Promotor Fernando Krebs insinua que há “interesses escusos” por trás das denúncias feitas por entidades. “Relatório da Defensoria traz até fotos mostrando os abusos, mas o MP está inerte”, critica presidente de instituto
Ao contrário do que mostram os relatórios da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública, além de denúncias da Pastoral Carcerária, de familiares de pessoas privadas de liberdade e das próprias pessoas que estão dentro do sistema penitenciário relatando tortura, espancamento e limitação de acesso a comida e água, o Ministério Público de Goiás (MPGO) afirma que não existem irregularidades no Complexo Penitenciário de Aparecida de Goiânia e não há violações de direitos humanos por parte da Polícia Penal.
“Fiquei no complexo por cinco horas e encontrei os presídios em bom estado de conservação e com celas limpas. Houve uma mudança no sistema prisional, teve uma reforma na POG (Presídio Odenir Guimarães) que antes parecia uma masmorra. Há uma reação muito grande por conta da disciplina que foi adotada e que é rigorosa. Vamos marcar uma coletiva de imprensa para mostrar a todos que a situação nos presídios de Goiás não é essa que estão dizendo por ai”, disse em entrevista à Ponte o promotor Fernando Krebs, responsável do MPGO pelos presídios do estado.
A visita feita pelo representante do Ministério Público ocorreu no final de janeiro deste ano e fez parte de um inquérito aberto após denúncia da OAB-GO. Um mês antes, a entidade havia divulgado um detalhado relatório onde além de classificar os locais onde os presos ficavam como insalubres, trazia cartas escritas pelas próprias pessoas privadas de liberdade que relatavam torturas e abusos por parte dos funcionários das penitenciárias.
“Foram constantes, portanto, as acusações de ‘tortura’ e ‘espancamento’, com relatos de afogamento e choque elétrico. Alguns detentos denunciaram que é uma atitude tomada contra todos os presos que fazem alguma solicitação, que reclamam, assim como em caso de confusão ou desavença entre os presos, onde os Policiais Penais usariam de truculência e violência extrema, os obrigando a situações degradantes, como por exemplo ficar sentado e ‘pelado’ no pátio a noite inteira”, diz um trecho do documento publicado pela OAB-GO.
Cerca de duas semanas após a vistoria feita pelo promotor do MPGO, a Defensoria Pública de Goiás fez uma inspeção surpresa nos presídios e encontrou um cenário bem diferente do descrito por Fernando Krebs. No dia 4 de fevereiro, a comitiva dos defensores teve que esperar por duas horas até que pudesse acessar os blocos do complexo prisional.
“Durante a inspeção houve unanimidade acerca de relatos de violência física e psicológica supostamente efetivadas diariamente pelos agentes de polícia penal em face dos prisioneiros. Especificamente quanto a ala feminina, os relatos causaram maior preocupação: as custodiadas asseveram que agentes da policia penal estão efetivando agressões físicas, proferindo insultos, ameças e xigamentos em seu detrimento, sendo um dos agentes do sexo masculino”, aponta o relatório da Defensoria Pública.
“Ninguém gosta de ficar preso. E preso você sabe, gosta de reclamar de tudo. Reclama da comida. A comida já foi melhorada. Há muita reclamação de quem tem seus interesses contrariados. A redução da criminalidade no estado de Goiás é a prova cabal de que o sistema prisional mudou de gestão. A gestão agora é mais profissional e tem impedido a comunicação dos presos com quem está aqui fora”, declara Krebs.
O diretor-geral de Administração Penitenciária do estado de Goiás é Josimar Pires Nicolau do Nascimento, que já foi acusado de ordenar espancamentos e sessões de torutura contra presos que estavam sob sua responsabilidade. Em um áudio revelado pelo El Pais, Nascimento afirmava já ter pisado na cara dos presos e recomendava que seus subordinados fizessem o mesmo.
“Houveram denúncias contra ele (Josimar) por algumas falas que ele fez e reconhece que foi extremamente infeliz. Ele foi investigado pela Corregedoria. Na época ele não era diretor do sistema e não detectaram a veracidade do que ele disse. O que eu vi lá é que ele está tentando melhorar o sistema e aumentar o número de presos trabalhando”, defende o promotor Fernando Krebs
O representante do MPGO avalia como positiva a administração de Josimar Nascimento frente ao sistema prisional goiano e acredita que as denúncias contra ele são um tipo de perseguição. “Falei para ele chamar a mídia para ver essas melhorias. Acho que está havendo uma distorção grande sobre o que que está havendo e acho que tem interesses escusos por trás disso”, diz Krebs.
O defensor público Marco Túlio Félix Rosa teve uma reunião com Josimar Nascimento na última terça-feira (22/3). No encontro, ficou determinado que haverá melhorias nas unidades prisionais, sobretudo na alimentação dada aos custodiados e no acesso à água. “Atualmente o preso recebe a sua última alimentação do dia às 16h30 e fica um período muito grande sem comer. Ele só volta a fazer uma refeição às 7h30 do dia seguinte”.
