Lei no RJ proíbe prisão com base apenas em reconhecimento por foto

Norma sancionada nesta quinta-feira (19/10) determina que pedido precisa ter outros elementos e é inspirada em diretrizes do Conselho Nacional de Justiça para evitar detenções de inocentes

Ilustração: Anotnio Junião/Ponte Jornalismo

Uma pessoa suspeita de um crime não pode ser presa se a única prova colhida for um reconhecimento fotográfico no Rio de Janeiro. Essa é a principal determinação da Lei 10.141 que foi sancionada pelo governador Claudio Castro (PL) nesta quinta-feira (19/10).

A lei prevê que os pedidos de prisão feitos pelos delegados deverão ter “indícios de autoria e materialidade e não apenas com reconhecimento por fotos como suporte”. Para isso, a autoridade policial deve cruzar outros elementos:

  • dados de telefonia ou telemáticos (localização de GPS, ligações, mensagens de texto, interação na internet, como postagens em redes sociais, comprovante de transações financeiras etc);
  • registro de trabalho da pessoa para ser comparada com o dia e local do crime;
  • entrevista prévia com a vítima ou testemunha, que deve fazer a descrição das características físicas do suspeito do crime, com base no artigo 226 do Código de Processo Penal. Elas devem ser informadas sobre como funciona o procedimento de reconhecimento;
  • “alinhamento de pessoas ou fotografias padronizadas a serem apresentadas à vítima ou testemunha para fins de reconhecimento”, sendo que devem ser apresentadas, no mínimo, quatro pessoas “que atendam igualmente à descrição dada pela vítima ou testemunha às características da pessoa investigada ou processada”;
  • “nos delitos supostamente cometidos por várias pessoas, devem ser utilizados múltiplos alinhamentos, com apenas um suspeito por alinhamento e sem repetição de pessoas”;
  • se for feito o reconhecimento fotográfico e não ser possível realizar o reconhecimento presencial, o fato deve ser registrado e a pessoa não pode ser automaticamente indiciada se o procedimento não for seguido corretamente;
  • é necessário registrar o grau de convencimento, ou seja, de certeza ou não que a vítima ou testemunha teve quando realizou o reconhecimento.

O texto ainda estabelece que a Polícia Civil “deverá ministrar aulas teóricas e práticas tratando do ato de reconhecimento fotográfico e destacar as consequências nefastas de uma investigação baseada unicamente nesse modelo de identificação de autor de infração penal, promovendo também os esclarecimentos quanto aos abusos que devem ser sempre evitados quanto ao uso dos álbuns fotográficos”.

A norma, de autoria dos deputados Luiz Paulo e Carlos Minc (ambos do PSD), é parcialmente inspirada nas diretrizes da Resolução nº 484, de 19 de dezembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criada com o objetivo de evitar prisões e condenações de inocentes por erros no procedimento e que está em vigor desde março deste ano.

Coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes considera a lei um “avanço” tanto no sentido de não basear as prisões exclusivamente em reconhecimentos quanto de capacitação da polícia sobre o tema. “Essa é uma vedação importante porque o que a gente viu, com muitos casos na imprensa, inclusive muitos casos da Ponte também, o quanto essa é exatamente uma prática comum: de que é o apontamento por fotografias, às vezes fotografias de baixa qualidade, fotografias sugeridas por policiais circulando em grupos de WhatsApp, eram, às vezes, a única prova que justificava a prisão de uma pessoa”, afirma.

Nunes participou do grupo de trabalho que construiu as regras que passaram a compor a resolução do CNJ. Ele entende, contudo, que a lei não resolve todo o problema. “É uma lei que é muito tímida em relação a tudo o que o reconhecimento de pessoas pode provocar em termos de danos e injustiças”, pondera. “A gente sabe que uma parcela significativa das mudanças que nós desenhamos no GT têm que ser recepcionados em outras esferas, na esfera federal, talvez inclusive dentro das instituições relativas à reforma do Código de Processo Penal outras questões que precisariam e que poderiam ser também colocadas como avanços aqui no Rio de Janeiro, como, por exemplo a produção de informações sobre o uso desse tipo de prova para embasar inquéritos policiais e processos penais poderia ter sido incluída e que poderia, inclusive, nos permitir fazer debates mais bem qualificados em relação ao impacto e avaliação desse uso do expediente de reconhecimento de pessoas”.

Outra questão é que a lei não faz menção a álbuns de fotos nas delegacias, algo que, aponta o pesquisador, já evoluiu para outros formatos, como policiais que tiram fotos de pessoas abordadas e disseminam em grupos de mensagens por aplicativo. Em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu liberdade a um porteiro que foi reconhecido por foto em 62 processos. A imagem dele estava entre um mural de suspeitos da delegacia de Belford Roxo (RJ), embora as características dele não fossem compatíveis com suspeitos descritos pelas vítimas.

“Fazer o debate sobre isso hoje é talvez um dos principais e mais desafiadores frentes para se pensar o reconhecimento de pessoas”, analisa Nunes. “Não só é um expediente que faz parte, está muito arraigado na cultura policial, mas também por meio de uso de tecnologias essa prática tem se descentralizado e tem ganhado áreas de uso corriqueiro de WhatsApp, aplicativos de mensagens ou redes sociais. A gente ainda não produziu uma regulação que dê conta desse desafio que é a forma como os policiais coletam essas informações, onde armazenam, como eles mantêm ou não essas informações”.

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Outro dilema é se a norma vai ser de fato seguida nas delegacias. “A gente está, por um lado, vivendo um momento em que as polícias têm desafiado o poder civil e principalmente o Judiciário, como é o caso da Ação de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, que tem sido constantemente violada pelas forças policiais aqui do Rio de Janeiro e o Judiciário não tem conseguido produzir uma resposta efetiva sobre a violação dessa decisão, que é uma decisão judicial, que deveria estar sendo cumprida por todos os órgãos militados”, aponta o pesquisador, em referência à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tratava da proibição de operações policiais em comunidades durante a pandemia e que se desdobrou para a discussão de um plano de redução da letalidade policial no estado.

Há, ainda, a atuação do Poder Judiciário, já que o atual presidente da Suprema Corte, ministro Luís Roberto Barroso, ao analisar um pedido de liberdade, entendeu que o artigo 226 é uma recomendação, o que contraria a jurisprudência recente calcada pelo STJ sobre a fragilidade dos reconhecimentos como prova. “Não me surpreende que existam, inclusive, essas vozes dissonantes dentro do judiciário entendendo que exatamente esse papel de controlar, esse papel de regular a atividade da polícia, está em debate e está em disputa no cenário não só do judiciário, mas no cenário político”, avalia Nunes.

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