Júri decide que ex-PM matou atriz por acidente e caso deve voltar à Justiça Militar

Lua Barbosa foi baleada por Marcelo Aparecido Domingos Coelho em uma blitz quando andava de moto com o namorado, no interior de SP, em 2014; família diz que vai recorrer: “não houve disparo acidental”, lamenta pai

Lua Barbosa tinha 25 anos, era atriz e interpretava a palhaça Meia Lua Quebrada | Foto: arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) entendeu que o ex-cabo Marcelo Aparecido Domingos Coelho não teve intenção de matar a atriz e produtora cultural Luana Carlana de Almeida Barbosa e decidiu que o julgamento do caso deveria voltar para o Tribunal de Justiça Militar. Em 2014, a jovem foi baleada pelo então PM em uma blitz quando andava de moto com o namorado, em Presidente Prudente, no interior paulista e, desde então, a família lutava para que o caso fosse a júri popular.

No julgamento que aconteceu na última quarta-feira (19/10), os jurados não absolveram Coelho. Contudo, eles acataram parte da tese da defesa de que o tiro foi acidental e, com isso, seria um crime de homicídio culposo (que não há intenção de matar). Como o tribunal do júri apenas julga crimes dolosos contra a vida (com intenção de matar ou de se assumir o risco de praticar a morte, o chamado dolo eventual), o juiz Alessandro Correa Leite determinou que o caso seja remetido à Justiça Militar assim que a sentença do júri transitar em julgado, ou seja, não seja mais possível recorrer. Ainda cabe recurso à decisão.

O processo tramita em segredo de justiça e, à Ponte, o pai de Luana, o jornalista Marcos Barbosa, 66, disse que de início a família não foi autorizada a acompanhar o julgamento. Depois, apenas os pais puderam entrar e assistir a sessão. Amigos e parentes ficaram com faixas e camisetas com o rosto da atriz do lado de fora do Fórum de Presidente Prudente. A família está revoltada com o resultado. “Ao ‘lavar as mãos’, o tribunal contribuiu de forma significativa para a perpetuação da impunidade da grande maioria dos crimes cometidos por policiais militares contra civis inocentes”, criticou Marcos.

Para Marcos, o caso volta ao estágio de seis anos atrás, quando havia a disputa de qual tribunal teria competência para investigar e julgar o crime. Em 27 de junho de 2014, o então cabo Coelho argumentou que o casal desobedeceu a ordem de parada na blitz de trânsito, feita na avenida Joaquim Constantino, e manobraram a moto em sua direção. A reação do PM foi sacar a arma e se afastar, segundo ele. Nesse momento, o capacete de Felipe Barros, namorado de Luana, teria batido na pistola do policial militar e disparado acidentalmente contra a atriz, que estava na garupa. Felipe aponta que não parou o veículo por problemas de freio, que não houve impacto no capacete e que o cabo apontou a arma na sua direção.

O caso de Luana, na época, só passou a ser investigado pela Polícia Civil após pressão de amigos e familiares com requerimento feito pela Ouvidoria das Polícias. Inicialmente, a delegacia seccional da região classificou o crime como homicídio culposo e encarregou a apuração apenas à Polícia Militar, justamente corporação que o cabo integrava. Com a pressão, o inquérito aberto pela Polícia Civil categorizou o homicídio como “dolo eventual” pelo fato de o policial ter assumido o risco, sem prever a morte como consequência.

Na esfera militar, Marcelo tinha sido absolvido em 2015 por homicídio culposo. Os advogados da família de Luana recorreram e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a decisão e transferiu o caso para a Justiça Comum. Os ministros da 3ª Seção do STJ argumentaram que, no caso de dúvida sobre o dolo do crime, impera o princípio “in dubio pro societate”, que significa “a favor da sociedade”.  O Ministério Público (MPSP) denunciou Coelho por homicídio doloso (quando há intenção de matar). Em 2018, o TJ-SP manteve a decisão de levá-lo a júri popular.

Parentes e amigos usam camiseta com o rosto da atriz Lua Barbosa e empunham faixa com dizeres “Lua Barbosa, presente” em frente ao Fórum de Presidente Prudente (SP) durante julgamento do ex-PM | Foto: Reprodução/ Facebook

No entanto, a família informou que houve algumas trocas de promotores ao longo desses anos e, no júri da semana passada, o promotor João Paulo Giovanini Gonçalves sustentou a tese de homicídio culposo, ou seja, de disparo acidental e pediu que o acusado fosse condenado. Ele também contrariou o advogado da família, que atuou como assistente de acusação e defendeu que houve um crime de dolo eventual. Para o advogado Rodrigo Arteiro, o ex-PM assumiu o risco de matar ao estar com a arma empunhada e com o dedo no gatilho.

Uma testemunha declarou que viu o momento em que o ex-policial teria agredido o namorado da vítima com a pistola e, para Marcos, a tese do MPSP favoreceu a defesa, que pleiteou a tese de homicídio culposo. “Durante o julgamento irrefutáveis provas materiais, periciais e depoimentos testemunhais levaram à comprovação de que o policial desferiu um golpe com a mão armada e o dedo no gatilho contra o condutor da moto, causando o disparo da arma e culminando com a morte de Luana”, declarou o pai da atriz. “Ficou tecnicamente comprovado que a arma não tinha qualquer defeito que a fizesse disparar sem o acionamento do gatilho; ainda mais: evidente ficou que o policial transgrediu os protocolos de conduta da Polícia Militar durante aquela ação fatal, ou seja, ele tinha conhecimento do erro e do risco”, prosseguiu.

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Em 2019, o Tribunal de Justiça Militar reverteu uma decisão de dois anos antes que reintegrou o ex-cabo à corporação e manteve a demissão. Em 2015, a Polícia Militar o exonerou do cargo por entender que ele cometeu “atos atentatórios à instituição e aos direitos humanos fundamentais, consubstanciando transgressão disciplinar de natureza grave” ao “disparar arma por imprudência, negligência, imperícia, ou desnecessariamente”, conforme o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar.

Para o jornalista, o tribunal militar tem “caráter claramente corporativista”, “não prima pela isenção ou imparcialidade” e “não inspira confiança à sociedade”. “Ao remeter o processo à alçada militar, o tribunal volta no tempo em oito anos, aumentando ainda mais a injustiça e o descrédito existente em relação ao Judiciário”, lamentou. “Depois de tantos anos de dor, sofrimento e perseguições nessa luta por justiça, se opta pela não-justiça.”

O que diz a defesa do ex-PM

Procurada, Renata Camacho Dias, uma das responsáveis pela defesa de Coelho, disse que o resultado do júri mostra que o ex-cabo “jamais teve a intenção de matar a vítima” e que o namorado dela fugiu durante a blitz. “Por isso, entendemos que os jurados agiram corretamente quando reconheceram que não houve dolo, ou seja, vontade de matar, nos atos praticados pelo policial, à época dos fatos”, declarou a advogada. “Entendemos e nos consternamos com a dor da família e da Luana, mas o nosso trabalho é em busca da justiça e ontem, no nosso entender, a justiça foi feita.”

O que diz o MPSP

A Ponte procurou a assessoria do órgão a respeito da atuação do promotor e questionou se recorreria da decisão.

Por meio de nota, o promotor João Paulo Giovanini Gonçalves disse que sustentou que o homicídio foi culposo por entender que “decorreu de uma forma inadequada (imprudência) no manuseio da arma, no contexto daqueles fatos, trazidos exaustivamente em Plenário [julgamento], tanto por testemunhas, quanto pela prova pericial existente nos autos”.

Ele disse que vai recorrer apenas em relação à decisão do juiz que determinou que o caso seja julgado pela Justiça Militar pois entendeu que o júri, ao votar para condenar Coelho, seguiu a tese da acusação. “O júri condenou o acusado como incurso no homicídio culposo. Nesse caso, segundo entendimento da Promotoria de Justiça, a sentença poderia ter sido proferida pelo próprio Juiz presidente, sem a remessa para a Justiça Militar”, escreveu.

Reportagem atualizada às 18h19, de 26/10/2022, para incluir resposta do MPSP.

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