Jovem é condenado por roubo, mas imagens o mostram em outro local próximo à hora do crime

Família conseguiu imagens de diversas câmeras e registro do Google Maps comprovando que Fabio Araújo Barbosa da Silva não participou de crime, mas polícia, Ministério Público e Judiciário preferiram acreditar em reconhecimentos irregulares

Câmera de segurança mostra Fabio andando na rua com a esposa e os filhos pequenos, cerca de 15 minutos após o roubo pelo qual seria condenado | Foto: reprodução

Depois de cinco meses desempregado, pensando em como iria fazer para garantir o sustento da esposa, dos filhos gêmeos autistas com então seis anos e da sua caçula, uma bebê que estava com três meses e tem deficiência intelectual, parecia que as coisas iram finalmente melhorar para Fabio Araújo Barbosa da Silva, 26 anos. Ele havia conseguido uma entrevista de emprego em um mercado e tinha certeza de que seria contratado.

Em 7 de julho de 2022, Fábio estava tão animado que comeu com a família numa lanchonete e resolveu ir a uma barbearia, no bairro onde morava, em Jundiaí (Grande SP), para se apresentar com a melhor estampa possível para a entrevista, marcada para o dia seguinte. No meio do caminho, porém, foi abordado por guardas municipais e levado a uma delegacia, acusado de roubar uma van. Fabio nunca foi àquela entrevista de emprego. Em vez disso, se viu condenado a 10 anos de prisão por roubo e corrupção de menor.

Ao longo do último ano, a esposa de Fábio, a dona de casa Janaina Guedes de Azevedo, 26 anos, ao mesmo tempo em que se desdobrava para cuidar sozinha dos três filhos do casal, fez seu próprio trabalho de investigação, levantando uma série de provas ignoradas pelo inquérito da Polícia Civil.

Ela conseguiu imagens de câmeras de segurança de uma padaria, de outros comércios e de vizinhos, mostrando como Fábio havia passado a tarde com a família, uma informação comprovada pelo trajeto registrado no Google Maps do celular do marido. Uma das imagens obtidas por Janaína, que abre esta reportagem, mostra ela, Fábio e os filhos andando tranquilamente pela rua às 15h33 — o roubo pelo qual ele foi condenado teria ocorrido entre 15h15 e 15h25. Essas filmagens foram exibidas em maio deste ano pelo programa Cidade Alerta, da Record TV.

Todas essas provas foram anexadas ao processo, mas ignoradas pela Polícia Civil, pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Todas essas instituições preferiram acreditar em dois reconhecimentos irregulares, que não seguiram as normas previstas no Código de Processo Penal.

“A nossa esperança é a mídia porque a gente vê casos de pessoas que estão presas injustamente que, depois que passam no jornal, eles [o Judiciário] analisam direito”, diz Janaína.

Única descrição: uma camisa do Corinthians

O roubo pelo qual Fabio foi condenado ocorreu em um lava-rápido localizado na Rua Balbina Miguel Casoni, no bairro Torres de São José. Segundo o proprietário do lava-rápido disse à Polícia Civil, dois homens chegaram num automóvel Renault Clio Hatch preto, anunciaram o assalto e levaram a van. A única descrição que ele menciona é que um deles usava uma camisa do Corinthians e estava armado. Ele não informou o horário do crime.

O dono da van contou à polícia que, às 15h15, recebeu uma mensagem do proprietário do lava-rápido avisando de que “a van estava pronta”. Cinco minutos depois, o comerciante mandou um áudio dizendo que o veículo acabara de ser roubado. Ele não ouviu o áudio, mas às 15h25 atendeu uma ligação do lava-rápido contando sobre o roubo. Ligou para a Guarda Municipal e, quando se dirigia ao lava-rápido, em outro carro, viu a sua própria van cruzando uma avenida com dois homens.

Quando a dupla estacionou o veículo, o empresário parou “um pouco distante” e, nesse momento, “a viatura [dos guardas municipai] chegou e abordou os dois indivíduos”. Na versão registrada no boletim de ocorrência, o homem disse que se apresentou como dono da van “pois os assaltantes se diziam donos do veículo e [que] trabalhavam com a mesma”. Os “assaltantes” eram Fabio e um adolescente de 17 anos, que acabaram detidos.

A esposa de Fabio conta que ele permaneceu o tempo todo com a família naquele dia. Por volta de 13h, Fabio a acompanhou até o caixa eletrônico de uma padaria para sacar o auxílio-maternidade e aproveitaram para lanchar numa hamburgueria próxima. Ele tirou uma selfie comendo hambúrguer com Janaína e as crianças, em que ele usava boné bege e camiseta preta.

