Primeiro longa-metragem acreano contemporâneo que recebeu seis premiações no Festival de Gramado chega à quarta semana em cartaz com Chico Diaz e o rapper Gabriel Knoxx no elenco
Periferia de uma grande cidade. Dois homens conversam numa casa próxima a um rio. O sujeito mais velho tem uma espécie de relação paternal com o outro. O mais velho fala para o jovem: “Não existe um único mundo. Existem vários mundos diferentes”. Esse pensamento parece ser a matéria-prima que fundamentou a ideia do diretor e romancista Sérgio de Carvalho para fazer o longa-metragem Noites Alienígenas. A produção acreana que estreou nacionalmente no dia 30 de março foi a grande vencedora do Festival de Gramado do ano passado. “Foi uma surpresa completa”, confessa o diretor em entrevista por telefone de Rio Branco, Acre. “Já tinha sido uma surpresa entrar em Gramado. Saímos com seis prêmios e tivemos uma recepção incrível. Estamos entrando em cartaz pela terceira semana consecutiva”, completa. Noites Alienígenas é uma espécie de ponto fora da curva do cinema realizado na região Norte do Brasil. “Estamos tendo uma distribuição incrível. Acredito nessa política de descentralização para outros lugares do Brasil fazerem cinema. Estou muito esperançoso.”
Sérgio de Carvalho nasceu no interior de São Paulo e formou-se em cinema no Rio de Janeiro. Veio pela primeira vez para o Acre há vinte anos para trabalhar numa produção com a atriz e diretora Lucélia Santos. Ele afirma que chegou no estado num momento muito singular em Rio Branco. Era um cenário favorável para a área cultural: a inauguração de muitos espaços culturais, a instituição de editais locais e muitas realizações em volta da floresta. Algumas ONGs estavam precisando de alguém para filmar as comunidades indígenas e ativistas extrativistas. Foi o início da relação do jovem cineasta com o Acre. Ele nunca mais conseguiu ir embora do estado. “Acabei seduzido”, admite. “Aqui é meu território, meu território de contar histórias. Não penso em alguma identidade minha fora daqui”, confidencia o realizador.
O estado do Acre tem apenas 22 municípios e é banhado por mais de trinta rios. Rio Branco, a capital, tem 419 mil habitantes segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sendo banhada pelo rio Acre e pelo igarapé São Francisco. “Não é um estado fácil de se conhecer”, relata Sérgio de Carvalho. “Existem municípios que ficam a quatro, cinco dias de barco de Rio Branco como Jordão e Santa Rosa (dos Purus)”. Nesses vinte anos no estado, o escritor e realizador viajou bastante a trabalho. Conheceu o Acre e os acreanos. Criou e produziu seu próprio festival de cinema com foco nos temas latino-americanos em Rio Branco e também fundou sua própria produtora: a Saci Filmes, em 2013. Sua proximidade com o mundo ancestral indígena, amazônico e latino está nesse seu primeiro longa-metragem de ficção. Mas antes de concluir Noites Alienígenas, o diretor dirigiu alguns curtas-metragens, séries, um documentário e concluiu o romance homônimo do longa em 2011. “Escrevi para um concurso local e quando comecei a escrever não consegui parar. Foi uma espécie de cartase”, admite. “Escrevi em apenas duas semanas sem nenhuma preocupação de virar filme.”
Mas a obra literária puxava algo para o audiovisual. Amigos e o próprio prefaciador da obra falaram diretamente sobre isso com Sérgio de Carvalho. O cineasta que também tinha virado romancista decidiu adaptar para o cinema sua própria obra. Mas para o livro tornar-se filme era necessário um auxílio de alguém no roteiro. O autor lembrou de um amigo que morava em outro estado. “Eu conhecia o Camilo Cavalcante de uma oficina de roteiro que ele tinha dado aqui em Rio Branco”, explica. “Desde o início nós tivemos uma afinidade muito grande e ele foi a primeira pessoa que eu conversei para me ajudar nos novos tratamentos.”
