Programa de R$ 900 milhões anunciado por Flávio Dino falha ao pretender enfrentar crime organizado ignorando encarceramento em massa, política de drogas e letalidade policial, segundo especialistas e ativistas ouvidos pela Ponte
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), lançou na segunda-feira (2/10) o Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc), um plano de ação que prevê investir R$ 900 milhões ao longo de três anos com o objetivo principal de desarticular facções ligadas ao tráfico de drogas.
Apesar de reconhecer alguns méritos — como a priorização da região amazônica e a reversão do processo de armamento da população —, ativistas e especialistas ouvidos pela Ponte criticaram as ações “genéricas” e “improvisadas” adotadas pelo programa. Na visão deles, o governo corre o risco de estimular a violência contra a população pobre e negra ao investir nas polícias sem cobrar uma política de redução da letalidade e ainda compromete a eficácia seus objetivos ao pretender enfrentar o crime organizado sem tocar em questões centrais para o problema: o encarceramento em massa e a política de drogas.
O Enfoc foi anunciado em meio à onda de violência que atinge a Bahia, onde 71 pessoas foram mortas em setembro por ações policiais no estado, governada pelo PT há 16 anos. A resposta do governo federal veio por meio do anúncio do Enfoc, que inclui medidas específicas para a Bahia e o Rio de Janeiro. Para os baianos, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) promete o envio de 109 agentes das forças do próprio ministério, além de cinco blindados e um helicóptero para atuar em operações que ocorrem com ajuda de forças federais desde agosto.
Para o Rio de Janeiro, o programa prevê o envio de 300 agentes da Força Nacional e 270 da Polícia Rodoviária Federal, além de mais viaturas e blindados. Outra medida para o Rio é o envio de R$ 95 milhões do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para a construção de presídios de segurança máxima.
Os estados que compõem a Amazônia Legal também foram alvo do plano anunciado por Dino. Foi assinada a portaria 503/2023, que define diretrizes para um programa com ações estratégicas para a segurança pública na região no âmbito do Programa Amazônia: Segurança e Soberania (AMAS). O investimento do governo desde o início do ano para este projeto é de R$ 2 bilhões.
Para a desarticulação de organizações criminosas, principal objetivo do Enfoc, Dino propõe uma integração entre União e estados para investigações mais efetivas, coordenadas por um Centro Nacional de Enfrentamento das Organizações Criminosas.
Dividido em cinco eixos — integração institucional e informacional; aumento da eficiência dos órgãos policiais; portos, aeroportos, fronteiras e divisas; aumento da eficiência do sistema de justiça criminal e cooperação entre entes —, o programa será financiado por vários fundos, entre eles o Fundo Nacional Antidrogas (Funad).
Outro aspecto é a divisão da execução do programa em três ciclos, sendo o último finalizado em 2026. Sem maiores detalhamentos sobre o formato de trabalho, o número de envolvidos e a maneira como o Enfoc será aplicado nos estados, o projeto de Dino foi lançado com a promessa de que as ações serão detalhadas em 60 dias, perto do fim do primeiro ano do governo Lula 3.
‘Rosas’ e ‘licença para matar’
O anúncio do programa ocorreu quatro dias após o número 2 do Ministério da Justiça e Segurança Pública ter justificado as mortes cometidas pela PM na Bahia, denunciadas como “operações vingança” por analistas e criticadas por entidades como a Anistia Internacional, para quem “o ‘combate ao crime organizado’ não é licença para matar”.
Em entrevista à CNN na quinta-feira (28/9), o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, cotado para assumir a cadeira de ministro caso Dino seja indicado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), declarou: “A polícia da Bahia é uma polícia boa. Tem a questão da letalidade? Tem. Mas você não enfrenta crime organizado com fuzil com rosas. Porém, a letalidade deve ser combatida e investigada e combatida”.
A declaração de Cappelli parece ter saído de um integrante do governo Jair Bolsonaro, segundo o antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares, que foi secretário nacional de Segurança Pública no primeiro governo Lula, em 2003. “Esse discurso autoriza a reprodução da barbárie que está em curso. Os policiais na ponta fazem uma leitura política: eles não são indiferentes aos discursos do poder. Esse discurso passa uma mensagem muito clara: ‘continuem agindo como vocês estão agindo, vocês têm o nosso respaldo’. Porque é um discurso que ridiculariza todos os que criticam a brutalidade policial letal, como se a única opção fosse oferecer flores ou executar extrajudicialmente. Isso é de uma desonestidade intelectual extraordinária”, afirma.
“Começa a aparecer o discurso político conveniente de mostrar vigor repressivo, como é esse caso”, avalia José Vicente da Silva, coronel reformado da PM e secretário nacional de Segurança Pública no governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002. Ele diz que a fala de Cappelli não é um caso isolado e que o apoio à violência tem se repetido entre nomes do próprio PT, como o atual governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues: “Os discursos para atender à sanha da população de mais repressão começam a contaminar o próprio governo de esquerda”.
