Militarizada, violenta, privatizada: o que esperar da segurança pública de Tarcísio

Governador eleito de São Paulo escolheu o influencer e deputado federal Capitão Derrite para comandar as polícias do estado; pela primeira vez em décadas comando das polícias paulistas é ocupado por PM

Jair Bolsonaro (PL) ao lado do Capitão Derrite, futuro secretário da Segurança Pública de SP | Foto: Reprodução / Redes sociais

Desde que surpreendeu as pesquisas e os analistas políticos ao terminar em primeiro lugar a disputa do primeiro turno a disputa pelo executivo paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador eleito de São Paulo, gera especulações sobre como um carioca deverá governar o estado mais populoso do país.

Entre apostas de que os gabinetes serviriam de cabide de emprego para refugiados da administração federal de Jair Bolsonaro (PL), candidato derrotado à reeleição e aliado próximo de Tarcísio, ou de que o governador eleito se “moderaria” para buscar aprovação da direita paulista que abandonou o tucanato para prestigiar a opção bolsonarista, o ex-ministro da Infraestrutura escolheu um caminho do meio.

Tarcísio tem privilegiado em suas escolhas nomes próximos de si, como Natália Resende, que foi consultora jurídica no ministério da Infraestrutura e vai comandar a “supersecretaria” de Infraestrutura, Meio Ambiente e Transportes, num aceno à sua prometida política de privatizações; e também políticos ligados a Gilberto Kassab, cacique do PSD que vai comandar a Secretaria de Governo, como Eleuses Paiva, ex-vice-prefeito de São José do Rio Preto, no interior paulista, que deve ficar com a Secretaria de Saúde.

Nenhuma área mostra melhor a preferência de Tarcísio por um gabinete que privilegie um bolsonarismo castiço paulista do que a nomeação da equipe de transição de governo para a área de Segurança Pública e Administração Penitenciária, começando pelo recém anunciado titular da Secretaria da Segurança Pública (SSP), o deputado federal Guilherme Mauro Derrite (PL-SP), o Capitão Derrite.

Apesar de gostar de ostentar sua passagem pela PM, Derrite ganhou os holofotes ainda tenente, atuando como bombeiro depois de passar em um concurso interno em 2014, dando entrevistas emocionadas sobre o trabalho enquanto porta-voz da corporação. 

Em 2015, após a Ponte revelar uma gravação em que ele criticava o Comando da PM, que estava mudando policiais de batalhões, com históricos de supostos tiroteios seguidos de morte, com o objetivo de reduzir a letalidade policial, Derrite chegou a ficar encarcerado por um dia na Corregedoria da PM, mas foi posteriormente absolvido.

A revolta de Derrite ocorreu porque o Comando decidiu tirar da tropa de elite da PM o então tenente Rafael Telhada, filho do deputado estadual Coronel Paulo Telhada (PP). Derrite foi o “padrinho de braçal” do batalhão do filho de Telhada. Ostentando o nome Capitão Telhada, Rafael foi eleito deputado estadual pelo PP em 2022, enquanto o Coronel Telhada não conseguiu se eleger deputado federal.

Com quase 3 milhões de seguidores nas redes sociais, entre Twitter, Facebook e Instagram, Derrite afirma que entrou na política pelas mãos de Jair Bolsonaro. Depois de ser eleito pelo PP em 2018, foi agraciado com o cargo de vice-líder do governo na Câmara entre 2019 e 2020. Em 2022 trocou de partido na grande migração do bolsonarismo rumo ao PL. Reelegeu-se com votação expressiva: com mais de 200 mil votos, foi o 11º deputado federal mais votado do estado.

Durante seu primeiro mandato, teve apenas três leis de sua co-autoria aprovadas na Câmara: uma que incentiva a criação de startups de tecnologia, uma alteração na lei de combate à Covid-19 e uma lei que cria um teto de idade para nomeação de diversos cargos do Judiciário federal. Entre propostas de autoria de Derrite que ainda não avançaram no Congresso, estão o fim da obrigatoriedade da revisão de prisões preventivas a cada 90 dias, o fim das saídas temporárias de pessoas presas e a transfóbica “Lei da Competição Justa no Esporte”, que prevê “o sexo biológico como critério exclusivo para definição de gênero em competições esportivas”.

Nas redes sociais, entre posts monarquistas e olavistas, Derrite dá apoio tímido ao golpismo que bate à porta dos quartéis pelas mãos dos eleitores de Bolsonaro — compartilhou nota do Ministério da Defesa questionando as urnas eletrônicas, apoiou o pedido do Pl de anulação das eleições e assinou o pedido de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

As opiniões externadas pelo novo secretário para a área de segurança pública também são bem temerárias do ponto de vista dos direitos humanos. Após uma alta histórica na letalidade policial, entre 2020 e 2021 os governos tucanos de João Doria e Rodrigo Garcia promoveram uma redução expressiva no número de mortes causadas por policiais.

Especialistas consultados pela Ponte neste ano apontaram a criação de uma comissão interna de mitigação da letalidade policial pelo Comando da PM e a adoção de câmeras nas fardas de policiais como fatores essenciais para a redução das mortes. Os posicionamentos públicos de Derrite a favor de policiais que matam e contra as câmeras mostram que é muito provável que essa tendência se reverta e a violência das polícias paulistas volte a crescer.

