Um adolescente e um rapaz de 19 anos foram presos em Heliópolis, zona sul da capital paulista, tendo apenas o testemunho dos policiais e o reconhecimento das vítimas como prova
Um carro branco foge em alta velocidade de pelo menos seis viaturas da Polícia Militar e um helicóptero. Os ocupantes do veículo entram pelas estreitas ruas da favela de Heliópolis, na zona sul da cidade de São Paulo, abandonam o veículo e fogem a pé. Rômullo Ygor de Oliveira Teles, de 19 anos, e um amigo adolescente, de 16 anos, estavam sentados em uma praça da comunidade e ao verem a perseguição correram para casa com medo.
Sem autorização judicial, os policiais invadiram a residência onde Rômulo mora com a mãe e um irmã recém-nascida, e prenderam ele e o amigo sob alegação que os dois estavam no carro em fuga, que havia sido roubado horas antes a dez quilômetros de distância de onde os jovens estavam.
Segundo o boletim de ocorrência registrado no 27º DP (Campo Belo), um casal foi abordado na altura do número 26 da rua Adolfo D’Ávila, na Vila Regente Feijó, na zona leste, por volta das 20h30 do dia 24 de agosto. De acordo com o depoimento do dono do carro, um empresário de 21 anos, após estacionarem e saírem do carro, um Audi A3, ele e a esposa foram abordados por dois homens. Um teria mostrado um objeto semelhante a uma arma, enquanto o outro recolhia os pertences e depois fugiram levando o veículo.
Os policiais militares Rogério Correia de Moura e Rafael Roberto Marques Martins, que foram identificados no boletim de ocorrência respectivamente como condutor e testemunha da ação, informaram que o carro passou por uma blitz sem as placas e não parou após a sinalização feita pelos PMs, dando início à perseguição.
No depoimento, os policiais afirmaram que na madrugada do dia 25 de agosto seguiram as instruções do helicóptero que informaram que as pessoas que roubaram o veículo estavam na casa de Rômullo, mas que mesmo depois da revista pessoal e buscas pela residência não encontraram nenhum dos pertences que foram roubados das vítimas.
Na delegacia, Rômullo e o adolescente afirmaram que estavam na praça do bairro no horário em que as vítimas disseram que foram roubadas e que nada tinham a ver com o crime. No reconhecimento, o casal afirma que foi o adolescente que saiu dirigindo o carro e que o jovem de 19 seguiu no banco do carona.
Mesmo tendo residência fixa, trabalho, matrícula na rede de ensino público e sem envolvimento em nenhuma ocorrência anterior, Rômullo foi preso e o adolescente foi apreendido. Em audiência de instrução, ocorrida na última segunda-feira (12/9), o adolescente foi posto em liberdade.
Vídeos e comprovante
O sistema de câmeras de segurança de um mercadinho que fica em frente à praça onde os rapazes afirmam que estavam no momento do assalto, mostram o adolescente dentro do estabelecimento comprando um pacote de bolachas, se dirigindo ao caixa e pagando o valor do produto com o cartão de débito.
Além das imagens, a família do garoto também tem o comprovante desta compra onde mostra o horário e o local da compra e quer juntar essas provas ao processo para mostrar que o estudante do 1º ano do ensino médio não tem envolvimento no crime que está sendo acusado.
No dia 12 de setembro, em uma segunda audiência de instrução, a Justiça entendeu a denúncia do Ministério Público pela condenação como procedente, mas por não ter antecedentes foi lhe dada a liberdade assistida. A defesa do jovem ainda tenta provar a inocência dele, pois mesmo em liberdade, para o poder judiciário ele teve envolvimento no assalto.
“O delegado veio e me falou que meu filho ia ficar preso porque a vítima reconheceu. Eu disse que era impossível, que meu filho não sabia dirigir e que estava perto de casa a noite toda, mas ele não quis me ouvir e foi até grosso comigo”, com Tamires Marques de Oliveira, de 32 anos, mãe do adolescente.
Marinete de Oliveira, de 44 anos, mãe de Rômullo, também relata que foi maltratada pelos policiais que prenderam o seu filho. Desde que ele foi levado pelos PMs, ela afirma ter tido contato com o rapaz apenas na delegacia momentos após ele ser preso.
“Quando eu vi os policiais algemando meu filho eu me desesperei e abracei ele. Um policial me empurrou e disse que eu não poderia fazer aquilo e chamou meu filho de bandido. Ele ainda disse rindo que eu só veria meu filho a partir daquele dia na cadeia”, relembra a mãe, às lágrimas.