Para Vicente, as metas definidas nos cinco eixos do Enfoc são “extremamente supérfluas, muito genéricas”. Ele cita que o eixo 1, que trata da integração institucional e informacional, não deixa claro de que maneira será posto em prática. “Não se sabe bem o que é integração institucional. Pode ser de polícias federal, estadual, pode ser o Judiciário, o Ministério Público, outras instituições”, diz.
“O que nós estamos percebendo é uma reação num momento em que o governo ficou vulnerável a essa demanda pública, que é a segurança pública em crise, como o caso da Bahia, o Amapá vive uma crise brava, Pernambuco também, o Rio de Janeiro com a crise de sempre. E o governo está procurando sinalizar, dar algum tipo de satisfação para a opinião pública. Algumas medidas são, claramente, jogar para a plateia, um tanto demagógicas, como, por exemplo, mandar a Força Nacional para o Rio”, critica. Ele defende a adoção de políticas estruturadas e permanentes, que condicionem, por exemplo, os repasses federais à mitigação da letalidade das polícias.
Sobre letalidade policial, o Enfoc não diz uma palavra, ignorando até mesmo uma política já anunciada pelo governo federal. O texto do programa não cita, e nem foi mencionado pelo ministro durante a coletiva de imprensa em que anunciou o programa, a portaria nº 439/2023, do próprio MJSP, publicada em agosto deste ano, que regulamenta a distribuição de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública para esse ano e o próximo, atrelando o repasse de verbas à redução do número de mortes pela polícia.
Para receber o dinheiro a partir do ano que vem, a portaria previa que cada estado deveria apresentar um plano de ação que incluísse frentes como redução da letalidade policial, o enfrentamento da violência contra a mulher e a melhoria na qualidade de vida dos profissionais da segurança pública. A maior destinação de recursos (80%) deveria ser destinada à redução de mortes violentas intencionais. O texto, contudo, deixa lacunas sobre prazos e como deve ser feita a fiscalização dos indicadores.
A Ponte perguntou à assessoria de imprensa do MJSP se há planos de o Enfoc condicionar a liberação de verbas para as polícias à redução de mortes, mas não teve resposta.
Enfrentar o crime é mais que fortalecer polícias
Para Luiz Eduardo Soares, a política de segurança do governo Lula (PT) segue ancorada na repressão e o programa falha ao não investir no controle externo da atividade policial. “Nós estamos diante de um verdadeiro genocídio, como dizemos com frequência, e a brutalidade policial letal tem de ser controlada. Hoje a questão chave é o controle das polícias, transparência e controle efetivo”, aponta.
Na coletiva de imprensa, Flávio Dino defendeu que o plano põe em prática o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criado em 2018. Inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS), o Susp prevê a integração entre as forças federais, dos estados e municípios em dados e operações. “Diferente do que aconteceu nas políticas públicas de saúde e educação, essa integração federativa não aconteceu na segurança, infelizmente. Foram precisos 30 anos para que fosse votada a lei do Susp. Ela já existe, mas não era efetivada”, disse o ministro.
Soares defende que, diferentemente do que argumenta Dino, o projeto aprovado em 2018 não foi implantado na plenitude porque não trouxe mudanças no artigo 144 da Constituição Federal, que disciplina as políticas de segurança pública, e apenas isso permitiria o real compartilhamento das responsabilidades entre a União e os estados. “No momento em que a lei da Susp foi promulgada, e houve muita comemoração por parte de muitos que defendiam a ideia, eu alertei imediatamente que se tratava de um grande engano. E eu não sabia se aquilo era fruto de más intenções por parte dos congressistas, ou de ignorância, mesmo, em relação a como as coisas funcionam em relação à prática”, diz.
Na visão de Soares, para o SUSP funcionar é necessário, para além da integração, uma definição sobre qual autoridade deve conduzir os processos. “Na lei do SUSP há indicações sobre necessidade de articulação entre as esferas, mas não há, em nenhum momento, nenhuma indicação sobre processos decisórios e sobre a autoridade que, afinal, conduza essa articulação”, explica.
Apesar de enxergar como positivos os esforços voltados para a Amazônia e de reversão das políticas bolsonaristas que facilitaram o acesso da população a armas, Soares avalia que o programa do MJSP deixou de fora o controle do crime organizado dentro dos presídios, o encarceramento em massa e a guerra às drogas.
“Diante da brutalidade policial letal, que é recordista mundial, diante da nossa incapacidade de enfrentar o crime organizado dentro dos presídios, o que supõe cumprir a LEP (Lei de Execuções Penais), não é dar dinheiro para o Estado para construir presídios, não é dar aula de gestão, é enfrentar o grande tema do controle dos presídios, é impossível controlar esses presídios de uma forma legal, democrática, etc., sem colocar em tela de juízo, sem colocar em questão o encarceramento em massa”, defende o antropólogo.
