxergam uma centralidade da disputa no Estado para os processos de desencarceramento, despenalização e reparação, a exemplo de Thomas Mathiesen, destacam também a importância de uma construção política de base que forneça as condições materiais para as transformações pretendidas:

“A preparação política abrange a preparação social e política da comunidade em geral ou da sociedade para a mudança em questão. Quanto mais radical for a mudança proposta, mais decisiva será a preparação política. Sem ela, a legislação necessária se esgota em boas intenções de cumprimento desordenado ou de um mero cumprimento que não gere uma mudança duradoura” – Thomas Mathiesen

Indo além, leituras mais recentes a partir da chave do colonialismo e da colonialidade (entre as quais, para os críticos de plantão, se inserem não apenas aquelas consideradas pós-modernas e encerradas em si mesmas, mas, cada vez mais, partem de marxistas, anarquistas e movimentos comprometidos com um horizonte coletivo) buscam retirar do Estado esse status de protagonista único e necessário dos conflitos. Enfatizamos outras configurações e agências que existem socialmente, especialmente no âmbito comunitário, que são apagadas e invalidadas pela ordem branca “civilizatória”.

Nesse sentido, existe um certo entusiasmo, no campo da criminologia crítica, em relação a proposições ditas decoloniais acerca de um pluralismo jurídico. Isso se popularizou (e foi ironicamente formulado por Boaventura de Sousa Santos, um teórico branco e europeu) a partir da construção do constitucionalismo plurinacional na Bolívia, que teve, sim, ampla participação dos movimentos indígenas e representou uma contestação ao domínio colonial na estrutura estatal do país. Entretanto, como adverte Silvia Cusicanqui, socióloga boliviana aymara, cabe questionar em que medida o produto dessa construção correspondeu, na prática, a uma captura da potência desses movimentos, submetendo-os justamente à centralidade e ao controle do Estado, no qual a mediação com velhas oligarquias segue sendo o modus operandi.

O abolicionismo penal se orienta justamente pela recusa de ceder à premissa do Sistema de Justiça Criminal, isto é, que a punição, em maior ou menor grau, é inevitável. Assim, por mais que a militância anticárcere se utilize das mais diversas ferramentas no cotidiano, incluindo os mecanismos legais, entendemos que ela não pode se pautar apenas a partir das mediações possíveis. Nosso campo é o do enfrentamento. E retomar isso é
importante quando vemos crescer, por exemplo, movimentos como os dos ditos “policiais antifascistas”, que não só rejeitam reivindicações históricas de ruptura, como as pelo fim da polícia militar, mas enunciam a aparência de comportamentos exemplares possíveis dentro de uma instituição que segue intacta e em regime de ampliação.

Portanto, a questão que está posta para nós é a superação desta dicotomia: um Estado forte punitivo é nosso inimigo número um; ao mesmo tempo, um Estado forte no sentido de concessão de direitos também não diz respeito ao nosso projeto, posto que essas duas faces não são excludentes entre si. Ao passo que é inegável, diante do atual governo miliciano, que a ampliação da agenda neoliberal no Brasil correspondeu a um recrudescimento punitivo, também é verdade que nunca tivemos um estado de bem estar social e a expansão do encarceramento no país ocorreu justamente em um período de bom desempenho econômico e ampliação do acesso a direitos, o que dificulta falarmos de uma transição de um Estado Social para um Estado Penal, como propõe Löic Wacquant, no nosso contexto. Por aqui, o Estado Penal sempre existiu.

O que temos por certo é que, qualquer que seja a escolha (ingressar taticamente ou não na política estatal), o abolicionismo jamais caberá na institucionalidade. Não esqueçamos que os direitos que nos interessam, enquanto elementos da política, foram reconhecidos (e continuam sendo disputados) pela luta e pela vida de pessoas combativas; que, como nos ensinam os povos indígenas hoje, em seu enfrentamento ao Marco Temporal e na autodefesa que organizam ao redor do mundo, não são os grupos que dominam o Estado que definem as condições da nossa existência. Rejeitamos o controle sobre os nossos corpos, não toleramos a
criminalização racista e tampouco a ausência de respostas efetivas para nossos reais problemas, por isso acreditamos na autonomia das nossas comunidades na formulação de uma ética própria de acordo com as necessidades que surgem e permanecem para nós. O poder emergirá de baixo.

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“Quando pensamos no impacto dessas ações criativas e inovadoras e desses momentos em que as pessoas aprenderam a estar juntas sem a estrutura do Estado, a resolver problemas sem ceder ao impulso de chamar a polícia, isso deveria servir como verdadeira inspiração para o trabalho que faremos no futuro para construir essas solidariedades transnacionais.” – Angela Davis

*Erin Fernandes é membro da Frente Distrital pelo Desencarceramento e estuda Antropologia na Universidade de Brasília (UnB). Vitor Costa é Doutorando em Relações Internacionais (RI) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em RI pela Universidade Federal da Bahia. Ambos fazem parte da equipe da coluna Abolição, coletivo que discute abolicionismo penal na Ponte.

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