Mais experiente em longa-metragem, o cineasta pernambucano Camilo Cavalcante tornou-se um parceiro importante para o realizador radicado no Acre. O roteiro cinematográfico de Noites Alienígenas foi ganhando corpo. Mas o próprio criador foi percebendo que a Rio Branco que ele conheceu vinte anos antes tinha mudado profundamente. O filme deveria mostrar isso. “Precisava de uma atualização”, admite. Uma das temáticas principais do livro era a violência urbana. Esse assunto torna-se predominante na versão cinematográfica. O diretor afirma que a relação dos jovens com as drogas foi a principal motivação para realizar a obra. “Eu queria muito falar desse verdadeiro genocídio juvenil que existe por conta do tráfico. Isso era fundamental”, analisa. “Eu queria humanizar esses jovens que ocupam somente as páginas policiais. Esses garotos têm uma mãe, uma namorada, têm um sonho. Era esse tema que eu queria trazer no meu filme”.
Sérgio de Carvalho conta que dois motivos acabaram mudando a violência urbana na região Norte que ele conheceu quando chegou. O primeiro motivo é a chegada das facções que vieram estabelecer-se no Acre pelas fronteiras com a Bolívia e o Peru. O estado da região Norte mudou a rota do tráfico, passando à frente da região de Foz do Iguaçu, no Paraná. “Existiu um aumento do consumo. E também um aumento dessa mão-de-obra juvenil local para as facções”. A segunda é a transferência de presos de alta periculosidade de outras regiões do Brasil para o estado. O diretor também cita que a região mudou muito com o avanço do bolsonarismo. “Criou-se uma facilidade no acesso às armas de fogo e existiu um enfraquecimento de políticas assistencialistas na questão ambiental.”
O tráfico de drogas é um dos assuntos principais de Noites Alienígenas. Mas não é o único. A produção trata de diversos temas atuais como machismo, a questão LGBT e a ancestralidade indígena. Uma das preocupações do diretor foi passar por todos esses temas sensíveis sem parecer didático. “Foi tudo muito natural porque todas essas questões estão na minha vida. Mas acabou tendo uma adaptação para o momento político que o Brasil vivia que atravessou o filme”, ressalta. “Está provado que essa política atual de combate às drogas está completamente falida.”
O orçamento foi uma dificuldade na empreitada acreana. Os custos amazônicos dispararam os preços. “Nem todos os técnicos são daqui. Os equipamentos também vieram de fora. Para fazer o cinema aqui precisa ter uma logística toda própria.” Carvalho explica que ele teve que pensar um tipo de produção que coubesse no orçamento. “Lógico que existia uma inexperiência minha por ser meu primeiro longa-metragem e o primeiro do produtor executivo. Mas eu acho que essa nossa inexperiência acendeu a pulsão da nossa criatividade.”
Noites Alienígenas também foi o primeiro longa-metragem do protagonista Gabriel Knoxx, que faz o personagem Rivelino. A escolha deu-se por um longo processo de chamamento da juventude ligada ao teatro local. Knoxx é um rapper local e chamou atenção no teste. “Foi impressionante. Ele era altamente disciplinado, instintivo. Fizemos preparação de elenco, mas ele viveu o personagem de uma maneira muito jovem.” Já para o papel do dependente químico com descendência indígena a preocupação foi redobrada. “Meu maior medo era ficar algo caricato, raso. Era um personagem com uma carga dramática grande”. Acabou chegando no amazonense Adanilo Reis, que já participou de longas-metragens como Marighella de Wagner Moura e O Rio do Desejo de Sérgio Machado.
“Ele chegou a encarar uma restrição alimentar para viver o Paulo. Perdeu peso para ser esse dependente químico. Foi de uma competência e um profissionalismo extraordinário”. A namorada de Rivelino é Sandra, feita pela atriz Gleici Damasceno que ficou famosa nacionalmente por sua participação no reality show Big Brother Brasil, da TV Globo. “A gente sempre foi amigo. Quando estava começando o roteiro já pensava nela. Ela era a Sandra.”
O protagonista Rivelino sofre diversos dilemas em sua trajetória. Ele é um jovem que não estuda e não tem um trabalho formal. Na realidade, ele é um rapaz desorientado que carece de uma figura paterna e acaba entrando para o tráfico de drogas. Ele trabalha para Alê (Chico Diaz, extraordinário) que é uma espécie de traficante old school contra os novatos do crime organizado. “Nossa ideia desde o início era colocar o Alê como um personagem de outro tempo”, admite o diretor.