Rapazes tímidos
As duas mães garantem que seus filhos nunca tiveram nenhum envolvimento com qualquer prática criminosa e que os dois amigos tem um jeito introvertido. Essa característica de não ser aberto a conversas foi uma das maiores preocupações de Tamires durante os dias que o filho ficou internado pelo poder judiciário.
“Ele é um menino muito tranquilo e sossegado. Ele nunca passou tanto tempo sozinho, ele nunca viajou só, por exemplo. Ele é tímido, não é muito de falar. Foi muito difícil para ele”, explica a mãe.
Rômullo é o filho mais velho de Marinete. Além dele, ela tem uma bebê de apenas nove meses. Para ela, é um absurdo o filho estar preso.O rapaz trabalha em um bar em São Caetano do Sul como copeiro durante as madrugadas de final de semana.
“Ele sempre me deu parte do salário para ajudar nas coisas aqui de casa. Ele não é de festa, não bebe, só fuma cigarro. É menino tranquilo, está namorando. Ninguém consegue acreditar que fizeram isso com ele. Está todo mundo assustado”, revela Marinete de Oliveira.
Processo
A defesa de Rômullo Ygor de Oliveira Telles apresentou uma defesa prévia do rapaz anexando provas como seu vínculo de trabalho e comprovante de residência fixa e laudo das imagens das câmeras de segurança. A advogada Arismary Ruchinsque, que coordena a ação social Vozes Inocentes, que cuida de casos de pessoas que são presas injustamente pelo sistema de justiça, está à frente da defesa do rapaz, e pediu as imagens das bodycams dos policiais e uma perícia no carro para verificar se há impressões digitais dos rapazes no veículo.
No relatório final do inquérito, o delegado Filipe Sanches Ribas dos Santos afirma que a prisão de Rômullo se dá com os testemunhos dos PMs e o reconhecimento das vítimas como únicas provas que incriminam o rapaz. “Em revista pessoal, e em buscas na casa, nada de ilícito foi encontrado”, afirma o delegado do 27º DP (Campo Belo)
“O fato de nada ter sido localizado na casa é um ponto importante, porque pela versão da policia, eles teriam sido seguidos. Por outro lado, é dificil o helicóptero confirmar todo esse trajeto que eles teriam feito, parando na casa do Romullo, porque provavelmente são vielas apertadas. Dessa forma, até o próprio ingresso na residência se torna ilicito, porque não se teria como confirmar que eles eram os suspeitos do crime, o que afastaria a ocorrência de flagrante e perseguição que justificasse a invasão do domicilio”, comenta a adovogada criminal Débora Nachmanowicz, que analisou o caso a pedido da Ponte.
O promotor do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Danilo Palomone Agudo Romão ainda imputa a Rômullo ter perssuadido o adolescente a praticar o roubo junto com ele. “Consta também que, nas mesmas circunstâncias de tempo e de local, Romullo Ygor De Oliveira Teles, corrompeu e facilitou a corrupção de menor de 18 anos, com ele praticando e induzindo-o a praticar as infrações penais”, afirma o promotor no pedido de prisão feito ao Tribunal de Justiça de SP (TJSP).
Mesmo tendo trabalho, endereço fixo e nenhum antecedente crinimal, a juíza Tânia da Silva Amorim Fiuza determinou a prisão de Rômullo, alegando que mesmo com esses atenuantes, não era possível que ele respondesse ao processo em liberdade.
“Ressalto que, embora primário, a arguição de que as circunstâncias judiciais são favoráveis não é o bastante para impor o restabelecimento imediato da liberdade. Dessa forma, reputo que a conversão do flagrante em prisão preventiva é necessária ante a gravidade concreta do crime praticado e a fim de se evitar a reiteração delitiva, assegurando-se a ordem pública, bem como a conveniência da instrução criminal e a aplicação da lei penal”, determinou a magistrada.
A defesa do rapaz afirma que ele está bastante abalado durante esse mês em que está preso. Da mesma forma, Dona Marinete não tem conseguido ter paz em sua vida neste mesmo período. “Eu tenho medo que a PM volte aqui e faça algo comigo. Ou que eles façam alguma coisa com meu filho lá dentro.”
Outro lado
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que “O caso foi registrado no 27º Distrito Policial (Campo Belo), onde as vítimas reconheceram os autores. Os dois foram autuados em flagrante e o inquérito foi relatado para apreciação do Poder Judiciário”.
O Ministério Público informa que “o réu foi indiciado pela autoridade policial, a prisão em flagrante foi decretada pela juíza do Departamento de Inquérito Policial (Dipo) e, ao final, ele foi denunciado pelo Ministério Público”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo não respondeu ao email enviado pela reportagem.