Homem está internado há 10 dias em hospital após ter sido atingido em escritório recém-alugado para trabalhar no Morro do José Menino, segundo esposa; promotor tem dúvidas sobre narrativa da polícia
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) atendeu a um pedido do Ministério Público (MPSP) e determinou, nesta quarta-feira (8/9), que um mototaxista possa responder em liberdade a investigação da Polícia Civil em que policiais militares do 5º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) alegam que ele estaria armado e tentou fugir de uma abordagem no último dia 30 de agosto, na comunidade Morro do José Menino, em Santos, no litoral paulista, no âmbito da Operação Escudo.
Na ocasião, o homem de 43 anos foi baleado dentro uma casa que ele recém-alugou para servir de apoio à cooperativa de mototáxi que havia criado para atender a população do local, de acordo com moradores ouvidos pela reportagem. Revoltados, motoboys, amigos e moradores desceram o morro para protestar e contestar a narrativa da PM no mesmo dia.
A vítima, que vamos chamar de Sonny (nome fictício), permanece internada no Hospital da Santa Casa Misericórdia de Santos. Segundo a esposa, Sonny teve o pulmão perfurado e o baço foi retirado por conta dos disparos. Ele ainda teria quebrado as costelas e está respirando com a ajuda de um ventilador mecânico. A mulher teve de pedir autorização para visitá-lo, já que o quarto do mototaxista estava sob escolta da PM, que deixou o local nesta quinta-feira (7) após a decisão do tribunal.
A juíza Elizabeth Lopes de Freitas, da 4ª Vara Criminal de Santos, determinou que Sonny, assim que sair do hospital, deve comparecer periodicamente ao fórum e não pode se ausentar da cidade sem autorização. Ela seguiu o entendimento do promotor Daniel Azadinho Palmezan Calderaro de que ele tem residência fixa, trabalho lícito e falta ainda o aprofundamento das investigações.
Calderaro ainda tem dúvidas sobre a versão apresentada pelos PMs Thiago Freitas da Silva, Daniel Pereira Noda e Carlos Vinicius Batista Bruno, do 5º Baep, que atuam em Barueri (Grande SP). Eles foram deslocados para a Baixada Santista por conta da Operação Escudo, que foi deflagrada em 28 de julho após o assassinato de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) no Guarujá e encerrada na terça-feira (5) em meio a denúncias de execução, tortura, manipulação de cena de crime, intimidações, invasões de casas, feridos e 28 mortos.
O promotor pediu laudos complementares ao 2º DP de Santos, como perícia do local, da arma apreendida que foi atribuída a Sonny e exame residuográfico (que verifica vestígios de pólvora) nas mãos dos policiais e do homem. Sonny havia sido indiciado por resistência e porte ilegal de arma pelo delegado Marcelo Gonçalves da Silva e ainda não foi ouvido por estar internado.
“É dos autos que o averiguado, no momento da diligência policial, não chegou a efetuar disparos contra os policiais com a suposta arma de fogo que carregava consigo, e que atualmente, diante da gravidade do seu quadro clínico, se encontra internado na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos”, escreveu o membro do MPSP. “Não vislumbro, por ora, a existência de elementos de convicção suficientes a se deflagrar o oferecimento de denúncia em face de [Sonny], notadamente face a imprescindibilidade da produção de novas provas”.
De acordo com moradores e a esposa do motoboy, Sonny e um outro motociclista que trabalhava com ele foram abordados pela PM dois dias antes da abordagem do dia 30 de agosto.
Em um áudio obtido pela Ponte, Sonny fala em um grupo de mensagens o que aconteceu. “Os caras da Baep vieram aqui no barraco agora, aqui no QG, deram uma geral em mim e no [nome de outro motoboy]. Entraram aqui dentro, perguntou se tinha alguma coisa, expliquei que aqui a gente é mototáxi e tal, porém a gente mora longe, aluga o barraco para quando tiver chovendo a gente ficar aqui e, quando tem corrida, a gente faz as corridas, entendeu? Graças a Deus a gente não tomamo tapa, esculacho nem nada”, disse.