Alê passeia pelas ruas de Rio Branco dirigindo seu Ford Maverick envenenado e cantando músicas de Raul Seixas. É impossível não sentir uma simpatia pelo excêntrico personagem que é feito com imponência por Chico Diaz. “Nos conhecemos no festival que organizo aqui em Rio Branco, o Pachamama, em 2015 e ele era homenageado. Logo foi uma espécie de amor à primeira vista”, destaca Sérgio de Oliveira. “Ele foi de uma generosidade fantástica com os atores mais novos e entendeu o arquétipo paterno que o Alê constrói com o personagem principal”.
Uma surpresa no elenco do filme é a mãe de Rivelino, interpretada pela atriz pernambucana Joana Gatis. “Estávamos na busca por essa mulher. Precisava ser alguém que é mãe, mas que gosta de viver. Ela tem a sua feminilidade sendo mãe solo e a Joana trouxe tudo isso de maneira brilhante”. Joana Gatis já tinha trabalhado em diversos longas-metragens, mas em outras funções, como figurinista e maquiadora. “A gente ficou muito feliz com o resultado do trabalho dela”.
O elenco é um dos ingredientes fundamentais para o bom desempenho de Noites Alienígenas. “Estou muito satisfeito com o trabalho de todos os atores. Acho que acertamos a mão na direção”. Não à toa que quatro dos seis prêmios do filme em Gramado foram para os atores: melhor ator para Gabriel Knoxx, atriz coadjuvante para Joana Gatis, ator coadjuvante para Chico Diaz e menção honrosa para Adanilo pela excelência na construção da linha do personagem e da interpretação. Esta última foi destacada pelo realizador. “Essa foi uma das premiações mais merecidas. Ele faz um papel humano, frágil, mas não é vítima. Ele faz o personagem de uma maneira muito bonita.”
Noites Alienígenas é o primeiro longa-metragem nacional do Acre a ir para uma sala de cinema. Sérgio de Carvalho explica que já existiram algumas gerações de diretores locais. A primeira foi amadora de pessoas que faziam cinema em Super-8 da lendária produtora Ecaja (Estúdio Cinematográfico Amador de Jovens Acreanos). Esses pioneiros rodaram alguns longas-metragens amadores na época da Ditadura Militar (1964-1985). Depois existiu uma geração de realizadores indígenas.
Sérgio de Carvalho destaca a presença do diretor paulista e documentarista Maurice Capovilla (1936-2021), que implantou o curso de cinema da Usina de Arte João Donato, em Rio Branco. Uma formação pioneira que deixou muitos frutos na capital acreana. “Ele formou uma geração de pessoas para o audiovisual e muitos destes trabalharam comigo, inclusive no Noites”. Sérgio de Carvalho explica que recebeu diversas mensagens de jovens do Acre e de outros estados da região Amazônica que se sentiram representados pelo longa-metragem. “Eu defendo essa descentralização da produção cinematográfica. Talvez isso signifique que o Noites Alienígenas está representando um marco do cinema da região Norte.”
A maioria das críticas para a película foi bastante positiva. Um jornalista do Sudeste chegou a dizer que Noites Alienígenas acaba se tornando um melodrama. Sérgio de Carvalho gostou dessa abordagem sobre a sua obra. “Eu acho ótimo”, analisa. “Os brasileiros, os latino-americanos em geral são o povo do melodrama. Tem uma cena muito impactante que é uma dança de desespero, de dor e tudo mais.”
Além dos prêmios para o elenco, Noites Alienígenas venceu os prêmios de melhor filme de ficção e de crítica em Gramado.
Sérgio de Carvalho está iniciando um novo projeto sobre o sindicalista e ativista político Chico Mendes (1944-1988). Ele está trabalhando no roteiro que deverá ser uma codireção com o baiano Sérgio Machado. “Mas ainda está numa fase embrionária”, explica. “O mais importante do nosso trabalho é que ele não pode ser resumido como o filme de uma única pessoa. É importante destacar que é um trabalho coletivo de toda uma equipe: elenco, técnicos, direção de arte. Faço um cinema de muitas mãos.”
Noites Alienigenas
Direção: Sérgio de Carvalho
Brasil, 2022
Duração: 91 minutos
Em cartaz nos cinemas
A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).