Fabio tirou foto com a esposa Janaina e os filhos pequenos em uma hamburgueria pouco antes do crime | Foto: arquivo pessoal

Dali, passaram numa loja e depois Fabio deixou a esposa e os filhos na casa da avó de Janaína, na Rua Aristides Prado, no bairro Novo Horizonte, pois iria a uma barbearia. Quando ia para o salão, foi abordado pela guarda municipal, ainda mesma na rua. Às 15h42, Fabio mandou um áudio por aplicativo de mensagem para a esposa: “amor, tô tomando enquadro na rua da vó”. A Rua Aristides Prado, onde a abordagem ocorreu, fica de 10 a 13 quilômetros de distância do lava-rápido, a depender do caminho escolhido. 

Levado à delegacia, Fabio contou que, quando se dirigia à barbearia, o motorista da van o chamou para que “apenas visse se iria ‘bater no lixo’ enquanto estivesse dando ré”. Em seguida, os guardas municipais Franciane Augusta Monteiro e Leandro Bezerra Nepomuceno o abordaram. Fabio não entendeu nada. Relatou que não tinha “nada a ver com o roubo” que mencionavam.

Já o adolescente informou que estava empinando pipa, “momento em que, para sua surpresa, foi abordado por guardas municipais”, que o questionaram sobre quem estaria na van. O rapaz teria dito que “a van estava parada” e os guardas teriam lhe dado tapas no rosto, mas “não tem nenhuma marca da agressão”, e que foi levado à delegacia.

Tanto no depoimento do dono do lava-rápido quanto do empresário é informado que os dois reconheceram pessoalmente Fabio e o adolescente “com absoluta certeza”. O proprietário do lava-rápido disse que o adolescente era o “corintiano” que estava armado.

O delegado Marcos Luchesi Farias, do 2º DP de Jundiaí, entendeu que Fabio “corrompeu o adolescente” e o convenceu “a praticar com ele fato criminoso, definido como crime hediondo”. Ele e o adolescente foram indiciados por roubo, com agravantes de ser cometido por duas pessoas e com uso de arma de fogo. Fabio ainda foi indiciado por corrupção de menor de idade.

O delegado pediu a prisão preventiva (por tempo indeterminado) dele e a apreensão do adolescente. Sobre a agressão denunciada pelo rapaz, Luchesi disse que a versão dele “restou isolada” porque os demais ouvidos não relataram a situação e que aguardaria o resultado de exame de corpo de delito para verificar a denúncia.

Em audiência de custódia, o juiz Filipe Antonio Marchi Levada converteu a prisão em flagrante em preventiva de Fabio ao argumentar que “o preso praticou crime concretamente grave, agindo em comparsaria e se valendo de grave ameaça com emprego de arma, no que indica audência de freios inibitórios, em perigo à ordem pública”.

Na decisão, o magistrado também determinou a requisição de imagens de câmeras de segurança da hamburgueria e da padaria onde Fabio passou.

O delegado Marcos Luchesi concluiu a investigação no dia 13 de julho de 2022 sem solicitar imagens de câmeras nem outras diligências e manteve o indiciamento dos dois detidos. No dia seguinte, a promotora Evelyn Moura Virginio Martins, do Ministério Público Estadual de São Paulo (MPSP), acolheu o entendimento da Polícia Civil e acusou Fabio pelos mesmos crimes. A denúncia foi aceita pela juíza Jane Rute Nalini Anderson.

Reconhecimento irregular

Os autos de reconhecimento feito na Polícia Civil indicam que apenas Fabio e o adolescente foram colocados para serem reconhecidos presencialmente pelo proprietário do lava-rápido e do empresário dono do veículo.

O documento informa que as vítimas fizeram a descrição das pessoas a serem reconhecidas, embora não apareça outra descrição além da camisa do Corinthians, e que Fabio e o adolescente foram colocados “em local onde se encontravam várias pessoas”, embora não sejam detalhadas quais.

Vale destacar que, pelas informações do inquérito, os dois detidos não têm semelhança física. O adolescente é descrito como de pele preta. Já Fabio, de pele parda. Embora ambas as cores sejam referentes a pessoas negras, a tonalidade é diferente. Não há foto do adolescente nesse inquérito para comparação, mas Fabio tem a pele clara.

Para especialistas consultados pela reportagem sobre o caso, existem falhas na forma como o reconhecimento foi feito. Para a advogada criminalista Debora Roque e para Rafael Dezidério de Luca, advogado criminalista do Castelo Branco Advogados e mestrando em Criminologia e Direito Penal pela Faculdade Direito da USP, o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) não foi seguido.

O texto prevê que a pessoa primeiro descreva as características do suspeito e depois lhe sejam apresentadas pessoas com perfis semelhantes a essa descrição para que possa ser feito o reconhecimento.

