O pioneirismo involuntário de Tifanny, a primeira jogadora trans do vôlei brasileiro

Em entrevista, ponteira do Osasco Voleibol Clube conta que não tinha ideia do impacto que causaria ao entrar no vôlei feminino. ‘Entendi que preciso abrir caminhos para outras. Se existe a Tifanny hoje, é porque muitas outras perderam a vida lá atrás.’

Em quatro meses como jogadora do Osasco Voleibol Clube, Tifanny Abreu, 37 anos, marcou 225 pontos, se destacando como a maior pontuadora da primeira fase da Superliga 2021-2022, o campeonato nacional do vôlei feminino. Hoje vivendo o melhor momento de sua carreira, a jogadora enfrentou ataques de transfobia quando chegou na elite do voleibol feminino em 2017, à época como jogadora do Sesi Vôlei Bauru. Cinco anos antes, ela quase desistiu do esporte para viver a transição de gênero.

Nascida na pequena Paraíso de Tocantins, cidade de 52 mil habitantes localizada a 75 km de Palmas, capital de Tocantins — que, na época, em 1984, ainda se chamava Paraíso do Norte de Goiás e fazia parte de Goiás —, Tifanny cresceu em uma família grande, sendo a caçula de sete irmãos. Quando tinha 5 meses, a família se mudou para Conceição do Araguaia, interior do Pará, e, por isso, se considera paraense de coração.

Ainda na infância conheceu o vôlei espiando pela janela de uma vizinha que tinha televisão. Foi amor à primeira vista. Ela via um de seus irmãos fazer atletismo e ser aplaudido por isso. “Também queria ser aplaudida”, conta.

Tifanny Abreu: “Uma criança, ao nos ver, vê que merece respeito” | Foto: Anderson Jesus/TNM

Amor nunca faltou na infância de Tifanny, que sempre pode brincar na rua e praticar esportes. “Eu tinha uma coisinha pelo esporte. Tudo o que fazia, eu me destacava muito rápido”, lembra. Aos 17, teve certeza de que era no vôlei que encontraria seu caminho no mundo.

“Acho que pelo acolhimento do esporte. Eu sabia que ali eu podia ser mais bem recebida. O vôlei abriu esse caminho para a Tifanny ser quem ela é hoje. Tanto antes da transição quanto depois”, define.

A depressão e o afastamento das quadras

Em 2012, quando jogava na Europa, Tifanny percebeu que precisava vivenciar a transição. “Eu já sabia que tinha que fazer uma transição. Eu sempre tive muita depressão, mas não sabia o motivo”, recorda. Foi quando decidiu deixar seu time na Bélgica. “Eu tava fazendo a minha transição pelo que eu sou, pelo que eu necessitava ser.”

Mas, para ser quem é, Tifanny achou que teria que largar o volêi. “Eu não imaginava que podia jogar vôlei novamente. Assim como todo mundo que me ataca com a transfobia, eu também não entendia sobre o hormônio, sobre as regras.”

Dois anos depois de iniciar a transição, Tifanny descobriu que ainda poderia jogar. “Continuei fazendo minha transição normalmente e, quando completei cinco anos de transição, decidi voltar às quadras. Comecei a jogar na Bélgica e depois na Itália, quando recebi um convite da equipe do Sesi Vôlei Bauru. Ali acabei assinando o contrato para jogar na primeira Superliga.”

O retorno para o Brasil e a transfobia

Tifanny retornou ao Brasil em 2017, ano em que 185 pessoas trans foram assassinadas, segundo dossiê da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) — no ano passado, o número foi bem parecido, com 175 mortes. “Foi difícil porque é o país que mais mata mulheres trans no mundo, fiquei com medo e com receio de sofrer algum ataque, mas eu precisava seguir em frente, precisava abrir caminhos, precisava ser quem eu era. Eu não podia ter medo”, lembra a jogadora. 

Tifanny Jesus foi alvo de inúmeros ataques transfóbicos | Foto: Anderson Jesus/TNM

Quando começou a jogar no Sesi Bauru, Tifanny foi alvo de inúmeros ataques transfóbicos, vindos de jogadoras, comissões técnicas e também da imprensa esportiva, que questionavam se ela teria ou não vantagens em relação às demais atletas. 

A jogadora foi liberada pela FIVB (Federação Internacional de Vôlei) e pela CBV (Confederação Brasileira de Vôlei) para participar da competição porque estava dentro das regras internacionais do COI (Comitê Olímpico Internacional), que estipula um limite de 10 nmol/L de testosterona no sangue.

Tifanny não tinha dimensão do peso de ser pioneira em um dos esportes mais importantes do país. “Eu não entendia o que isso se tornaria, que eu me tornaria sendo a primeira mulher trans do esporte brasileiro, sendo conhecida mundialmente, ainda mais em um país como o Brasil, que é um país muito machista, muito transfóbico”, afirma.

A jogadora em entrevista ao repórter Caê Vasconcelos | Foto: Anderson Jesus/TNM

“Eu sabia que não iria ser fácil. Mas, ao mesmo tempo, eu entendi que eu preciso abrir caminhos para outras. Se existe a Tifanny hoje é porque muitas outras lutaram e perderam a vida lá atrás. Muitas foram sacrificadas por serem quem são, por lutar por direitos que temos hoje”, aponta.

Hoje, ela entende que inspira outras atletas, como a patinadora Maria Joaquina, que já foi impedida de participar de uma competição em 2019. “É muito importante que mulheres como eu, que tenham o poder de fala para que outras mulheres trans que estão começando a transição, para que crianças e adolescentes, que não têm a oportunidade, possam nos ver e perceber que elas também podem vencer, que elas também podem chegar e ser alguém. Por mais preconceito que exista, a nossa luta também existe e vamos resistir sempre.”

Para Tifanny, a representatividade importa. “O preconceito vem sempre enraizado, mas, uma criança, ao nos ver, vê que ela não é diferente, que ela não é uma aberração, que ela não é motivo de chacota. Vê que ela é uma pessoa que merece respeito.”

Novo clube, nova fase

Hoje, no Osasco, Tifanny tem o apoio da comissão técnica, das jogadores de time e da torcida. “Osasco é um clube tradicional que tem uma equipe muito forte, é o único campeão mundial do vôlei brasileiro. Então a gente tem esse respaldo de continuar um bom trabalho. Eu fui muito bem recebida, tenho amado trabalhar com a equipe do Osasco. Meu técnico, o Luizomar [de Moura], entende muito de vôlei e nos dá muito suporte.”

Algumas dessas jogadoras, como a meio de rede Fabiana Claudino, foram contra a presença de Tifanny no início, mas hoje reviram o posicionamento e apoiam integralmente a presença da jogadora. “A partir do momento que você entende como as coisas funcionam, você tem o direito de mudar de opinião, começar a apoiar, começar a dar força”, reconhece Tifanny. 

“Eu não critico quem um dia me criticou por não ter um entendimento. Hoje as pessoas buscaram entender e estão ao meu lado. Essas pessoas merecem muito respeito. Mas muitos, ainda buscando, não estão nem aí para o preconceito. E ainda tem quem não quer buscar entender”, aponta.

Algo que não mudou nesses anos de Tifanny na elite do vôlei é o sonho de vestir a camiseta da seleção brasileira. “É o sonho de toda atleta, né? Mas cada ano que passa fica mais distante pra mim, pela idade. Não depende só de mim, depende de uma convocação, depende de uma equipe técnica que precisa abrir a cabeça para as regras que existem.”

Apoio da família e afeto romântico

Fora das quadras, Tifanny tem outras paixões. A música, a família e cozinhar estão entre elas. “Gosto de sertanejo, gosto de funk, gosto de hardstyle. Meu marido gosta muito de funk consciente e eu aprendi com ele, gosto muito de ouvir porque traz a realidade do país. Eu gosto de Anitta, de Pabllo Vittar. Eu gosto de música. Sendo boa a gente está escutando”, brinca.

O afeto romântico, aliás, era uma das coisas Tifanny sempre procurou. Hoje ela é casada com o jogador de futebol Victor Emmanoel Metz e garante: “seguimos a vida normal, como qualquer outro casal e temos uma família que nos ama”.

“É muito importante que as pessoas entendam que pessoas trans podem ser gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais e héteros. Você ser uma pessoa trans e ser homossexual é diferente. As pessoas confundem muito identidade de gênero com sexualidade. Eu sou uma mulher trans hétero que está em um relacionamento com um homem cis hétero.”

Tiffany e o namorado, Victor Emmanoel Metz | Foto: Reprodução

Criada em um lar cristão, Tifanny entende que associar a religião com os preconceitos é errado: “A pessoa quando é preconceituosa vai arrumar uma desculpa em alguma coisa. Ou vai ser na bíblia ou vai ser na família. É ela que é preconceituosa e que não quer mudar, que não quer perceber. Usar a religião, o status, a família… é tudo preconceito enraizado, disfarçado”. 

Ela usa como exemplo sua madrinha, que mesmo sem informação a acolheu bem. “O amor é o mesmo, ela me ama e me trata como a afilhada dela. A pessoa quando fala que vem de cidade pequena, que vem de uma família tradicional… não, você vem com preconceito porque você quer. Se você não quiser ser preconceituoso, você pode ser filho da rainha Elizabeth que você não será preconceituoso. E família mais tradicional que essa não existe.”

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