Após viúva apresentar novas provas, Justiça torna réu PM que matou homem negro em 2021

Ministério Público havia arquivado o caso, mas um ano depois promotor passou a acusar tenente por homicídio e por fraude processual; vítima foi morta em comunidade na zona sul de SP

Jackson Luiz de Araujo Caetano deixou filho de três anos e esposa em 2021 | Foto: Reprodução/Facebook

O Tribunal de Justiça de São Paulo tornou réu o tenente Samuel Silveira de Toledo pela morte de Jackson Luiz de Araujo Caetano, 32, que foi baleado por ele em 18 de maio de 2021, dentro de uma casa abandonada, de obra incompleta, na favela do Mauro, na região da Saúde, na zona sul da capital paulista.

O juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri, aceitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público estadual (MPSP) em 4 de agosto por considerar “existência de provas de materialidade e indícios da autoria do delito” contra o policial militar.

O promotor Felipe Eduardo Levit Zilberman acusou Toledo por homicídio qualificado, o que aumenta a pena mínima para 12 anos, por entender que “o crime foi cometido mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, que foi colhido no interior do imóvel, desarmado e já rendido, sem que pudesse esboçar qualquer defesa”.

O PM também foi acusado por fraude processual, já que o MPSP acredita que o tenente plantou um revólver “ao lado do corpo da vítima, tudo a fim de corroborar a narrativa por ele apresentada na Delegacia de Polícia no sentido de que teria havido um confronto no local e que o disparo havia sido efetuado em legítima defesa”.

Na denúncia que a reportagem teve acesso, Zilberman não explica o que motivou a mudança de postura, uma vez que ele tinha pedido o arquivamento da investigação em 2021 e argumentou na época que não existiam elementos que afastassem a alegação de legítima defesa dos policiais. A Ponte pediu entrevista com o promotor, mas a assessoria do órgão negou manifestação sobre caso porque o processo tramita em segredo de justiça.

no ano passado, após a comerciante e esposa de Jackson, Jupyara Conte Hadlich Caetano, 42, contratar peritos particulares, conseguir uma terceira testemunha que teria ouvido a discussão dos PMs após o disparo e obter imagens da câmera de segurança de um prédio residencial próximo à entrada da favela, o promotor pediu a reabertura do caso e o aprofundamento da apuração, que aconteceu em 2022.

Na época da reconstituição do crime, há um ano, os policiais investigados chegaram a fotografar a reportagem da Ponte enquanto acompanhava o trabalho dos peritos da Polícia Civil. A primeira entrevista dada por Jupyara à Ponte, em maio de 2021, foi anexada no inquérito policial militar como forma de apontar que a família estaria usando a imprensa “como meio ardiloso, para descreditar a investigação conduzida por esta OPM [batalhão que está conduzindo a apuração militar], bem como se promover por meios escusos”. A apuração interna da PM concluiu que os policiais agiram em legítima defesa.

De acordo com o tenente Samuel Silveira de Toledo e os soldados Douglas Soares e Bruno Gonçalves de Souza, do 3º Batalhão Metropolitano da PM (BPM/M), no dia 18 de maio de 2021 estavam em patrulhamento e, por volta das 22h, viram dois indivíduos que “carregavam um volume nas mãos, aparentando serem (sic) armas de fogo”, na Rua Mauro, na altura que dá acesso à comunidade, e que a dupla saiu correndo quando viu a viatura. Samuel e Douglas foram atrás e entraram na favela e Bruno, como era o motorista, permaneceu no veículo.

A dupla de policiais afirmou que teve um momento em que perdeu os dois de vista e, depois, escutaram um barulho parecido com tiro e prosseguiram até se aproximar de um imóvel abandonado e entrou no local, subindo as escadas.

Samuel diz no seu depoimento que teria visto Jackson, ordenado que ele levantasse as mãos, mas ele não obedeceu. Depois, disse que o viu empunhando “uma pistola cromada” e mandou que ele largasse a arma, não tendo obedecido novamente. Segundo ele, “a vista de uma iminente agressão a tiros que poderia sofrer e visando preservar sua integridade física”, deu um único disparo que acertou Jackson.

Já Douglas, que estava atrás de Samuel enquanto os dois entravam na construção, não mencionou em depoimento as ordens que teriam sido dadas pelo tenente e diz que assim que tiveram acesso ao pavimento de cima da casa, o colega “logo avistou um indivíduo com arma em punho e lhe apontando, motivo pelo qual, a vista de uma iminente agressão a tiros e visando preservar sua integridade física, o Tenente Samuel efetuou um único disparo que atingiu aquele indivíduo que logo caiu ao solo”.

