Em entrevista à Ponte, José Cláudio Souza Alves, professor da UFRRJ, fala sobre o avanço das milícias no Rio de Janeiro, os acordos de Cláudio Castro e Alerj e a política de segurança do governo Lula 3
A violência no Rio de Janeiro ganhou as manchetes nacionais no mês de outubro. Primeiro pelo anúncio do ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Flávio Dino, da destinação de dinheiro e agentes federais para o estado. O segundo holofote veio com a execução na orla da praia da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, de três médicos que confraternizavam em um bar, incluindo o irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP). A suspeita até aqui é que as mortes tenham sido por engano e o algo era um miliciano.
A revelação pelo Fantástico de um centro de treinamento de traficantes também foi destaque. Como resposta, mais uma operação policial. Na semanada passada, a morte do miliciano conhecido como Faustão gerou terror com 35 ônibus queimados e um trem. O governo Cláudio Castro (PL) passou a culpar o que chama de “narcomilícia” pela situação atual do estado. O conceito é desprezado pelo professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio Souza Alves.
Para o especialista em segurança pública, o termo é “uma utilização política para isentar a estrutura policial do seu envolvimento com a estrutura miliciana”. Alves analisa ainda que a relação entre milícia e o Estado no Rio de Janeiro é profunda e atravessa o ambiente policial, chegando a influenciar a política.
Ele afirma que o governo do Rio joga na política do “bandido bom é bandido morto”, mas que essa lógica não finda as milícias ou o tráfico. O que ocorre, na análise do pesquisador, é que com a morte de um líder, um novo se consolida. “Sempre se seleciona um novo líder, um líder seguinte para você matar”, diz.
Em entrevista à Ponte, José Cláudio Souza Alves, fala sobre o avanço e poderio das milícias no Rio de Janeiro, os acordos de Cláudio Castro e a Alerj e a política de segurança do governo Lula 3.
“Vivemos um grande arrego nacional. Você vai aceitar toda essa estrutura que está”, critica Alves sobre a manutenção da política de segurança do Rio e do governo federal.
Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Ponte — Gostaria que o senhor explicasse qual é a configuração atual na zona oeste do Rio de Janeiro, tanto da questão dos grupos criminosos que estão relacionados ao tráfico de drogas, quanto aos próprios grupos milicianos.
José Cláudio Souza Alves — Parece-me que há uma expansão miliciana muito consolidada, mas, desde a morte do Ecko em junho de 2021, essa estrutura miliciana, que sempre foi muito ampla, começa a enfrentar fragmentações e disputas internas. Esse é um cenário que vem desde essa época e intensificou.
Inicialmente, tinha a disputa do Tandera, que era uma das lideranças anteriores, com o Zinho, que é o irmão do Ecko, que ficou como uma das lideranças. Esse conflito durou até o final do ano passado, quando o Tandera, de certa forma, saiu de cena. Parecia que o Zinho ia ter essa hegemonia, só que se inicia um processo de fragmentação no próprio grupo do Zinho.
Isso provocou mais conflitos ainda entre esses grupos, e hoje tem aí uns três, não saberia dizer quantos, mas em Seropédica, na região do quilômetro 32, que é Nova Iguaçu, tem a liderança do Tauã, popularmente conhecido como Tubarão, também tem o Nanã, que é outra liderança que rompeu com o Zinho, e o Juninho Varão, que seria uma terceira ruptura dentro do grupo do Zinho, ou seja, parece que se inicia um processo de autonomização de vários grupos milicianos dentro daquele grupo que seria o maior, que dominava todo esse cenário.
Ele vai enfrentar disputas internas e com isso o Zinho faz um movimento pouco comum de aproximação com o Comando Vermelho. Nós não temos relatos sobre isso anteriormente, normalmente o Comando Vermelho é um grupo de muito confronto com milícias. Rola essa aproximação do grupo do Zinho, e com isso ele faz uma estratégia de se proteger contra essas fragmentações que estavam surgindo.
Esses atos que levaram a um incêndio de ônibus, de trem e de estação de trem também, mais cedo neste mês, tem muito a ver talvez com essa estratégia de aproximação com o Comando Vermelho porque esse tipo de prática é muito comum dentro da estrutura do Comando Vermelho, nas relações que eles estabelecem com áreas atingidas por operações policiais e mortes. Eu acho que tem aí uma aproximação desse universo entre a milícia e o Comando Vermelho.