“Quem mora nos centros urbanos pode esperar um aumento de operações midiáticas, mais repressão contra batalhas de rap na rua, contra bailes funk”, analisa o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Laboratório de Análise em Segurança Internacional de Tecnologias de Monitoramento (LASInTec) Acácio Augusto Sebastião Junior.

Um oficial da PM da paulista na reserva, ouvido sob condição de anonimato pela Ponte, acredita que a escolha de um policial militar para comandar a secretaria é uma decisão temerária: “é algo complicado esperar que um delegado da Polícia Civil obedeça tranquilamente um capitão da PM”. Há um histórico longo de disputa entre as polícias paulistas, marcado por uma batalha campal com dezenas de feridos durante uma greve da Polícia Civil em 2008 e um conflito de baixa intensidade nos primeiros anos do governo Doria.

A preferência explícita de Tarcísio pelos militares não se dá apenas na indicação de um quadro da PM para comandar a SSP pela primeira vez desde a ditadura militar. O grupo de transição de governo escalado para a área conta com apenas dois nomes ligados à Polícia Civil entre um total de nove convocados: o delegado do  Departamento de Operações Policiais Estratégicas (Dope) Artur José Dilan, de família rica do interior paulista (em 2010, quando concorreu a deputado estadual pelo PV, declarou mais  de R$ 5 milhões em bens), que foi denunciado em 2014 pelo sumiço de 82 armas do Grupo Armado de Roubos e Assaltos (Garra) — o caso foi posteriormente arquivado —; e a delegada Raquel Kobashi Gallinati Lombardi, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) e candidata derrotada a deputada estadual pelo PL no pleito de 2022, que também já se posicionou contra as câmeras nas fardas e foi denunciada pela Ponte por postagens transfóbicas.

Segurança privatizada

Para além da militarização, Acácio Augusto aponta que uma tendência que deve se fortalecer no governo Tarcísio é uma conexão mais forte com a indústria da segurança privada. “Existe uma nova indústria em São Paulo, a indústria da logística, com esses galpões de empresas como Amazon e Mercado Livre na região metropolitana, além do escoamento cada vez mais frenético das safras de commodities agrícolas. Isso tudo traz uma nova demanda por segurança”, analisa.

Acácio chama atenção para o papel de Nelson Santini Neto,o Tenente Santini, ex-vereador em Campinas, na campanha do governador eleito. Além de compartilhar o perfil “influencer reacionário” de Derrite, com postagens LGBTfóbicas e golpistas, Santini foi contratado através da sua empresa CampSeg para fazer a segurança da campanha de Tarcísio — Arnaldo Costa Vargas, sócio de Santini, doou R$ 200 mil para a campanha do governador eleito e Santini, enquanto pessoa física, doou R$ 88.655,00 para a campanha de Derrite. O novo secretário de Segurança também contratou os serviços da CampSeg por R$ 6 mil, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A família Santini é próxima do clã Bolsonaro há décadas. Nelson Santini Júnior, pai do ex-vereador, é amigo de Jair Bolsonaro da época da Escola de Artilharia do Exército, no Rio de Janeiro. Vicente Santini, irmão de Nelson Neto, foi demitido do cargo de secretário nacional de Justiça ao usar avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para ir a Davos e à Índia. Em 2022, foi empregado como assessor especial da Presidência por Bolsonaro, no lugar do general Braga Netto (PL), candidato a vice-presidente derrotado na chapa do ainda presidente.

O oficial da PM consultado pela reportagem faz coro à Acácio em relação à segurança privada: “ninguém parece estar prestando atenção nisso, mas vai ser uma questão central no governo Tarcísio”. Acácio discorda de críticas correntes no campo de esquerda que o novo governo traria para São Paulo um modelo de milícias como o que opera no Rio de Janeiro: “as polícias de São Paulo se consideram técnicas e tendem a rechaçar essa dubiedade criminal das milícias fluminenses. Mas existe esse outro campo, mais oficial, da segurança privada, que de certa forma se assemelha à milícia”.

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O professor da Unifesp aposta que São Paulo servirá de trampolim para o lobby para um projeto de lei subterrâneo que tira da Polícia Federal o controle das atividades de segurança privada, que seria exercido pelas Polícias Militares de cada estado. “É o sonho molhado do setor, até porque uma imensa parte dessas empresas já é controlada por oficiais vindos das PMs”, conclui.

Outro lado

A Ponte procurou o Capitão Derrite para comentar as questões levantadas na reportagem e para entrevistar o futuro secretário, mas sua assessoria informou que não ele emitirá nenhum posicionamento nem concederá entrevistas durante a fase de transição. A reportagem também procurou Santini para questionar sobre as implicações éticas da prestação de serviços da CampSeg para Tarcísio e não teve retorno até a publicação deste texto.

Sobre a investigação contra o delegado Artur Dilan, a Secretaria de Segurança Pública encaminhou a seguinte nota:

A Corregedoria da Polícia Civil esclarece que o fato foi investigado e dois autores foram identificados e penalizados nos termos da Lei. Com relação ao delegado citado, não houve elementos que indicassem a participação dele na ação.

Reportagem atualizada às 12h47, de 2/12/2022, para incluir resposta da SSP.

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