Mortes pelas polícias sobem 72% no 3º trimestre sob Tarcísio

Número de vítimas pelas polícias Civil e Militar em SP foram de 89 para 153 de julho a setembro; especialistas apontam abandono de políticas de redução do uso da força e declarações de governador e secretário que incentivam cenário

Manifestante segura placa com frase “pelo fim da violência policial” enquanto ato era acompanhado pelo patrulhamento em motocicletas da PM durante protesto contra violência policial em agosto, na Avenida Paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

As polícias Civil e Militar do estado de São Paulo mataram 71,9% a mais no terceiro trimestre de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado: de 89 para 153 vítimas, considerando os casos em serviço ou de folga. De julho a setembro, cinco policiais perderam a vida (quatro a menos do que no mesmo intervalo de 2022). É como se, para cada policial morto, 30 pessoas tivessem sido assassinadas pelas polícias sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite.

O trimestre em questão é marcado pela Operação Escudo, deflagrada em 28 de julho após o assassinato do soldado Patrick Reis, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa especial da PM paulista, no Guarujá, no litoral do estado. Durante 40 dias, 28 pessoas foram mortas pelas polícias até o secretário anunciar o encerramento das ações em 5 de setembro. Contudo, após mais um homicídio de um policial, Derrite informou que a operação passaria a ter uma nova edição.

Especialistas ouvidos pela Ponte entendem que a Escudo contribuiu e deu mais visibilidade à letalidade policial, que vem aumentando mês a mês. Só em setembro, passou de 31 para 47 vítimas. No acumulado dos nove meses, 374 pessoas foram mortas, o equivalente a um aumento de 27,6% em relação a 2022 , com maior aumento (45%) quando os policiais estavam em serviço.

“A Operação Escudo foi mais do que um sinal, foi um emblema dessa guinada, dessa mudança de direção, no sentido de um retrocesso mesmo do retorno de uma perspectiva de bom trabalho policial e de retrocesso sobre as políticas de controle que a gente vinha implementando enquanto estado ao longo dos últimos mais de dois anos”, analisa Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Uma dessas iniciativas é o programa de câmeras nas fardas da PM. O governador já fez dois cortes, um de R$ 11 milhões e o outro de R$ 15 milhões, do programa, cujas verbas foram destinadas para pagamento de diárias de policiais militares. O orçamento original, previsto para ser aplicado em 2023, era de R$ 152 milhões, que havia sido aprovado pela Assembleia Legislativa (Alesp) em 2022, com uma meta de se ter, em 2023, 15.300 aparelhos em funcionamento. A corporação tem, atualmente, 10.125 câmeras, o mesmo número atingido pela gestão anterior, do governador Rodrigo Garcia (PSDB), em 2022, e não investiu em novas aquisições.

A pasta chegou a anunciar, em agosto, que dois batalhões de trânsito usariam equipamentos, mas tratava-se de um remanejamento dos aparelhos existentes e não de nova compra. No 3º Congresso de Operações Policiais (COP), feira de exposição de empresas do setor da segurança e da defesa realizada nesta quarta-feira (25/10), Derrite declarou que não havia previsão de quando novas compras seriam realizadas.

“As câmeras são um dispositivo tecnológico, mas elas estavam inseridas num contexto de outras transformações institucionais que estão sendo todas desfeitas, inclusive, a progressão do investimento sobre as câmeras é também um símbolo dessa guinada de perspectiva e dessa guinada política mesmo”, critica Dennis. “É uma demonstração de desinteresse nessa política de preservação de vidas como parte do trabalho da Polícia Militar, especialmente em São Paulo”.

O anúncio de que ao menos três câmeras usadas por PMs que mataram durante a Operação Escudo estariam sem bateria, a ausência de utilização por todos os policiais envolvidos na operação e a falta de transparência sobre sobre o emprego dos aparelhos suscitou ações judiciais em que a ONG Conectas Direitos Humanos e a Defensoria Pública requisitaram que todos os policiais usassem os equipamentos. O TJSP acatou um pedido liminar (de urgência), mas a decisão só durou um dia após o governo paulista recorrer à presidência do tribunal, que a derrubou.

Nesta quinta-feira (26/10), cinco organizações divulgaram uma nota pública em que alertam sobre “o risco de desmonte” do programa. “O sucesso de políticas de redução do uso da força letal, como o projeto ‘Olho Vivo’, depende de uma série de fatores, como a supervisão atenta do comando da Polícia Militar, o apoio político do Governador e do Secretário de Segurança Pública e a atuação de mecanismos externos e internos de controle. Quando o governo tira a prioridade das câmeras corporais, ele ignora as evidências científicas e aponta para um horizonte de políticas de segurança pública baseadas meramente na violência policial”, diz trecho do texto assinado por Instituto Sou da Paz, Conectas Direitos Humanos, Comissão Arns, Instituto Igarapé e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP).

Além disso, em meio as mortes da operação, foram feitas denúncias de execuções, tortura, ameaças, invasões e derrubada de casas relatadas por moradores de cidades do litoral paulista e também apresentadas em relatório preliminar do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que é vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Houve ainda denúncia internacional de organizações ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), celebração de policiais pelas mortes, protestos encabeçados por movimentos sociais pedindo o fim da operação e prisões de pessoas majoritariamente negras sem antecedentes que não cometeram crimes violentos.