O Terceiro Comando faz uma disputa muito intensa com a milícia no quilômetro 32 e essa disputa continua, apesar de a milícia dominar lá, mas tem ainda uma espécie de foco da atuação do Terceiro Comando.
Na área da Estrada de Madureira, o Grão Pará, que é uma comunidade ali, hoje está sob o domínio do Comando Vermelho. Ele retoma essa localidade já no final de 2022. Foi tomada e permanece na mão do Comando Vermelho.
Em Seropédica, tem áreas que o Comando Vermelho tenta retomar, mas não consegue e isso produz conflitos e mortes de baixa intensidade, mas existem esses conflitos e essas mortes entre milicianos e membros do Comando Vermelho.
Outras áreas da Zona Oeste podem estar vivenciando mais uma aproximação do que um confronto com o Comando Vermelho. Então essa aproximação da milícia com o Comando Vermelho se dá mais nesta região onde a milícia é mais forte, como a gente viu na semana passada em Três Pontes, Manguariba, Cosmos, Paciência. Essa região é uma região de maior predominância de força do Zinho.
Lá a relação de aliança com o Comando Vermelho existe. Em outras áreas onde a milícia não é tão forte, não consegue se sustentar tão facilmente, tem uma realidade de conflitos de baixa intensidade, mas que vai produzindo mortos ao longo do tempo. Como é o caso de Seropédica e também em algumas regiões da Estrada de Madureira. Sendo que na Estrada de Madureira tem a consolidação hoje da retomada do Grão-Pará pelo Comando Vermelho.
Talvez eu não domine tanto outras regiões onde há a presença da milícia e do Comando Vermelho. Eu não consigo ainda ter totalmente essa noção de quais são as outras áreas que aparecem mais nessa disputa.
E o Terceiro Comando Puro mantém uma disputa já de muito tempo, eu acho que mais de 15 anos por aí, que tem uma disputa lá no quilômetro 32 entre Terceiro Comando Puro e milícia. Isso já é uma guerra de longa duração.
Ali produz muitos mortos, muita gente desaparecida naqueles rios. Isso é muito comum naquela área como um todo. É isso um pouco que eu sei, mas precisava, como é muito ampla essa região, eu acho que tem uma liderança miliciana que surge na Estrada de Madureira depois ali do Grão-Pará.
Eu não sei, talvez seja a linha área que o tal do Juninho Varão domina mais, enquanto o tal Juan fica com esse eixo do 32 e de Seropédica. Eu não sei direito onde ficou Nanã, teria que buscar informação sobre isso. São os outros grupos milicianos que se fragmentaram com o Zinho. Esse é um cenário que mais ou menos eu conheço.
Ponte — O Ecko e o Zinho são pessoas que não são das Forças de Segurança Pública, eles vieram do tráfico de drogas. Como é que a gente categoriza agora a questão da conceituação de milícia? Continuam sendo milicianos? A configuração mudou?
José Cláudio Souza Alves — A estrutura de segurança pública resolveu criar um conceito chamado de “narcomilícia”. Esse conceito, a meu ver, desde que eles começaram a usar isso, mais intensamente desde outubro de 2020, quando eles mataram 5 pessoas em Nova Iguaçu, 12 em Itaguaí, e começaram a propagar esse conceito, principalmente o Allan Turnowski, que era na época o secretário de Polícia Civil.
Desde o início, eu não reconheci esse conceito e acho que ele é uma utilização política para isentar a estrutura policial do seu envolvimento com a estrutura miliciana. O que acho é que existe hoje uma parceria, onde a estrutura civil, armada, a estrutura que tem a sua origem muitas vezes no tráfico de drogas, principalmente no Terceiro Comando Puro, vem se ampliando no cenário miliciano.
Com certeza o Zinho não é um policial. No entanto, a estrutura estatal armada, na estrutura de dentro da segurança pública, os grupos armados e estatais vão estabelecer uma parceria.
Eles ficam numa espécie de baixo perfil, se protegem com essa estratégia e projetam a estrutura civil armada, não estatal, que é o caso do grupo do Zinho, dos demais grupos que vão ganhar poder, claro, vão se desenvolver nesse cenário. Eles atuam no chão da rua, estão nos negócios, estão ampliando, só que eles sempre vão depender do suporte, do apoio que a estrutura estatal dá, senão não teriam essa estrutura toda funcionando. Isso é muito nítido.
Se houvesse a informação e processo de não de confronto, de inteligência e de busca de paradeiro e de prisão… Assassinato não resolve, assassinato é o que é feito já há muito tempo, e exatamente é isso que a estrutura policial faz e não resolve nunca o problema, porque após cada assassinato você tem a retomada das lideranças por parte dessa estrutura miliciana, eles vão reconfigurar novos líderes e assim vai seguindo.
Sempre se seleciona um novo líder, um líder seguinte para você matar, e nesse argumento de matar, eliminar, neutralizar, seja lá que palavras queiram usar para isso, nada mais é do que a estratégia que já vem sendo usada, não só com a milícia, mas também com grupos do tráfico de drogas. Essa sempre foi a grande estratégia, a grande cortina de fumaça, isso dá mídia, a população adora isso. A população que falo são as pessoas que veem a lógica do “bandido bom é bandido morto” como grande solução que sempre foi construída ao longo do tempo.
No Rio de Janeiro, se não me engano, desde que estudo isso, até o final dos anos 60, os grupos de extermínio trouxeram esse projeto, essa plataforma de” bandido bom é bandido morto”, as milícias dão continuidade a isso. Contudo, esse é o grande fator de disfarce de tudo isso, de apagamento e com esse sangue todo derramado, essas operações das mortes-lideranças, esse clamor na mídia, todas essas configurações de histórias dos bandidos, dos milicianos, você oculta as digitais as impressões, a participação, o envolvimento direto da estrutura estatal nisso tudo.
Essa estrutura miliciana tem hoje uma composição, uma configuração que dá força para os civis. Essa dinâmica civil é muito veloz e fragmenta vários grupos que agora interagem entre si, ora de forma aliada, ora em forma de disputas, que é o que nós vemos mais intensamente agora. Por outro lado, essa parceria civil permite você ocultar de uma forma mais eficiente o envolvimento da estrutura estatal, porque você vai ter o discurso da “narcomilícia”.
Eles vêm fazendo há algum tempo e muita gente propaga e divulga isso. A estrutura miliciana comporta essa complexidade de tal maneira que em 2020 você teve esses 17 mortos, assassinados numa operação conjunta da Polícia Rodoviária Federal e Polícia Civil e não houve essa resposta como foi agora na morte do tal Faustão, sobrinho do Zinho.
Isso foi absolvido naquela época como, digamos assim, o preço a ser pago nessa estrutura toda, e parece que agora esses eventos dizem que eles não estão dispostos a continuar pagando esse preço e adotaram uma estratégia muito próxima do que o Comando Vermelho sempre faz, de confronto, de exposição da fragilidade do território que eles controlam.
Tudo isso mostra que se complexificou nessa relação miliciana, mas não que seja simplesmente uma narcomilícia, como está sendo propagado. Isso moveu uma grande jogada político-midiática nesse grupo que está no poder, aí você tem todo mundo envolvido, Cláudio Castro, o atual chefe da Secretaria de Polícia Civil, Marcos Amin, todos esses que fazem o discurso de que matam, arrebentam, que vão resolver, que ninguém pode se contrapor ao poderio do Estado, esses são os caras que estão montando esse cenário, eles ganham muito com isso.
Por que eles ganham muito com isso? A cada líder desses que é morto, se estabelecem novas negociações nesse território. Que negociações são essas? É quanto que o território vai repassar para polícia, quantos votos se obtém pelo controle territorial, qual a estrutura de poder que vai agora se manter ali, com quem ela vai se manter, de que forma a estrutura dos grupos armados estatais vão ter presença e vão ter ganhos com isso, os políticos locais todos envolvidos, principalmente em um período pré-eleitoral como nós estamos, porque as eleições do ano que vem se aproximam muito velozmente.
Toda essa disputa tem a ver com esse cenário político, com os R$ 4,5 bilhões que o senhor Cláudio Castro enviou para a Assembleia Legislativa, para os deputados estaduais decidirem onde vão usar essa verba, uma verba que vem de fundos especiais que não foi utilizada dentro das secretarias que deveriam utilizar em políticas públicas. Eles não usaram e esse dinheiro agora sobrou num imenso fundo, e ele [Castro] muito habilmente está jogando isso como grande moeda para esses deputados estaduais pegarem, utilizarem nas suas bases e se comprometerem com as eleições municipais que decidem, logo em seguida vão decidir as eleições estaduais e federais.
