Homem de 25 anos invadiu escola infantil e matou quatro crianças em Blumenau (SC) nesta quarta (5). Ataques estão se tornando “endêmicos” no Brasil, afirma dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Na manhã desta quarta-feira (5/4) um homem de 25 anos invadiu uma escola de educação infantil em Blumenau (SC) armado com uma machadinha e matou quatro crianças entre 5 e 7 anos, deixando ainda mais cinco crianças feridas. O ataque aconteceu pouco mais de uma semana da morte da professora Elisabete Tenreiro, esfaqueada dentro da escola estadual Thomazia Montoro, na capital paulista, em uma ação semelhante realizada por um aluno de 13 anos, que deixou mais quatro pessoas feridas, no dia 27 de março.
Os ataques chamam atenção também pela proximidade com outros massacres históricos no Brasil e nos Estados Unidos. O massacre de Columbine, talvez o ataque do tipo mais famoso do mundo, que deixou 13 mortos e 21 feridos (além dos próprios assassinos), foi em 20 de abril de 1999. O massacre de Realengo, o mais mortal do tipo no Brasil, que deixou 12 mortos e 22 feridos em uma escola na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, aconteceu em 7 de abril de 2011. Em 13 de março de 2019 dois ex-alunos entraram em uma escola em Suzano (SP) e mataram sete pessoas, no pior massacre escolar brasileiro da história recente.
“Infelizmente a gente monitora [as redes sociais] e prevê que mais ataques estão sendo articulados pelo país na internet”, diz Daniel Cara, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Um dos 22 coordenadores do Grupo Temático de Educação do Gabinete de Transição, Cara convocou 11 pesquisadoras e ativistas para elaborar o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, publicado em dezembro do ano passado, e, em entrevista à Ponte, considera que a situação dos ataques em escolas no Brasil está se tornando endêmica.
O relatório, elaborado após um adolescente de 16 anos atacar duas escolas em Aracruz (ES), matando quatro pessoas e ferindo outras 12 ao invadir duas escolas em 25 de novembro de 2022, ressalta que, para se evitar novos massacres, é importante que a escola seja um ambiente acolhedor, possibilitando uma formação que combate o ultrarreacionarismo. Alinhado a isso, estaria a “necessidade de um trabalho pedagógico em educação crítica da mídia e de combate à desinformação”.
Para Cara, a maneira como a imprensa tem noticiado esses ataques e a inação das redes sociais em evitar o compartilhamento de conteúdos que incentivem novos massacres têm contribuído para a onda atual de ações do tipo. “Quando você coloca a imagem da professora sendo esfaqueada, certamente dá ênfase ao aluno. Tudo o que esses atacantes buscam, é notoriedade pública, uma propaganda do ato de violência que eles cometeram”, explica. Leia abaixo a entrevista completa.
Ponte — O mês de abril é marcado por tragédias como as que houveram em Columbine e Realengo, a gente teve agora outro ataque na Vila Sônia no final de março e esse agora em Santa Catarina. Fora outras tentativas de estudantes com faca dentro de escolas. Como você vê esse momento em relação à segurança nas escolas?
Daniel Cara — Já passou da hora de ter uma política nacional de combate à violência nas escolas que reúna os esforços de governo federal, governos municipais, os governos estaduais articulando as forças de segurança e também a área da saúde, especialmente saúde mental, e a área da educação. Eu vou ser bem franco. Infelizmente a gente monitora [as redes sociais] e prevê que mais ataques estão sendo articulados pelo país na internet. Estive agora em um programa com a Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Técnico-Científica do estado de Santa Catarina para observar o que ocorreu ali e eles já investigam a possibilidade de mais pessoas investidas no ataque e protegidas, articuladas.
Desculpe, estou tão chateado com a história que imagens, palavras, falham. Muito provavelmente foi uma ação articulada pela internet. Ainda não dá para cravar. Mas nós precisamos ter contato com agências de segurança de outros países, especialmente dos Estados Unidos, e com as plataformas de redes sociais para monitorar a internet e fazer uma ampla campanha de conscientização da população de combate a esse tipo de ataque, que está se tornando endêmico no Brasil. Já é uma situação endêmica.
Ponte — Esse tipo de ataque foi muito visto muito pela TV nos Estados Unidos, há coisa de dez, 20 anos atrás e hoje está muito presente no Brasil. A quem atribuir esse crescimento desse tipo de ação no país?
Daniel Cara — Existem problemas que são problemas muito semelhantes ao que ocorreu no mundo entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Uma forte crise econômica, uma falta de perspectiva mobilizada por uma cultura misógina, uma cultura racista e uma cultura com alto teor nazista e fascista. Veja, eu não seria irresponsável de dizer que esses atacantes já se articulam como membros políticos de grupos neonazistas e fascistas. Não se trata disso, mas eles cultuam os símbolos e cultuam a violência nazista e fascista. O que ocorre é que isso gera um caldo de cultura que, infelizmente, ainda é mobilizado por comunidades gamers, que não são de forma alguma investigadas. Comunidades de exaltação às armas e à violência, com armas de airsoft tipo e clubes de tiro, e isso se encontra de maneira muito sólida com comunidades masculinistas que fazem apologia da masculinidade contra as mulheres.
É bem esse caso de Santa Catarina. Muito provavelmente vão ser encontrados esses indícios, talvez não todos, mas parte desses indícios. Isso já está sendo investigado pelas forças de segurança de Santa Catarina. Esse ataque tem uma comunicação direta com o ataque em Saudades (SC) que deixou cinco mortos e 14 feridos, que também ocorreu contra um estabelecimento de educação infantil. É estarrecedor o que está acontecendo no Brasil. E falta ainda uma posição clara do poder público. Eu estive hoje conversando com membros do Ministério da Educação. Acabaram de me ligar um pouco antes de você entrar em contato comigo, dizendo claramente que eles vão lutar por um decreto interministerial para atacar esse problema. E eu espero que isso saia à luz do relatório que nós elaboramos. Espero que isso saia com urgência.
Ponte — Qual é a sua análise em relação à publicidade e divulgação do nome e fotos dessas pessoas que fazem esses ataques, que muitas vezes elas querem ter esse tipo de notoriedade. Isso serve de exemplo para futuros ataques, né?
Daniel Cara — A imprensa é corresponsável. Eu não sou contrário a nenhum tipo de órgão de imprensa, mesmo aqueles que acabam prejudicando em seus editoriais, etc, a pauta da educação. Mas para mim é inaceitável o que tem acontecido na maneira como a imprensa e mesmo contas de redes sociais têm feito a divulgação desses ataques. Porque se trata disso. Quando você coloca a imagem da professora sendo esfaqueada, coloca a imagem do aluno sendo contido pela outra professora, certamente dá ênfase ao aluno. Tudo que ele busca, tudo o que esses atacantes buscam, é notoriedade pública, uma notoriedade completamente absurda, abjeta. Mas o que eles querem? A propaganda do ato de violência que eles cometeram. A imprensa obrigatoriamente tem que parar de divulgar nomes, parar de divulgar as imagens.
Veja a gravidade dos termos que eu vou usar aqui: o agressor acaba sendo glorificado e endeusado nessas comunidades de violência que existem na internet em todas, todas, sem exceção, todas as plataformas e redes sociais. Nesse momento não se trata mais de uso da web. Eles perderam completamente o descomedimento, o que significa um fator gravíssimo. O que é uma massificação desses ataques? Você percebe que nas plataformas eles não estão sendo sendo monitorados, mesmo nas plataformas comuns de uso geral, como também, além de não serem monitorados eles estão se multiplicando, porque acessar a deep web era complicado, não era simples, Isso tem ocorrido com enorme gravidade e, infelizmente, a olhos nus.As plataformas também são co-responsáveis pelo problema, sim.
Ponte — Como é que você vê a questão dos professores? Quem trabalha na escola, professores, coordenadores, e a qualquer momento pode entrar um aluno que você já conhece na escola. Como é o sentimento de quem trabalha com educação hoje em dia depois desses ataques dos últimos tempos?
Daniel Cara — Sou professor e converso todos os dias com professores de educação básica, todos os dias, sem exceção. O terror é generalizado. Nesse momento não existe mais segurança no local de trabalho. A todo momento, professores e alunos e demais profissionais da educação acham que pode ocorrer um ataque no seu ambiente escolar. E é por isso que a gente precisa agir com urgência. Porque um dos objetivos desses atacantes é gerar exatamente essa situação de desespero.
Ponte — E como você tem visto algumas propostas de governos, como aqui em São Paulo, do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), de colocar polícia dentro da escola, de monitorar professores e alunos?
Daniel Cara — Funcionou nos Estados Unidos? Não vai funcionar no Brasil. O Tarcísio e os outros governadores pensam que é um problema de policiamento ostensivo. E o problema não é de ostensividade, não é da presença policial. O problema concreto é um problema de articulação pela internet e de valores sociais que precisam ser retomados, é um problema do esvaziamento da escola pública. Um dos responsáveis por esses ataques que as escolas públicas sofreram com escolas sem partidos, quase sempre com militar e educação domiciliar, gera esse tipo de ataque. As escolas estão sendo atacadas há muito tempo.
No Brasil isso era aceitado, era até respeitado pelos órgãos políticos. Parecia que a defesa da escola se tratava de uma posição ideológica, sendo que deveria ser um valor da sociedade. Então não tenho. Eu tenho absoluta certeza de que isso precisaria ser tratado com uma urgência maior do que a que está sendo enfrentada e que a gente precisa também. Tem que compreender que estes ataques às escolas têm como origem um discurso de ódio à escola.
Ponte — A maior parte dos ataques que temos visto têm sido em escolas públicas. É apenas uma coincidência ou é uma questão realmente de fragilidade e fragilização do ensino público?
Daniel Cara — Olha, há uma fragilização enorme do ensino público. Agora, o problema, o problema concreto, é que essa fragilização já está em curso há muito tempo. A gente vai precisar enfrentá-la com urgência. Não tem outra alternativa.