Durante a COP, Derrite voltou a enaltecer a Operação Escudo e declarou que parte da imprensa paulista é canalha, publica “fake news” e trabalha “a serviço do crime”. “Os senhores acham que aquela conversa furada de uma imprensa, uma parte da imprensa canalha, que solta fake news dizendo que o indivíduo foi torturado, arrancaram as unhas e depois executado, nenhum laudo do Instituto Médico Legal apontou hematomas, muito menos sinais de tortura”, afirmou Derrite. “Como diria um ex-comandante meu: esses indivíduos, não é que eles torcem para o outro lado. Eles trabalham a favor do crime, esses covardes”, emendou.

Na ocasião, ele ainda disse aconteceria uma Operação Escudo para cada policial que fosse assassinado e que cada agressor seria “caçado” no estado. “Quando eu falo ser caçado, preferencialmente será preso. Eu sei que tem órgãos na imprensa aí que estão loucos para soltar uma notinha”, declarou.

Ao longo do trimestre, também aconteceram outros discursos, como o governador ter chamado as mortes na operação de “efeito colateral”, de alegar que denúncias de violações de direitos humanos são “narrativas”, o que foi repetido pelo secretário, além de o próprio comandante-geral da PM, coronel Cássio Araújo de Freitas, ter gravado vídeo em que orienta a tropa a não hesitar “em utilizar legítima defesa”.

Pesquisadora do Instituto Sou da Paz, Mayra Pinheiro também atrela as falas de Derrite ao cenário de alta da letalidade policial. “Todas as declarações que o secretário de Segurança Pública vem dando nos últimos meses demonstram um certo abandono das políticas que funcionaram nos últimos dois anos em reduzir os índices de letalidade”, afirma.

“A própria Operação Escudo é um exemplo, é comemorada como uma operação exitosa sendo que foi bastante letal, foram mortes em retaliação à morte de um policial. É uma situação que a gente lamenta que vem acontecendo, mas essa não deveria ser a atitude do Estado para enfrentar esse tipo de situação, nem o desmerecimento das denúncias de tortura que ocorreram durante a operação”, avalia.

Uma das formas de verificar se o uso da força pelas polícias é abusivo é a comparação das mortes praticadas pelas polícias com o número de vítimas de homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano consideram que a proporção ideal é de no máximo 10% de mortes pelas polícias em relação ao total de homicídios, enquanto o pesquisador Paul Chevigny sugere que índices maiores de 7% seriam considerados abusivos.

De janeiro a setembro deste ano, esse índice ficou em 15,6%. No mesmo período do ano passado, estava em 11,6%. Outra maneira é a proporção de mortes de civis por mortes de policiais. Chevigny indica a proporção de 10 para cada policial, já Cano entende como razoável de quatro civis para cada policial. Considerando o acumulado dos nove meses, foram quase 19 pessoas mortas para cada policial assassinado.

Neste trimestre, diversos casos de policiais assassinados, especialmente durante a folga, tiveram repercussão. Um dos mais recentes é o homicídio do soldado Hiago Mariano Nogueira Gobi, de 24 anos, que estava caminhando com dois colegas e foi morto ao reagir uma tentativa de assalto na Vila Monte Alegre, na zona sul da capital, em 17 de setembro.

Dennis Pacheco aponta que, apesar do aumento salarial concedido pelo governador às polícias, ainda falta maior valorização profissional dos policiais, já que a lógica de “herói” os desumaniza. “Os policiais são mortos justamente nesses momentos em que eles estão vulneráveis, enquanto fazem bicos, enquanto estão sozinhos, sem apoio dos colegas, sem o apoio operacional. Enfim, esse modelo de policiamento que está sendo reforçado pela gestão do Tarcísio é justamente o modelo que investe nessa perspectiva do policial enquanto herói que, portanto, trabalha por uma suposta virtude que não precisa de garantia de direito laboral nenhuma, não precisa de valorização profissional. São dois lados de uma mesma moeda que acaba vulnerabilizando populações muito similares”, aponta.

O que diz o governo

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública sobre os indicadores, mas, até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:

A SSP investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas para reduzir as mortes em confronto, com o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações voltadas ao efetivo. Uma Comissão de Mitigação e Não Conformidades analisa todas as ocorrências de mortes por intervenção policial e se dedica a ajustar procedimentos e revisar treinamentos.

Os números de mortes decorrente de intervenção policial (MDIP) indicam que a causa não é a atuação da polícia, mas sim a ação dos criminosos que optam pelo confronto, colocando em risco tanto a população quanto os participantes da ação. O trabalho das forças policiais nos nove primeiros meses no Estado, resultou na detenção de 141.835 infratores, 5,3% a mais que no mesmo período de 2022. No período, ocorreram 283 mortes decorrente de intervenção de policiais em serviço, representando 0,19% do total de prisões realizadas. Todos os casos dessa natureza são investigados, encaminhados para análise do Ministério Público e julgados pelo Poder Judiciário.

A pasta também investe em políticas públicas visando à diminuição das mortes de todos os seus policiais. Entre as medidas está o investimento em tecnologia. Além disso, os policiais contam com apoio de equipamentos e com treinamentos constantes. As mortes são investigadas pela Polícia Civil e por uma divisão especializada da Corregedoria da PM, a “Divisão de PM Vítima”, responsável por acompanhar e atuar para o esclarecimento dos crimes contra os policiais.

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