Esse é o grande cenário em disputa no Rio de Janeiro, que não é só o Rio, isso é Brasil, é algo em dimensões mais amplas. O governo Lula vem para cá com o Flávio Dino, faz uma cena, ele não quer sujar as mãos de sangue, quer ficar numa posição confortável. Por outro lado, ele não pode simplesmente ignorar, então fazem uma cena, trazem homens das forças nacionais, trazem Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, fazem operações em portos, rodovias, aeroportos, distante desse lugar de conflitos mais aberto, não querem se envolver tanto e não sabem o que fazer direto com isso. Ficam numa posição meio intermediária, tentando dizer que fazem alguma coisa, mas não se imiscuindo diretamente no conflito e nas contradições. Esse é o cenário que observo.
Ponte — Qual o impacto da ida da Força Nacional ao Rio de Janeiro e como isso se relaciona com o destaque dado ao assassinato dos médicos no estado?
José Cláudio Souza Alves — O assassinato dos médicos, como ouviu todo mundo, sempre com aquela história, os inocentes. A meu ver, todos os envolvidos, inocentes ou não inocentes, e eu não estou aqui para avaliar quem é inocente e quem não é, porque nós sabemos serem dezenas, centenas, milhares de mortos que vão sendo gerados ao longo do tempo, possam ser eles envolvidos ou não diretamente com os grupos armados.
Todos são vítimas e, ao mesmo tempo, todos estão envolvidos nesse confronto aberto: estrutura policial, grupos armados não estatais, estatais. Enfim, isso é um cenário de guerra. Gaza fica pequena para nós, mas todo mundo quer falar de Gaza. Vamos falar da guerra lá na Palestina, mas a nossa guerra é uma guerra de dimensões desse tipo. Se você está no lugar errado, na hora errada e você não conhece o lugar, você vai ser morto.
Se você também faz parte dessa guerra, também vai ser morto. Se é policial, miliciano, membro de grupo extermínio, traficante, vai morrer também. No fundo, nós estamos falando de uma situação duradoura de atuação de grupos armados que vão produzir sofrimento generalizado.
Os médicos morrem nesse cenário. Causa comoção, porque é um endereço nobre, é um endereço na zona oeste rica, Barra da Tijuca. São pessoas de trajetória social que infelizmente morreram como todos esses envolvidos morrem.
Eu acho uma estupidez essa matança toda entre nós, mas todo mundo quer falar de quem é inocente, enfim, vivemos esse discurso. Para justificar a morte do inocente, justifica a morte dos que estão envolvidos. É o “bandido bom, bandido morto”. Por trás do discurso do inocente está o discurso do “bandido bom é bandido morto”, [os discursos] estão acoplados, é assim que funciona o Rio de Janeiro.
Nesse discurso todo, vêm as forças nacionais dizendo que vão resolver, vão agora interceptar drogas, vão interceptar armas, vão usar inteligência. Isso é uma piada, porque não é tão simples assim, é muito mais complexo. Tem uma dimensão política que eles não querem abordar, dizendo que é meramente uma questão técnica. Todo mundo agora fala em inteligência, vão usar agora especialistas, vão fazer monitoramento de evolução patrimonial, só que tudo isso tem uma dimensão política muito forte, muito intensa, que é a chave.
Esse pessoal vem para cá e não vai fazer esse discurso, é claro. O governo Lula não quer conflito, não quer tocar nas tensões com os grupos da direita, extrema-direita. Você tem, por exemplo, bem antes de tudo isso, lá na Baixada Santista, a polícia do senhor Tarcísio [de Freitas, do Republicanos] lá, do governador de São Paulo, faz 40 dias de operação e matam 28 pessoas. O que é feito disso? Nada.
Em 2007, primeiro governo Lula, houve a chacina do Pan-Americano, na gestão do Sérgio Cabral, 1.500 homens da estrutura policial mataram 19 pessoas no Complexo do Alemão, que ficou conhecido como a Chacina do Pan. Mais uma vez a velha história de matar gente, fazer confronto, como se isso fosse resolver alguma coisa, não resolve.
Pelo menos o então ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, mandou uma comissão de legistas analisar os cadáveres e identificou que 73% das perfurações nos corpos estavam localizadas na cabeça e nas costas, o que indicava que teriam sido execuções sumárias.
Dessa vez o Silvio Almeida, ministro de Direitos Humanos, não fez absolutamente nada. Por quê? Porque é um governo que não tem nenhum interesse em arrumar confrontos com a base parlamentar de São Paulo controlada pelo Tarcísio.