“E não se coloca em questão o encarceramento em massa sem enfrentar a problemática da lei de drogas absurda que nós temos e das prisões em flagrante delito por nossa polícia ostensiva, sem investigação, etc., isso nos leva a pontos que estão inteiramente à margem de tudo o que está discutido no governo federal. Como se enfrentar o crime organizado fosse fortalecer as polícias e fazê-las trabalhar juntas”, afirma.
O fortalecimento das polícias pode até ter um efeito contrário ao do combate ao crime organizado, já que crime e polícia estão fortemente imbrincados no Brasil, defendeu no X (ex-Twitter) o pesquisador Gabriel Feltran, professor da Sciences Po, na França, e autor do livro Irmãos: uma História do PCC. Nas postagens, Feltran afirma que o Enfoc erra ao pensar Estado e crime organizado como entidades separadas, planejando injetar recursos nas polícias atualmente existentes, que são “instituições cada vez mais autônomas ao próprio poder governamental”. Na visão dele, o governo deveria investir em um “controle democrático, interno e externo, das atividades policiais” para “reestabelecer soberania estatal e inverter o ciclo que hoje alimenta o poder criminal”.
Mais guerra às drogas
O fundador do Voz da Comunidade, Rene Silva, também também se manifestou no X (ex-Twitter) dizendo que o programa do governo federal se parecia muito com as tentativas anteriores de outros governos, que só fizeram aumentar a violência e o tráfico.
“Já foi tentado inúmeras vezes desse mesmo modo e nunca funcionou. A violência e o tráfico só aumentaram. O que está sendo planejado de modo emergência também para que haja um plano de prevenção? Que investimentos sérios, a este mesmo nível, estão sendo pensados para as favelas do Rio, em educação e transformação dessa realidade que vivemos?”, escreveu.
Um efeito colateral da manutenção da política de segurança atual é que ela não resolve um dos problemas centrais na área: o encarceramento em massa. Para o advogado Cristiano Maronna, diretor da plataforma Justa, que pesquisa a economia política da Justiça, a proposta apresentada pelo governo é “equivocada e destinada ao fracasso”.
“O grande problema, quando se fala em organização criminosa no Brasil, é o sistema prisional, é o superencarceramento. O Brasil tem a terceira maior população prisional do planeta, nós temos um sistema prisional que o próprio Supremo Tribunal Federal reconhece como um estado de coisas inconstitucional, porque nele a violação de direitos é sistemática, e as prisões do Brasil são uma espécie de parceria público-privada entre o Estado e o crime organizado. O Estado manda até a porta da frente e da porta da frente em diante quem manda é o crime organizado”, afirma.
Maronna defende que qualquer medida que tenha por objetivo o combate às facções criminosas deveria priorizar o desencarceramento. Ele diz ver com tristeza que o governo Lula não foi capaz de formular uma política pública de segurança que respeite os direitos humanos e não repita o endosso a matança policial feita em gestões anteriores.
“Quando a gente ouve o discurso do Flávio Dino, que é o ministro da Justiça, sobre drogas, não há diferença nenhuma entre o que ele fala e o que fala o Tarcísio de Freitas ou o que falam lideranças da direita e da extrema-direita. Justamente aí reside, a meu ver, o fracasso do campo progressista na formulação de outra política de drogas, que teria que começar discutindo a questão da legalização de todas as drogas, porque qualquer outra opção fracassou e vai continuar fracassando, especialmente no Sul global”, comenta.
O atual governo tem responsabilidade direta pelo encarceramento em massa, já que foi a gestão do presidente Lula, em 2006, que sancionou a atual lei de drogas, que se tornou um dos principais motivos para a explosão no número de presos, principalmente negros, no Brasil, ao longo das décadas seguintes.
Rafael Rocha, coordenador de projetos do Sou da Paz, concorda que não se pode falar de combate ao crime organizado sem pensar novas políticas de drogas, por mais que a questão seja ampla e não caiba somente ao MJSP.
“A gente tem um grande percentual de jovens presos por tráfico de drogas, que ou já estão ali como atores periféricos dessas facções, ou quando entram no sistema prisional vão se tornar atores dessas facções. O próprio tráfico, que é o que vai equipar essas facções, vai permitir que elas consigam diversificar suas ações, entrar no mercado informal, comprar postos de gasolina para lavagem de dinheiro, entrada no sistema político, com vereadores, enfim, financiando campanhas. Então, o tráfico de drogas é a chave”, avalia.
Rafael, no entanto, acredita que o programa de Dino funcione mais como uma carta de propostas com iniciativas interessantes, que precisa ser melhor detalhada. “Nós precisamos ver quais vão ser os indicadores, onde vai ser alocada a verba, enfim, mas me parece uma carta de propostas interessante, ainda que tenha vindo, me parece, um pouco de última hora”, conclui.
O que diz o governo
A Ponte procurou a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), pedindo entrevista com o ministro Flávio Dino e com o secretário-executivo Renato Cappelli sobre as questões levantadas pelos entrevistados. Não houve retorno até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto.