Artigo | Cortada na transfobia: carta aberta à campeã Tifanny Abreu

    Com seu primeiro título nacional, a ponteira do Osasco Voleibol Clube torna-se a primeira atleta trans da história do nosso país a levantar uma taça nacional em um esporte de alto rendimento — ninguém poderá apagar isso

    O Osasco da ponteira Tifanny conquistou o tetracampeonato da Copa Brasil de Voleibol Feminino, após um jejum de sete anos sem títulos nacionais | Foto: Reprodução Instagram Tiffany Abreu/@tifannyabreu10

    Querida Tifanny, quero começar essa carta aberta te agradecendo. Muito obrigado por nunca ter desistido de fazer o que você mais ama no mundo, que é jogar vôlei. Muito obrigado por nunca ter deixado o ódio vencer. Muito obrigado por mostrar ao mundo que o esporte é, sim, um lugar para pessoas como nós.

    Quando ouvi seu discurso à beira da quadra, que começou com um grito-desabafo “vai ter mulher trans campeã sim”, eu chorei. Na verdade eu já estava chorando. No momento do apito final, por saber que, a partir daquele momento, nada mais tiraria seu nome da história do voleibol brasileiro. Foi impossível conter as lágrimas.

    Você, que já havia levantado duas taças como Campeã Paulista com o Osasco Voleibol Clube,  agora faz do dia 8 de fevereiro de 2025 uma data histórica. Nada nem ninguém jamais vai apagar o fato de você se tornar a primeira atleta trans da história do nosso país a levantar uma taça nacional em um esporte de alto rendimento.

    Leia mais: O pioneirismo involuntário de Tifanny, a primeira jogadora trans do vôlei brasileiro

    Sua atuação em quadra te levou ao seu primeiro título nacional e tornou o Osasco tetracampeão da Copa Brasil de Voleibol Feminino — após um jejum de sete anos sem títulos nacionais. Você, que saiu da pequena Paraíso do Tocantins, ganhou o país. Pode ter demorado oito anos na elite do vôlei feminino e cinco temporadas por esse clube, mas você venceu.

    E só a gente sabe que não foi um caminho fácil até aqui. Nos últimos anos, o conservadorismo escolheu que destruir as nossas vivências seria sua principal bandeira. Ainda em 2018, no primeiro mandato de Jair Bolsonaro (PL), tivemos que ouvir Damares Alves, então ministra dos Direitos Humanos, cravar que, para aquela gestão, os meninos deveriam usar azul e as meninas rosa. A gente sabe que isso nunca foi sobre roupas — e sim sobre um projeto político que tem como base a transfobia.

    De lá para cá, tudo piorou. A transfobia passou a eleger mais representantes e centenas de projetos de lei impedindo que nossos corpos estivessem não só no esporte, mas, de certa forma, na sociedade, começaram a surgir. E isso no mundo todo. O ódio às nossas existências une políticos e nomes como os de J.K. Rowling.

    O êxito da jogadora brasileira vem num momento de recrudescimento da transfobia no Brasil e no mundo | Foto: Reprodução Instagram Tiffany Abreu/@tifannyabreu10

    Discurso trumpista replicado no Brasil

    Logo no discurso de posse, Donald Trump, presidente dos EUA, disse, com todas as palavras, que seu governo atacaria diretamente pessoas trans. No alto do seu delírio, o fascista eleito afirma que existem apenas dois gêneros — coisas que só quem tem uma mente ultrapassada e conservadora acredita. Dias depois, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou um projeto que proíbe atletas trans em competições femininas. 

    Como bons patriotas que vivem no Brasil, mas acreditam viver em terras estadunidenses, o Plenário da Câmara de Belo Horizonte fez o mesmo movimento, deixando avançar um projeto transfóbico, que parece ter sido escrito há séculos,  e que permite critério de “sexo biológico” em eventos esportivos.

    Mas, Tifanny, nada disso te fez desistir. Pelo contrário, só ficou mais preparada para enfrentar os desafios. Desde 2017, quando você foi covardemente atacada quando iniciou sua trajetória como jogadora de vôlei aqui no nosso país, à época vestindo a camisa do Sesi-Bauru, você só cresceu. Dentro e fora de quadra. 

    Leia mais: Artigo | Brasil, o país mais transfóbico do mundo

    Ser uma atleta de alto rendimento no Brasil não é fácil. Independentemente de qual esporte ou função, é preciso ter disciplina, um cuidado absurdo com o corpo e abrir inúmeras portas ao longo da carreira. Ainda mais num país que só valoriza o futebol. Mas, para você, a dificuldade é ainda maior.

    Aos 40 anos, provando também que a longevidade no esporte é uma realidade, você vive seu melhor momento. Cinco anos acima da expectativa de vida de uma pessoa trans no nosso país, você ainda tá longe de parar. Eu espero e torço muito em te ver ser campeã da Superliga, maior campeonato do voleibol brasileiro. Dentro das quatro linhas e sob o chão alaranjado de uma quadra de vôlei, é você quem comanda o ataque osasquense. Da parte verde do ginásio, seu saque é capaz de desestruturar toda a defesa adversária. Das arquibancadas, você só recebe amor e apoio incondicional dessa torcida que te acolheu como nunca.

    Queria que pudéssemos te garantir que, daqui pra frente, você só vai ter esse lado positivo do esporte.

    Você não estará sozinha

    Não é justo que a gente ainda seja alvo de ataques unicamente por ser quem somos. Ter que provar diariamente que não existe vantagem em estarmos nos esportes. O que existe é uma vida de exclusões — em todos os sentidos. Quando anunciamos a transição publicamente, essa exclusão aumenta. A única verdade por trás desses ataques, projetos de lei e tentativas de nos impedir que estejamos nos esportes, é a transfobia.

    Mas eu sei que, não importa o que venha pela frente, você vai manter seu sorriso no rosto, deixar seu carisma intacto e mostrar, todos os dias, que a única força diferente que uma pessoa trans tem nos esportes é a força de vontade de viver e jamais desistir. Você não esteve e nunca estará sozinha. Seu nome está eternizado na história do esporte brasileiro e seu legado vai permitir que, num futuro — espero que breve —, possamos nos sentir em casa no mundo esportivo, vivenciando só a parte boa que a prática esportiva nos proporciona.

    Nosso futuro não será mais interrompido pela transfobia. Não temos mais tempo para ter medo. Nossas vidas importam e precisam ser vividas agora. Pessoas como você inspiram e são capazes de mudar mundos. Siga forte, siga firme, siga viva e siga campeã em tudo.

    *Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem “Transresistência” (Dita Livros). Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021.Tem passagens pela Agência Mural, UOL, DiaTV e CazéTV. Atualmente é jornalista na ESPN e colunista da revista AzMina.

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