O cenário político federal faz com que a estrutura política hoje não funcione em busca de soluções para esse tipo de situação. Resolveu na época do Paulo Vannuchi, 2007, o problema? Não. Tinha o lado? Tinha. A OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] fez alguma coisa? Não fez. Por quê? A OAB rachou e o presidente da OAB não fez absolutamente nada e o diretor da área de Direitos Humanos da OAB acabou saindo. Dessa vez você não teve nada, nem isso, nem essa movimentação, não houve nada lá em São Paulo. Aqui no Rio isso também não vai ocorrer.
Mais uma vez, é o mesmo jogo de interesse. Você não tem interesse em confrontar a estrutura política eleitoral do Cláudio Castro e do grupo de parlamentares que estão envolvidos com ele, porque há o interesse em aprovações no Congresso, de projetos do governo Lula, logo ele faz esse… Digamos que vivemos um grande arrego nacional. É o grande arrego nacional. Você vai aceitar toda essa estrutura que está.
Na Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], onde os militares estão e não saíram, a desgraça dos indígenas continua. A expansão armamentista não vai ser resolvida tão facilmente, porque há um derrame de armas no país. Essas armas vão para tudo quanto é lado, vai para a criança em escola, vai para o inferno, para tudo quanto é lugar. Você tem arma e as mortes continuam ocorrendo, você não vai resolver isso. Você não tem como resolver e não quer resolver, porque mais uma vez vai se depara com essa estrutura de direita e extrema-direita com interesses colocados nisso tudo. Nós vivemos a fase do arrego nacional, é assim que tenho observado. É um cenário muito ruim para todos nós que lidamos com essa situação.
Ponte — Especialistas ouvidos pela Ponte sobre os planos recentes do governo federal a respeito do combate às organizações criminosas definiram as ações como genéricas. O repasse de verba ocorreu sem que se considerasse a letalidade policial como condicionante. Como o senhor avalia essa estratégia?
José Cláudio Souza Alves — Ele [Flávio Dino] deu declarações de que os especialistas não sabem nada e quem sabe mesmo é a polícia. O discurso do Dino é absolutamente institucional, ele quer defender a instituição policial. Ele não quer dizer, não quer assumir, não tem o menor interesse em fazer isso.
Ele fala da Constituição, é quase um jurista, muito bom em termos de discurso. Com todo esse arranjo discursivo, de práticas e ações, ele não assume que o grande problema, de fato, é a estrutura policial.
Ela tem um conjunto de problemas não resolvidos, pelo contrário, a polícia é o grande problema por conta do envolvimento dela com essas estruturas todas armadas, não estatais e estatais. Elas fazem parte da estrutura estatal e se articulam com estruturas não estatais. Mesmo o Exército também está na mesma situação, com grandes problemas que eles não querem nem saber de se envolver.
Quando falam em intervenção militar, eles já estão fugindo, correndo, porque estão apavorados com o próprio universo deles mesmos, lá nas confusões todas que eles possuem de roubo de arma, de apoio a golpe no país.
O cenário é de grande comprometimento dessa estrutura e que, por outro lado, revela como eles são bem sucedidos, porque mesmo com todo esse cenário adverso, eles se projetam politicamente. Se você for ver lá a bancada da bala, os majores, comandantes, membros do Exército, todos eles estão se lançando candidatos. Estão se elegendo para vários cargos eletivos com a plataforma do “bandido bom é bandido morto”, do endurecimento. Eles têm trajetórias políticas agora e são bem sucedidos, apesar do caos todo, eles avançam nessa plataforma.
Você não tem contraposição de projeto para isso. Vamos fazer o que com a estrutura policial? Ah, você vai botar agora a Polícia Federal para investigar cada caso de homicídio aqui no Rio de Janeiro? Isso é loucura, isso é piada. Você não vai resolver confederalizando alguma coisa que você teria que fazer.
“Ah, mas você não pode intervir no estado, nem no Tarcísio, nem no Castro”. Bom, então tem que fazer um grande debate sobre isso, ou fazer modificações na estrutura da segurança pública como um todo, no país como um todo. Ou você vai fazer uma lógica de políticas públicas relacionadas à questão da segurança para poder afetar a questão da segurança como um todo.