Esses depoimentos foram formalmente colhidos na Polícia Civil cinco meses após o homicídio, já que desde 2019 a Lei do Pacote Anticrime estipulou que policiais envolvidos em crimes devem ser ouvidos apenas na presença de um advogado após serem intimados. Além disso, na época, o 3º BPM/M ainda não tinha sido beneficiado pelo projeto de câmeras da corporação.

No boletim de ocorrência, contudo, em versão dada por um quarto PM que não participou da ocorrência e relatou o que ouviu dos três, os dois suspeitos “ao perceberem a presença da viatura, ambos sacaram armas de fogo e efetuaram disparos contra a guarnição e correram para o interior da comunidade”, o que diverge do depoimento formal dos policiais envolvidos ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil.

Jupyara contou à reportagem, um mês após a morte de Jackson, que havia saído com o marido para uma loja e que ele pediu para deixá-lo na favela, já que cresceu na comunidade, costumava frequentá-la e tinha amigos por lá. Quando retornou para buscá-lo, por volta das 18h20, Jackson teria lhe dito que ia ficar mais um pouco pois iria visitar uma afilhada.

Um morador da favela, que pediu para preservar sua identidade, disse à Ponte, na época, que aconteceu uma incursão envolvendo três policiais militares no local no final daquela tarde, em que todos os moradores entraram para a casa e traficantes fugiram. “Foi uma coisa rápida, pouco tempo depois foram embora, mas dois policiais ficaram pela comunidade”, afirmou. “Jackson foi na casa da afilhada dele, que ele ajuda a moça [mãe] às vezes com um leite”, prosseguiu.

A esposa de Jackson disse que soube dessa moça, que ela também conhece mas que não quer ser identificada, e que o marido passou por lá e depois que saiu, por volta de 20h, não soube mais o que aconteceu. Foi quando os amigos do jovem começaram a procurá-lo. “Deu uns 30 minutos, ouviram um tiro”, disse o morador. “Uma das pessoas que mora perto do local gritou para os moradores se protegerem e o que a gente sabe é que depois os policiais pediram reforço”, declarou.

Jupyara só conseguiu confirmar que a pessoa baleada era seu companheiro no dia seguinte após ter ido ao local e à delegacia, não ter informações, e só conseguir enterrá-lo após localizar a unidade correta do Instituto Médico Legal (IML).

De acordo com o boletim de ocorrência, a única cápsula deflagrada apreendida corresponde à arma de calibre .40, de uso exclusivo da PM. No local, foi apreendida uma pistola calibre 380 com numeração raspada com 12 balas intactas.

Entre as novas provas estão as imagens de uma câmera de segurança de um prédio residencial na Rua Mauro, próximo à única entrada que dá acesso à favela. O registro foi obtido pelo programa Fala Brasil, da Record TV, e não mostra pessoas correndo para dentro da comunidade. Apenas uma viatura que entra, depois sai para um carro passar. Em seguida, a viatura retorna, cruza com outra, entra. Tudo isso entre 20h e 20h30 do dia 18 de maio de 2021. Às 21h59 aparece uma viatura e às 22h02 chegam outras ao local. Essas imagens não haviam sido coletadas pela Polícia Civil.

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Além disso, Jupyara levou à Corregedoria da PM na época duas testemunhas que residem próximo ao imóvel para informarem o que haviam escutado. Uma delas confirmou que Jackson esteve em sua casa às 21h30 e que ouviu um tiro 20 minutos depois que ele deixou sua residência. A outra relatou que ouviu os policiais discutindo o seguinte diálogo: “Samuel por quê você fez isso? Foi um tiro abaixo do olho” e “O discurso vai ter que ser esse, apresentar a 380 e tem que falar que foi troca [de tiro]”.

Quase uma semana depois, em 1º de junho de 2021, moradores denunciaram que policiais do 3º BPM, mesma unidade de Samuel e Douglas, foram à comunidade de forma intimidatória. “Foram nas casas das testemunhas com fuzil na mão, levaram uma foto da Jupyara, gravaram todo mundo, questionando sobre o depoimento”, disse à Ponte um morador na ocasião.

O que diz a polícia

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre a investigação do caso, pediu entrevista com os policiais envolvidos e questionou se eles continuavam trabalhando nas ruas, se haviam passado por avaliação na Comissão de Mitigação e Risco da PM e se tinham defesa constituída. Até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu.

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