Atletas trans têm vantagens sobre atletas cis? Deveriam haver modalidades apenas para pessoas trans? Especialistas consultados pela Ponte contam a verdade sobre esses e outros mitos
Não é raro ver nas redes sociais episódios de transfobia sempre que algum atleta trans consegue obter algum feito esportivo de destaque. Assim foi com a jogadora Tiffany Abreu, quando passou a jogar a superliga de vôlei, principal competição da modalidade do país. Quem também passou a receber críticas por seu desempenho dentro das piscinas foi a nadadora norte-americana Lia Thomas, após se tornar a primeira mulher não-cis (cis é a pessoa que se identifica com o gênero com o qual foi designada no nascimento) a vencer um torneio de natação universitária nos EUA.
As críticas e ofensas a essas atletas são de toda ordem, passando pelas questões de gênero e pautas sobre minorias, mas grande parte dos comentários maldosos versa sobre uma possível vantagem física que as mulheres trans teriam em relação a outras competidoras por terem nascido com um arranjo biológico considerado masculino.
Em março deste ano, a presidente do Sindicato dos Delegados do Estado de São Paulo, Raquel Gallinati, fez uma postagem na sua conta do Instagram, na qual afirmou que atletas trans “tiram o espaço que nos levou décadas de muito luta” e que promovem a “exclusão de mulheres do esporte feminino”.
Nos comentários feitos nas redes sociais da Ponte após a publicação da reportagem que citava o posicionamento da delegada, vários usuários defendiam a posição de Gallinati e corroboravam que mulheres cis não têm paridade esportiva com as trans.
“As trans devem ter de uma categoria para elas. Não há como achar mulheres “cis” tenham alguma chance no esporte competindo com trans, gente! É biologicamente impossível. Há países que só agora permitiram que mulheres competissem em esportes”, disse uma mulher em um dos comentários da postagem.
“É muito óbvio que mulheres trans (BIOLOGICAMENTE HOMENS) precisam de uma categoria só pra elas. É um absurdo competirem na mesma categoria que mulheres porque possuem densidade óssea diferente, força diferente etc. Dizer isso não é transfobia, é o que é evidente”, afirmou um homem sobre a matéria feita à época.
Para quebrar preconceitos e tirar as principais dúvidas sobre a participação de mulheres trans em competições femininas conversamos com Leonardo Morjan Britto Peçanha, professor de educação física e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, e com a cientista norte-americana Joanna Harper, uma das primeiras pesquisadoras a estudar sobre pessoas transgênero no esporte e assessora do Comitê Olímpico Internacional para pessoas trans .
Abaixo desvendamos cinco mitos que ainda circulam sobre a participação de pessoas trans em esportes:
Mito 1: Atletas transgêneros têm vantagens sobre atletas cisgêneros
Segundo Harper, mulheres trans, em geral, são mais altas e mais fortes e isso pode dar a elas algum tipo de vantagem em algumas modalidades, porém a mudança estética e hormonal pode retirar a explosão e resistência muscular que havia antes da transição de gênero.
“Mulheres transgênero ficam com menos massa muscular e capacidade aeróbica reduzidas, e isso pode levar a desvantagens na rapidez, recuperação e resistência. Todas as pessoas trans também enfrentam muitos desafios sociológicos e psicológicos que também são prejudiciais para o desempenho esportivo’, explica a cientista
Mito 2: Mulher trans mantêm a mesma força que tinha antes de fazer a transição
De acordo com Leonardo Peçanha, a afirmação é errada. Neste processo, a pessoa é levada a fazer uma série de tratamentos hormonais que atingem diferentes partes do corpo e fazem com que um indivíduo tenha severas transformações biológicas.
“Muita gente não entende o impacto da reposição hormonal no corpo dessas pessoas. Não é possível fazer a comparação do corpo de uma mulher trans com a de um homen cis, como muita gente faz”, afirma Leonardo Peçanha.
“As mulheres trans perderão força se sofrerem supressão de testosterona, no entanto, as mulheres trans manterão, em média, vantagens de força mesmo após a terapia hormonal quando comparadas às mulheres cisgênero. A magnitude dessa vantagem para mulheres trans atléticas ainda é desconhecida”, contextualiza Joanna Harper.
Mito 3: Mulheres trans que competem ainda têm um nível de testosterona alto
Mesmo em níveis bem mais baixos do que os homens, mulheres também produzem testosterona, o hormônio responsável pelo desenvolvimento dos órgãos sexuais masculinos, a produção de espermatozoides, o engrossamento da voz, o aparecimento da barba e o desenvolvimento dos músculos.
Em seu período de transição, pessoas trans recebem um tratamento com uma quantidade grande de outros hormônios que inibem a produção de testosterona. Para quem compete em torneios oficiais é exigido uma série de testes para a provar que os níveis do hormônio masculino estão em níveis de paridade com mulheres cis.
“Muitos órgãos governamentais de esportes exigem que as mulheres trans reduzam os níveis de testosterona antes de competir na categoria feminina. A supressão de testosterona mitigará, mas não eliminará, as vantagens que as mulheres trans ganham ao passar pela puberdade masculina”, explica Joanna Harper.
Para participar de competições oficiais mulheres trans precisam fazer uma declaração de próprio punho afirmando que pertencem ao sexo feminino, não podendo alterar essa declaração ao longo de quatro anos. Além disso, seus níveis de testosterona não podem ultrapassar 10 nmol/L (nanomol por litro) nos doze meses anteriores à sua primeira competição e pelo restante do tempo em que competirem. Durante todas as suas carreiras, as atletas trans serão monitoradas pelo Comitê Olímpico Internacional.
Mito 4: Deveria haver uma categoria exclusiva para pessoas trans
Além de ser segregacionista, essa linha de pensamento, se levada para outras áreas da sociedade, poderia fazer com que pessoas trans tivessem empregos específicos onde pudessem atuar ou conviver em ambientes destinados somente a elas. Na verdade, segundo Joanna Harper, não há necessidade, nem número suficiente de competidores para criar uma categoria voltada especialmente para essa parcela da população.
“As pessoas trans representam apenas cerca de 1% da população. Isso significa que (a) as mulheres trans são muito poucas para superar o esporte feminino e (b) não há pessoas trans suficientes para criar uma terceira categoria, especialmente quando se trata de esportes coletivos”, esclarece a pesquisadora
Mito 5: Mulheres trans estão tirando o espaço das mulheres cis no esporte
Não é possível fazer essa afirmação por conta do número de mulheres trans que competem em torneios oficiais ser extremamente baixo em todas as modalidades e por nem sempre haver qualquer tipo de vantagem física em relação a outras competidoras cis.
“As mulheres trans são substancialmente sub-representadas em todos os níveis do esporte feminino. Por exemplo, os Jogos Olímpicos de Verão de Tóquio, em 2021, viram a primeira mulher abertamente trans competir. Estatisticamente, menos de 30 atletas trans competiram em todos os Jogos Olímpicos”. No total, 11.363 atletas participaram da edição do ano passado das Olimpíadas.