Absolvido pela segunda vez após reconhecimento irregular, Vinícius agora quer indenização do Estado

Depois de ser inocentado de um roubo após reportagem da Ponte, analista aguardava decisão da Justiça sobre acusação de furto; família busca reparação: “meu filho sofreu muito e a polícia está bem”, diz

Vinicius trabalha como analista de pricing numa empresa | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“Vou começar a vida só agora”, é o que pensa o analista de pricing Vinicius Villas Boas, 37 anos, após ser absolvido novamente do último processo que respondia, finalizado no dia 26 de julho. Em março, após reportagem da Ponte, ele já havia sido inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por um roubo ocorrido em 2016 no interior paulista e que o levou a ser preso e condenado depois de um reconhecimento irregular. Agora, o tribunal reconheceu que ele não foi autor de um furto relacionado àquele processo e cuja acusação também aconteceu por reconhecimento irregular.

A juíza Carolina Castro Andrade, da 1ª Vara do Foro de José Bonifácio, declarou a extinção de punibilidade de Vinicius e de outro acusado porque o crime de furto qualificado, cuja pena varia de dois a a oito anos de prisão, prescreveu.

Ela também considerou que o analista tinha sido absolvido pelo crime de roubo na revisão criminal e determinou o trânsito em julgado do processo de furto, ou seja, sem mais possibilidade de recurso, e arquivamento do caso.

Agora que Vinicius está livre, ele e seu advogado afirmam que vão entrar com um pedido de indenização contra o Estado. “Foi um prejuízo enorme financeiro, familiar, psicológico… Foram muito prejuízos, fora o trauma”, conta o defensor Nugri Bernardo de Campos.

“Meu sonho é me restabelecer de novo, colocar uma pedra, enterrar isso daí e levar uma vida como se eu não tivesse passado por isso”, afirma Vinicius. “Nenhum dinheiro paga o que eu passei porque meu filho sofreu muito e a polícia está bem, mas é o justo. Agora vai ser uma outra guerra para poder reparar todos esses anos.”

Relembre o caso

Em reportagem de 2019, a Ponte mostrou que Vinicius foi acusado de dois crimes muito semelhantes e em locais bem próximos que aconteceram nos dias 17 e 24 de fevereiro de 2016 em José Bonifácio, interior paulista. O primeiro foi o roubo à residência, em que um homem foi amordaçado e trancado no banheiro por quatro criminosos, que levaram dinheiro e pertences. Foi por esse crime que Vinicius foi condenado a nove anos de prisão e, em recurso, teve a pena reduzida para sete.

Depois de tentar reverter a condenação em todas as instâncias, o advogado Nugri Campos entrou com a revisão criminal, que era a última oportunidade do caso ser reavaliado pelo Poder Judiciário, e que resultou na absolvição em março deste ano.

Esse tipo de recurso para ser impetrado depende de uma prova nova, que no caso foi o testemunho de um preso que o analista conheceu no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São José do Rio Preto, no interior paulista, que disse conhecer o real assaltante que teria sido confundido com Vinicius. Esse preso redigiu uma carta de próprio punho e foi ouvido por meio de um pedido de justificação criminal, mecanismo de coleta de prova para fundamentar a revisão criminal.

Contudo, os desembargadores do 7º Grupo de Direito Criminal do TJSP, que avaliaram a revisão, entenderam que outros elementos evidenciavam mais a fragilidade da condenação: as imagens de câmera de segurança que, segundo os policiais civis, identificaram Vinicius; o processo de reconhecimento, já que o analista foi reconhecido por foto e depois sozinho de forma presencial; e que Vinícius tinha álibi pois era pintor na época e um colega confirmou que trabalhava com ele em uma obra quando o crime aconteceu. No acórdão (decisão de um grupo de magistrados), o desembargador Marcelo Semer, relator do caso, citou reportagem da Ponte como fundamento do seu voto para inocentá-lo.

Trecho da decisão que cita a reportagem da Ponte sobre o caso | Foto: Reprodução

Já o segundo processo foi um furto a residência, a pouco mais de 1 km de distância de onde aconteceu o roubo, mas os proprietários não estavam no local e encontraram a casa revirada ao voltarem do trabalho. A vítima decidiu ir atrás de câmeras de segurança das ruas vizinhas para tentar identificar os autores do furto.

