SP tem verba para 15 mil novas câmeras para PMs, questionadas por secretário

Lei Orçamentária Anual para 2023 tem como meta aquisição de equipamentos ao custo de R$ 152 milhões; governador declarou que projeto não será alterado após secretário Guilherme Derrite dizer que programa seria revisto

Uso de câmeras acopladas aos uniformes de policiais militares do estado de São Paulo para registro das suas ações ajudou a reduzir violência policial | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

O governo do estado de São Paulo prevê a aquisição de mais 15.300 câmeras para serem acopladas nas fardas de policiais militares ao custo de R$ 152 milhões em 2023. O dado está presente na Lei Orçamentária Anual para este ano, que foi aprovada no passado pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo então governador Rodrigo Garcia (PSDB). Essa lei determina os recursos que serão investidos anualmente pelo Estado e detalha cada finalidade com seu respectivo valor.

Desde a campanha eleitoral, o programa de câmeras na PM paulista vem sido alvo de incertezas por conta de declarações e recuos da nova gestão. A última delas aconteceu nesta quinta-feira (5/1), quando o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) declarou que o projeto não vai ser alterado “em nada” um depois que o secretário de Segurança nomeado por ele, Guilherme Derrite, disse em uma entrevista que iria rever a medida.

“Nós vamos rever o programa. O que existe de bom vai permanecer. Aquilo que não está sendo bom e que pode ser comprovado cientificamente que não é bom, por isso a importância de analisar esse estudo da Fundação Getúlio Vargas, a gente vai propor ao governador possíveis alterações”, afirmou Capitão Derrite, como é conhecido e que foi reeleito em 2022 a deputado federal por São Paulo pelo PL.

A declaração do secretário gerou “preocupação” ao Ministério do Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), que publicou nota apontando que “o sucesso dessa política demonstrado pela ciência faz com que ela não apenas tenha que ser reforçada e ampliada nas regiões em que é aplicada, mas também que seja estendida a todas as unidades da federação” e que “tratando-se de prática exitosa, esperamos que toda e qualquer revisão do programa seja lastreada nas melhores evidências disponíveis e tenha como objetivo precípuo o respeito e a proteção do direito humano à vida, tanto dos trabalhadores da segurança pública quanto da população em geral”.

Procuradores de Justiça de São Paulo também manifestaram repúdio a uma possível revisão do projeto e afirmaram que “a supressão das câmeras ou mesmo a diminuição do programa, poderá ser entendido por setor minoritário da polícia como verdadeira licença para matar pois não parece ser simples coincidência a diminuição da letalidade policial em unidades onde as câmeras foram adotadas, propiciando ao alto escalão da corporação maior controle do que ocorre no policiamento”.

Em sua primeira entrevista exclusiva à Ponte, o novo ouvidor das Polícias, Claudinho Silva, declarou que a medida deveria ser estendida a toda a corporação, uma vez que atualmente 12% da tropa utiliza os aparelhos na farda, o que equivale a 10.100 câmeras.

Nesta sexta-feira (6/1), ele disse à reportagem que “foi pego de surpresa” com a declaração do secretário e defende que o programa seja expandido não apenas para todos os policiais militares como também para as demais polícias. “Quando eu conheci o secretário, numa conversa bastante cordial, eu mesmo me coloquei à disposição para se necessário fosse empenhar esforços, com as minhas relações políticas no governo federal, especialmente com a Tamires Sampaio, coordenadora do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), para a gente colaborar enquanto Ouvidoria e com a Tamires que é uma mulher preta da periferia de São Paulo, caso o estado de São Paulo tivesse necessidade de algum aporte do governo federal no sentido de a gente fortalecer não só a política de câmeras, como também a política de segurança pública daqui do estado”, declarou.

“A gente foi pego de surpresa com essa manifestação do secretário, felizmente o governador foi bastante enfático na defesa das câmeras. Essa é uma política que a gente não abre mão e vai fazer todas as manifestações e enfrentamentos que necessários forem para garantir que essa política seja mantida”, prosseguiu.