Fabio faria entrevista de emprego, mas foi preso antes | Foto: arquivo pessoal

Mesmo com a família levando testemunhas, câmeras de segurança, registros do celular, a promotora e a juíza entenderam que o reconhecimento feito pelas vítimas, que foi repetido também em audiência, foi mais relevante e não contestaram o procedimento. Fabio foi sentenciado a 10 anos, dois meses e 20 dias de prisão em regime fechado e pagamento de 21 dias-multa, em setembro do ano passado.

Tanto o MPSP quanto a juíza levaram em conta que as vítimas ratificaram o reconhecimento no processo. O promotor Marco Antonio Martins Fontes Custódio, que atuou na audiência de custódia e assumiu o caso depois, ainda alegou que o artigo 226 do CPP é uma “recomendação”.

Rafael de Luca aponta que o sistema de justiça dá muito mais peso à palavra da vítima em detrimento de um conjunto de outras provas. “O fato de ter um reconhecimento é, por cultura própria do Poder Judiciário, um elemento que acaba conduzindo as condenações, que acaba convencendo muito o promotor, o juiz, o desembargador em eventual recurso. Isso acaba gerando uma tendência à condenação com base na prova de reconhecimento, embora hoje a jurisprudência do STJ já seja clara no sentido de que a prova de reconhecimento não deve servir como fundamento exclusivo de uma eventual condenação”, aponta. “No caso de Fabio, ele foi posto ao lado de pessoas que com ele não guarda qualquer semelhança física, o que favorece uma indução no reconhecimento e acaba contaminando todos os reconhecimentos posteriores, segundo a psicologia do testemunho”.

Ele se refere a uma decisão do ministro Rogerio Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, de outubro de 2020, em que concedeu um habeas corpus a um homem condenado unicamente com base em um reconhecimento por foto e que especialistas consideraram na época como um importante precedente para reverter prisões realizadas apenas com esse tipo de prova.

O próprio Schietti coordenou um grupo de trabalho para tratar do tema, que culminou numa resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece diretrizes para o procedimento a fim de evitar prisões de inocentes. A norma passou a ter validade neste ano e considera o reconhecimento como um procedimento irrepetível, ou seja, não pode ser feito mais de uma vez porque a memória do fato se reconstrói ao longo do tempo e pode ser viciada a partir de outros elementos.

De Luca, que está pesquisando sobre erros judiciários para a sua dissertação de mestrado, avaliou mais de quatro mil revisões criminais, que é a última oportunidade de recorrer de uma decisão que não tem mais possibilidade de recurso. Segundo ele, em 2022, o reconhecimento equivocado ou ilícito foi tratado como uma das causas de erro judiciário no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 29,2% dos 82 pedidos de revisões criminais que foram aceitos e levaram a uma absolvição.

Tanto Rafael de Luca quanto Debora Roque avaliam que a decisão recente do ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso, de que o artigo 226 do CPP é uma recomendação, traz insegurança jurídica e pode ser considerado um retrocesso em virtude da jurisprudência e da discussão do reconhecimento como prova.

Os especialistas também avaliam que presunção de inocência (toda pessoa é inocente até prova em contrário), que é uma prerrogativa constitucional, vira uma presunção de culpa. “O grande problema que podemos apontar nos processos criminais é que a inversão da prova recai sobre o acusado, ou seja, o réu é quem precisa provar a inocência e não o Estado provar a culpa de alguém”, critica Debora. “Isso fragiliza a estrutura do sistema acusatório escolhido pelo processo penal. Também torna impossível garantir a ampla defesa e o contraditório. E assim seguimos com o aumento da população carcerária, bem como com condenações duvidosas”.

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Agora, a família está justamente na fase da revisão criminal, pois mesmo recorrendo em todas as instâncias possíveis, o Judiciário manteve a condenação e a prisão de Fábio. O advogado André Kauã Brocanello de Jesus, que representa Fabio, obteve um áudio que seria da mãe do adolescente comentando que o filho disse a ela que quem estava envolvido no assalto era outra pessoa e conseguiu uma testemunha que afirma que viu Fabio apenas orientando a van sobre a manobra.

Ele entrou com o pedido de justificação criminal, ou seja, para que seja produzida uma nova prova para subsidiar o pedido revisão criminal. Essa nova prova seria o tribunal determinar que essas novas testemunhas sejam ouvidas.

Na segunda-feira (3), a 2ª Câmara de Direito Criminal do TJSP acatou a solicitação para que as novas provas sejam produzidas, o que acende a esperança da família.

O que diz o governo de São Paulo

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre a investigação da Polícia Civil, o reconhecimento irregular e a ausência de diligências sobre o caso, mas até a publicação não houve resposta.

O que diz o Ministério Público

A assessoria de imprensa disse que o Ministério Público Estadual de São Paulo só se manifesta nos autos.

O que diz a Guarda Municipal

Também contatamos a Corregedoria da Guarda Municipal sobre a abordagem e a denúncia de agressão do adolescente. Contudo, não houve manifestação.

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