Nelas, foi possível visualizar um veículo Gol cinza com as mesmas características do automóvel visto perto da cena do crime anterior. As imagens registraram o momento em que dois indivíduos entraram correndo no carro. Além disso, nas gravações é possível identificar uma picape Saveiro branca e um rapaz de calça branca e camisa azul que passa duas vezes. As filmagens desse caso é que passaram a fundamentar o trabalho de investigação da Polícia Civil sobre o primeiro roubo. Os processos, porém, corriam separadamente e Vinicius só foi julgado pela acusação de furto neste ano.

Além disso, os laudos periciais das gravações não dizem se é possível identificar o rapaz de calça branca e camisa azul que a Polícia Civil afirmou se tratar de Vinicius. Além disso, a data das imagens indicavam dia anterior ao do furto, 23 de fevereiro de 2016, e não foram anexados os vídeos originais. O relator Marcelo Semer descreveu em seu voto que, mesmo solicitando os arquivos originais, os registros apresentavam “péssima qualidade” e que só foi possível visualizar as gravações com clareza por meio da reportagem da Ponte. “Ou seja, tal mídia apenas surgiu pois familiares do réu tiveram êxito em chamar a atenção da mídia ao caso, tendo esta conseguido acesso às imagens originais”, escreveu.

O desembargador também apontou “insegurança” nos depoimentos dos policiais civis que se referiam às imagens e a informações de policiais militares não identificados e nunca ouvidos no inquérito de que Vinicius teria relação com os outros três suspeitos porque seria “conhecido na nos meios policiais”, apesar de não ter nenhum registro criminal anterior.

Um dos acusados, que foi apontado por conta da placa do carro que aparece em uma das filmagens e acabou absolvido, era conhecido na cidade de Mendonça, vizinha à José Bonifácio, como dono de um buffet de festas frequentado por moradores. “[…A] Acusação não apresentou qualquer prova de que o peticionário [Vinicius] tivesse relação com os demais réus para além de frequentar eventualmente o comércio, como informado pelo próprio peticionário”, argumentou Semer.

O relator também entendeu, com base nos depoimentos da vítima do roubo e dos policiais civis, que o reconhecimento, conforme o artigo 226 do Código de Processo Penal, foi “propositalmente descumprido na esfera policial” porque a vítima foi apresentada a fotografias de pessoas de maneira informal e que apenas se reconhecesse alguém os policiais disseram que formalizariam o procedimento. A vítima mudou as descrições dos suspeitos no decorrer das investigações, de “pardo” para “escuro (pardo)”. Na fase de juízo, em frente a um juiz e a um promotor, disse que dois dos três homens que o assaltaram eram “mais morenos, porém não de pele negra”. Dos quatro acusados, apenas os negros foram condenados: Vinicius e outro rapaz.

O desembargador destacou que o procedimento também não foi seguido durante o processo judicial, já que ele foi apresentado sozinho e com roupa de presidiário para ser reconhecido, e relembrou jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre reconhecimento irregular e que o reconhecimento não pode ser a única prova para condenar alguém. “A forma como foi feito o reconhecimento, portanto, foi infirmada por vieses insanáveis”, criticou.

O que diz a polícia

Questionado sobre os erros acumulados pela polícia de José Bonifácio durante a investigação contra Vinícius, a Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, não respondeu os questionamentos feitos pela reportagem e encaminhou a seguinte nota:

A Polícia Civil informa que a ocorrência foi investigada pela Delegacia de José Bonifácio. O homem foi reconhecido e indiciado. O caso foi relatado e encaminhado à Justiça, não retornando mais à unidade policial.

O que diz o Tribunal de Justiça

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que não comenta decisões de processos, e se limitou a informar que as acusações contra Vinicius foram retiradas:

“Este processo foi julgado em 25/7/23 e foi declarada extinta a punibilidade dos acusados: em relação ao pedido de posicionamento, o Tribunal de Justiça não se manifesta sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.

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