Derrite já se mostrou claramente contra a medida. Além de ser apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro, assim como Tarcísio, é expoente da Bancada da Bala, como são conhecidas as frentes parlamentares de deputados oriundos de carreiras policiais que defendem políticas linha-dura e pregam que “bandido bom é bandido morto”. Em 2015, a Ponte revelou um áudio em que o capitão disse quando ainda era tenente que era “uma vergonha” um policial não ter no currículo pelo menos três mortes praticadas em cinco anos de carreira.

Além disso, a fala do secretário mantém o que o próprio plano de governo de Tarcísio havia descrito enquanto era candidato: rever o projeto de câmeras. Tarcísio já havia declarado durante a corrida eleitoral que ia determinar a retirada dos equipamentos. “O que representa a câmera? É uma situação deixar o policial em desvantagem em relação ao bandido”, declarou na ocasião à rádio Jovem Pan. Ele voltou atrás com a repercussão da fala dizendo que tinha “a percepção” de que o aparelho inibe e atrapalha a produtividade policial, o que o estudo da FGV mostrou depois que não se sustenta. Em dezembro do ano passado, ainda disse que iria rever o projeto, mas que seria mantido.

A implementação gradual do projeto desde 2020 é um dos impactos concretos nos números de letalidade policial e também de mortes de policiais. O primeiro batalhão a utilizar as câmeras do Consórcio Axon e Advanta foi a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa mais letal da PM paulista. Nele e em outros 15 batalhões, as mortes praticadas pela polícia chegaram a zero nos primeiros meses de uso. Em dezembro do ano passado, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que demonstrou que ao menos 104 mortes de civis foram evitadas nos primeiros 14 meses de implementação do projeto, além de uma elevação do que é considerado produtividade nas unidades com o equipamento: aumento de 24% do número de apreensões de armas, de 102% dos registros de casos de violência doméstica e crescimento de 78% dos casos de porte de drogas.

Sem lei nem regulamentação específica, o projeto está de pé desde fevereiro de 2021 pelo contrato com o consórcio que fornece as câmeras e o sistema de armazenamento das imagens cuja vigência vai até julho de 2024 ao custo mensal de mais de R$ 5,9 milhões. Como a Ponte mostrou, desde 2014 a inclusão de câmeras nos uniformes vêm sendo discutida na PM e houve algumas iniciativas com equipamentos diferentes que submetiam ao acionamento manual do policial que não deram certo. A diferença do programa atual é que as câmeras usadas gravam ininterruptamente por turno de 12 horas e os registros não podem ser editados.

Contudo, os equipamentos nem sempre evitam mortes, embora tenham servido de prova de ações que não aconteceram em legítima defesa. A Ponte revelou dois casos em que os policiais tentaram esconder ou definitivamente cobriram os aparelhos em abordagens que terminaram em mortes. O primeiro foi em setembro de 2021 quando Vinícius David de Souza Castro Gomes, 20, foi morto rendido, com as mãos na cabeça, por policiais militares em São José dos Campos, no interior paulista. O grupo ainda colocou uma arma próxima ao corpo do jovem negro para simular um falso confronto e os policiais se moviam para tentar evitar o registro das câmeras nas fardas. A íntegra das imagens depois foram veiculadas pelo Fantástico, da TV Globo, e um dos PMs foi acusado pela morte de Vinicius enquanto outro por tentativa de homicídio.

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O segundo caso foi revelado em dezembro do ano passado, quando policiais taparam as câmeras e mataram Kaique de Souza Passos, 24, com sete tiros no Guarujá, litoral paulista, em junho do mesmo ano. Na abordagem, outro policial ainda teria atirado em outro jovem já rendido e ainda perguntou se ele “não ia morrer logo”. Esse segundo rapaz sobreviveu. Porém, o Ministério Público só ofereceu denúncia seis meses depois quando o inquérito na Justiça Militar foi remetido à Justiça Comum e a Promotoria viu as imagens. De início, o MP tinha pedido o arquivamento da investigação do homicídio sem sequer pedir os registros das câmeras. Uma semana após a publicação da reportagem, quatro PMs foram presos e se tornaram réus: dois pela morte de Kaique e outros dois por tentativa de homicídio contra o segundo jovem baleado.

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