Fala de Derrite no Roda Viva mostra falta de compromisso com o antirracismo, diz pesquisadora

Secretário de Segurança Pública de SP disse que a polícia não aborda ninguém por ser negro e que casos são “desvios de conduta”; estudos e especialistas indicam o contrário

O secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, Guilherme Derrite, negou que o racismo está presente de forma institucional nas polícias. A declaração se deu nesta segunda-feira (17/4), durante entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, quando a jornalista Debora Freitas, da Rádio CBN, perguntou o que a gestão atual estava fazendo para combater o racismo na corporação ao apontar que negros são mais de 80% dos mortos pelas polícias no Brasil. Para pesquisadoras ouvidas pela Ponte, a posição do secretário é “temerária” para reduzir os casos de violência policial.

Derrite, que é o primeiro policial a comandar a pasta desde a redemocratização, disse que “as polícias de São Paulo possuem a maior carga horária de direitos humanos e o tema racismo é falado nos bancos escolares”. Contudo, emendou dizendo que a polícia “combate o crime” e que “não existe um indivíduo suspeito”. “Agora, se dentro do número de criminosos detidos pela polícia ou que acabam, lamentavelmente, entrando em confronto com a polícia, a maior parte deles pertence a um… Não sei se posso falar… determinado grupo, como maneira correta de falar, isso foge da alçada da polícia”, afirmou.

Além disso, ao ser retrucado por Freitas, a única negra da bancada de seis jornalistas, de que as pessoas negras são mais abordadas pela polícia mesmo sem cometer crimes, o secretário respondeu: “Eu já fui abordado pela polícia”. Ele também rebateu afirmando que a corporação atua de forma “técnica”. “Ela [a polícia] aborda indivíduos em atitude suspeita. Ela não aborda porque é negro”, enfatizou.

O secretário ainda mencionou que não teria como a polícia agir institucionalmente de forma racista porque a maior parte da corporação é formada por policiais negros e provenientes de regiões periféricas. “Eu não consigo formar essa convicção de que um policial negro aborda outro indivíduo porque ele é negro”, disse. “Existe na formação, na parte de direitos humanos, se conversa sobre isso nas escolas de formação. Isso é falado. Existe, sim, uma preocupação. Ninguém é tratado de maneira distinta pelo fato de ser negro. Isso eu garanto. E, se acontecer, vai ser severamente punido”, prosseguiu.

As declarações de Derrite, porém, vão na contramão de diversas pesquisas que evidenciam que as forças de segurança pública tratam de forma diferente a população negra quando comparada com pessoas brancas. Um deles foi publicado no ano passado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). O levantamento ouviu 1.018 pessoas entre maio e junho de 2021, no Rio de Janeiro (510) e em São Paulo (508), sobre abordagens policiais que já sofreram.

Os registros indicaram que negros tinham quase cinco vezes mais chances de ser enquadrados do que brancos. Além disso, nas respostas, 46% das pessoas negras relataram que ouviram referências explícitas sobre sua cor durante as revistas enquanto, dentre as brancas, apenas 7% disseram que a cor foi mencionada. As negras também descreveram mais situações de violência durante as abordagens do que as brancas.

Outro, mais recente, foi publicado em março deste ano pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que apontou que os tribunais validam prisões com base em abordagens preconceituosas, com base na cor da pele e por critérios vagos. Na pesquisa, foram analisadas 1.837 condenações de segunda instância em que a defesa dos presos acusados de tráfico de drogas questionavam a validade das provas ao argumentar falta de objetividade dos critérios da polícia para fazer a abordagem. Em 98% dos casos que o grupo teve acesso à integra do processo, a Justiça manteve as condenações.

Integrante do Núcleo e uma das autoras dessa pesquisa, Amanda Pimentel aponta que a incorporação da disciplina de direitos humanos no currículo das polícias se deu por pressão de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil devido a diversos casos de racismo e de violência, mas ainda é insuficiente.

“De alguns anos para cá, os currículos apresentam uma certa inserção de disciplinas de humanidades, que é principalmente a disciplina de direitos humanos, mas muitas vezes, e muitas pesquisas voltadas à formação dos policiais apontam isso, existe uma distância muito grande, e isso é apontado pelos próprios policiais, entre o ensino de direitos humanos e a prática policial”, explica. “Existe uma cultura formal e uma informal que vai contra o que está posto nessas disciplinas de direitos humanos, que são poucas ainda. Geralmente é uma disciplina de direitos humanos que ainda não é encarada como uma disciplina tão importante quanto outras vistas como mais técnicas”.

Além disso, a pesquisadora aponta que a falta de critérios objetivos sobre “atitude suspeita” para realizar abordagens policiais desmonta a tese de atuação técnica argumentada por Derrite. “A gente não tem uma indicação clara do que é uma ação suspeita, a gente vê que grande parte disso vem de uma forma como não só a polícia, mas toda a sociedade, vê indivíduos e ações como mais suspeitas do que outras”, destaca.

“Como não tem regulamentação tanto em lei quanto nesses cursos e normativas internas da polícia do que leva objetivamente a relação de um crime com uma ação suspeita, a gente vê que o compõe isso é muito mais essa cultura informal que vai dar conteúdo a essa atitude suspeita que, em geral, está muito ligada à imagem, à vida pregressa das pessoas, a elementos socioeconômicos”, prossegue. “Dizer que não existe indivíduo suspeito mas atitude suspeita é um esforço, falho, de transferir a responsabilidade e a falta de objetividade da atuação policial, o que, do ponto de vista jurídico, força coleta de provas que não são suficientes”, critica.

Juliana Brandão, pesquisadora-sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), indica que as pessoas que compõem a instituição não são neutras e também são influenciadas por marcadores sociais e raciais. “A declaração dele [Derrite] é temerária porque estamos diante de uma autoridade estatal que não tem só o poder da caneta, mas também detém de poder político e tem bastante capilaridade quando faz uma fala negando o racismo dentro da corporação como um todo”, contesta.

Ela relaciona o descolamento do secretário ao debate do perfilamento racial no Supremo Tribunal Federal (STF), que discute exatamente os critérios de revista pessoal, a partir de um caso de um homem negro condenado por tráfico de drogas por estar com 1,53 g de cocaína e que, no boletim de ocorrência, o PM que o abordou descreve como motivo a cor dele e por estar em “local conhecido de tráfico”. O julgamento está suspenso.

“O que me chama a atenção é que ele [Derrite] faz uma tentativa de neutralizar a existência do discurso racista dentro da polícia tentando equiparar a uma situação individual, quando diz que já foi abordado, a uma evidente seletividade dos sujeitos que são abordados cotidianamente pela polícia”, prossegue.

As especialistas também enfatizam que ter policiais negros não significa que a estrutura policial não reproduza comportamentos racistas. Além disso, dentro da polícia, os negros foram 67,7% das vítimas de mortes violentas, segundo o Anuário de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“As instituições militares são formadas a partir de uma ideia, que ele mesmo fala na entrevista, de combate ao crime, de combate ao criminoso. E essa ideia é formada a partir de uma ideia de que existem pessoas perigosas, que historicamente são classes que se formaram ali no período pós-abolição [da escravatura, em 1888], que são classes formadas por negros, por pessoas de periferia”, explica Pimentel. “São esses valores que vão compondo a instituição policial e que vão reproduzir níveis de seletividade racial”.

Para elas, as declarações do secretário inviabilizam o enfrentamento ao racismo. “A medida que você tenta desconstruir os argumentos e silenciar a realidade que se impõe, o que se está tentando fazer é abrir uma outra frente discursiva para desviar do problema central que é, sim, estrutural e, para ser enfrentada precisa ser reconhecida”, avalia Juliana Brandão.

“O que fica mais evidente é que a instituição policial, o secretário, a pasta da Segurança Pública não se compromete institucionalmente a uma pauta que é muito importante”, destaca Amanda Pimentel, da FGV. “Não se reconhece que as instituições policiais reproduzem níveis de seletividade racial quando, na prática, todo mundo reproduz, todas as instituições reproduzem”, enfatiza.

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“O primeiro passo para combater isso é assumir e reconhecer que existe”, prossegue. “Essa pauta não é só no Brasil, as polícias no mundo inteiro começaram a olhar para isso de uma forma mais aberta e a gente vê que existe uma grande resistência ainda em se falar disso. Quando não se reconhece, não se produz políticas para combater isso.”

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