‘O MP está inerte’
Além dos relatórios elaborados pelos órgãos públicos, a sociedade civil também se mobiliza para pedir melhorias dentro do sistema prisional goiano. Em janeiro deste ano, 141 entidades pediram a saída de Josimar Nascimento da Diretoria Geral de Administração Penitenciária devido as denúncias de maus tratos e tortura de custodiados que estão sob a responsabilidade do diretor.
Ativistas pelos direitos dos custodiados também reclamam que as denúncias feitas por eles não são apuradas pelos órgãos responsáveis, especialmente pelo Ministério Público de Goiás. Para a presidente da Associação dos Familiares e Amigos de Pessoas Privadas de Liberdade, Patrícia Benchimol, não há proatividade por parte do MPGO.
“O Ministério Público está inerte sobre tudo isso que está acontecendo. O relatório da Defensoria Pública deixa bem claro, até com fotos, como está a situação do complexo prisional. Os presos estão ficando quinze horas sem água e sem comida. Não tem como ir de encontro a uma imagem que mostra o que o preso está passando”, comenta Benchimol.
Para a Irmã Petra Silvia Pfaller, da Pastoral Carcerária de Goiás, causa um certo tipo de frustração tantas denúncias serem feitas e não ser dado prosseguimento a nenhuma. “O MPGO foi lá no complexo prisional e disseram que não constataram nada do que foi denunciado. Então é muito difícil. A gente não sabe mais a quem recorrer. É uma diferença gritante entre o que Ministério Público viu e ouviu em comparação com os relatórios da OAB e da Defensoria”, relata a religiosa.
Advogado e presidente estadual do Instituto Anjos da Liberdade, Vitor Souza de Albuquerque reclama que as ações do Ministério Público não são transparentes em relação ao sistema prisional de Goiás e afirma que vai pedir mais clareza sobre o trabalho do órgão.
“O MP não é nenhum pouco transparente e por isso a gente ficar sem saber o que realmente está havendo. Eu vou oficiar o Ministério Público e DGAP para ter informações atualizadas sobre todos esses procedimentos de apuração dessas denúncias e vamos ver se eles vão responder, coisa que eles não costumam fazer”, declara o advogado.
Encarceramento em massa
O complexo prisional de Aparecida de Goiânia possui foi feito para abrigar 800 pessoas, mas atualmente tem uma população de aproximadamente 2.900 custodiados. Mesmo assim, o promotor Fernando Krebs defende que o encarceramento em massa no Brasil é um mito. Em julho de 2019, ele assinou um artigo no jornal goiano O Popular comparando os sistemas prisionais dos Brasil e do Chile para sustentar o seu argumento.
“O encarceramento em massa no Brasil é uma inverdade, porque o Chile tem cerca de 130 mil presos, considerando todos os regimes prisionais, que são os mesmos do Brasil para uma população de 17 milhões de habitantes, enquanto, o Brasil tem cerca de 500 mil para mais de 200 milhões. Isto revela que o número de presos no Brasil é proporcionalmente muito menor do que no Chile. Não por acaso, um dos países mais seguros do continente”, escreveu o promotor na ocasião. Segundo o World Prison Brief, a taxa da população carcerária no Brasil é de 381 presos por 100 mil habitantes (o país está em 15º lugar no mundo) e a do Chile é de 210 (65º lugar).
“Eu fui promotor do júri durante uma década. Segundo a revista Veja, já que estatística no Brasil é muito furado, a cada cem crimes graves praticados no Brasil apenas cinco cumprem a pena até o final. O índice de esclarecimento, de processo e cumprimento de pena no Brasil é ridículo comparado com o Chile que é aqui do lado. As pessoas que estão presas atualmente no sistema prisional goiano são basicamente latrocidas, traficantes, estupradores e homicidas”, declarou Fernando Krebs em entrevista à Ponte.
O defensor Marco Túlio Félix Rosa rechaça a teoria do promotor sobre encarceramento em massa brasileiro, deixando claro que a opinião dele não reflete necessariamente o que pensa o Ministério Público de Goiás.
“O encarceramento em massa no Brasil não é um mito, é uma realidade. No próprio Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia onde era para ter oito pessoas hoje tem 40. Como isso não é um superencarceramento? As pessoas não têm nem condições de deitar uma do lado das outras. Só isso já uma violação de direito”, conclui o defensor.
Correções
Uma versão anterior deste texto apontava que o promotor Fernando Krebs falava sobre "interesses escusos" de denúncias trazidas por OAB e Defensoria Pública. Na verdade, ele se referia diretamente à uma nota pública assinada pela Pastoral Carcerária e mais 140 entidades que pedia a exoneração do tenente-coronel da PM Franz Rasmussen Rodrigues do cargo de diretor-geral de Administração Penitenciária do estado de Goiás. A reportagem foi atualizada às 16h45 do dia 24/3/2022