“Eles tiraram foto do RG do meu marido e do outro motoboy”, denuncia a esposa, que não sabe se esses policiais são os mesmos que o abordaram no dia 30 de agosto.
Ela acredita que a abordagem pode ter relação com o fato de Sonny ter antecedentes antigos. “Ele estava em regime aberto, não tinha nada atrasado, ele estava assinando tudo certo”, conta.
Ela afirma que no dia em que o marido foi baleado, ela ligou para a Corregedoria da PM para saber se haveria algum representante do órgão no local para apurar a atuação dos policiais. “Só me disseram que era para eu procurar o delegado. Eu tenho até dúvida se foi meu marido que quebrou a janela, como eles [PMs] falam. Tenho dúvida até se meu marido se jogou daquela janela, se eles jogaram. Sabe? Não dá pra saber a verdade”, diz, angustiada. A mulher também não sabe quantos tiros o marido sofreu ao certo e tenta requisitar mais informações ao hospital.
O boletim de ocorrência é narrado pelo PM William Rodrigues Soares, que não participou da ocorrência, e foi acionado para prestar apoio à equipe do sargento Freitas e dos soldados Noda e Bruno. Nos depoimentos, os três policiais afirmam que tinham sido designados para fazer patrulhamento no Morro do José Menino para “combater o crime organizado”. Quando estavam na Rua Pedro Borges, teriam visto “diversos indivíduos” que se dispersaram nas vielas ao verem a viatura e que não foi possível alcançá-los porque tinha uma van trafegando na frente em baixa velocidade.
O trio saiu da viatura e entraram na primeira viela, onde tinha uma casa. Os soldados afirmam que tentaram abrir a janela, momento em que Noda teria visto um homem e dito “polícia! larga a arma” e deu dois tiros de espingarda calibre 12 porque a pessoa estaria se deslocando em sua direção. Bruno disse que deu cinco tiros com a pistola .40 e que o indivíduo correu em direção ao banheiro, “saindo do seu campo visual”, e ouviram “barulhos de vidro quebrando”.
O sargento Thiago Freitas estava na porta da residência, abriu e disse que viu o homem “com algo na mão” pulando da janela do banheiro, momento em que fez um tiro de fuzil e que o viu se atirando de uma altura de três a quatro metros caindo “num terreno, onde foi encontrado com ferimentos no peito e costas”. O PM afirma que encontrou dentro do imóvel uma “pistola, calibre 7,65mm, niquelada, carregada e alimentada com quinze cartuchos”. O Samu foi chamado e Sonny foi levado ao hospital.
O 5º Baep é contemplado pelo programa de câmeras nas fardas, mas não há menção alguma sobre o uso dos equipamentos nem solicitação por parte da Polícia Civil e do Ministério Público sobre imagens.
No início do mês, moradores ouvidos pela reportagem disseram que não acreditam que Sonny teria se jogado da janela, que fica a uma altura considerável do terreno, nem que estaria armado. Também relataram que escutaram gritos de ajuda do motoboy, acreditando que foi torturado.
A família do mototaxista, que mora no Guarujá, afirma que a operação só levou mais temor para a população, já que existem pessoas com antecedentes que tentam reconstruir a vida, mas temem sofrer abordagens violentas ou testemunhar o que presenciaram. “É um absurdo porque aqui no meu bairro eu estava andando, eu estava quase chegando na esquina, de repente viram seis homens armados com fuzil na mão, com a arma apontada para frente. Eu tomei um susto porque minhas pernas amoleceram na hora. Cheio de criança na rua e os caras andando armado desse jeito, com a arma em punho. Qual a necessidade disso? E não tinha acontecido nada no meu bairro. Eu acho que eles não fazem isso lá na burguesia [em referência aos bairros ricos]”, lamenta a esposa.
O que diz a polícia
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre a abordagem que Sonny teria sofrido dois dias antes de ser baleado, mas até a publicação a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu.
O que diz o hospital
A reportagem procurou a assessoria da Santa Casa sobre o estado de saúde de Sonny, que disse, em nota, que “não tem autorização para prestar informações sobre estado de saúde de pacientes”.
Reportagem atualizada às 10h, de 11/9/2023, para incluir resposta da Santa Casa de Santos.