Você vai fazer políticas sociais? “Ah, não tem dinheiro”, você faz aquela piada lá do arcabouço fiscal, só alongou dívidas, manteve o teto, alongou o pagamento de dívidas e já está tudo resolvido. Isso não está resolvido, tem que fazer política pública, tem que ter gastos nessas áreas de políticas sociais para essa população que é, literalmente, a massa que vive morrendo na mão desses confrontos todos, que está absolutamente abandonada, desamparada.
Você não vai usar recursos públicos para fazer políticas públicas para essa população? Não, não pode, porque no nosso discursinho neoliberal, que está na mídia como um todo, a mídia toda repete o mantra que você tem que ter teto de gastos, o inferno, essa desgraça que todo mundo fala, você não pode fazer nada.
A desgraça vai continuar, os grupos armados vão crescer. O cenário é de crescimento de presença de pessoas nos grupos armados, não tem saída. O Bolsonaro sabia disso e, sabendo disso, degradou toda a estrutura de políticas públicas para que os grupos armados cada vez se ampliassem mais e o “bandido bom é o bandido morto” crescesse cada vez mais. Ele foi para o cenário do inferno, da guerra aqui dentro.
O Bolsonaro você podia chamar de fascista, torturador, um boçal, mas o Lulinha Paz e Amor não é. Você não pode falar nada, mas o cenário continua dado, ele não tem solução.
Discursivamente se agrada aos banqueiros e fala “nós não vamos gastar mais do que o nosso teto fiscal, vamos pagar vocês todos, o rentismo de todos, os títulos da dívida pública”, o mercado financeiro vai continuar maravilhoso, os bancos felizes da vida e nós vamos continuar no país agradável.
Essa espécie de grande concerto nacional em torno dos que têm e dos miseráveis, nós vamos manter. É o Lula 3.0 que vem mantendo a mesma dinâmica, só que é num cenário muito mais degradado, muito piorado, muito rebaixado, muito violento e muito sofrível para a população como um todo.
Esse é o cenário com o qual eu me deparo e não vejo muitas respostas para isso. O campo da segurança pública é absolutamente minado. A taxa de gás é pouco. Você está no meio de um massacre, você não sabe para onde ir.
Isso não é só o Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro é a casquinha do iceberg, a pontinha do iceberg. Se você for olhar o país como um todo, todas as dimensões da violência — Nordeste, Bahia, Pará —todas essas dimensões, todas as violências que explodem, elas estão crescendo, se ampliando. É mais gente morta e sofrendo. É o país como um todo. O Rio é uma espécie de vitrine e serve para isso também, já historicamente.
Ponte — Como o senhor avalia a mudança recente no comando na secretaria da Polícia Civil do Rio? No começo de outubro o governador Castro anunciou Marcus Amim como novo gestor em detrimento a José Renato Torres do Nascimento, que tinha assumido como secretário há 22 dias antes da exoneração. Uma mudança na lei orgânica da Polícia Civil foi chancelada pela Assembleia do Rio de Janeiro para chancelar essa alternância.
José Cláudio Souza Alves — Mudaram a lei orgânica das polícias no Rio de Janeiro para poder esse cara [Marcus Amim] entrar. Isso é a grande jogada do Cláudio Castro e da Assembleia Legislativa, entre eles, para estruturar as dimensões do poder que continua.
No pano de fundo da escolha do Marcos Amin, desse youtuber, influencer, não sei direito, ele não tinha 15 anos de delegado, só tinha 12. Mudaram a lei orgânica das polícias, que exigia 15 para você assumir o mais alto posto dentro da chefia dentro do cargo da Polícia Civil, e mudam a legislação para ele entrar. Por quê? Ele foi indicado por Márcio Canella. Quem é Márcio Canella? Deputado estadual com a maior votação do estado do Rio de Janeiro. De onde ele é? Belford Roxo. Ele divide com Wagner Carneiro, que é o conhecido Waguinho, o esposo da ex-ministra do Turismo [Daniela Carneiro]. Eles dois dividem a cidade.
Dividem a cidade como? Com uma base de estrutura miliciana. A mídia toda produzia informações sobre isso, do comprometimento do Vaguinho com grupos como o Grupo do Jura. O próprio Márcio Canella tem relações com o Jura, que é um miliciano histórico ali do Norte e do Iguaçu, daquela região como um todo. Outros grupos milicianos foram citados como estando próximos a eles, participando de campanhas eleitorais, eles têm envolvimento com essa estrutura miliciana. Logo, a indicação do Marcos Amin pelo Márcio Canella, lá de Belford Roxo, é nitidamente uma manifestação explícita de que a milícia tem avançado nesse cenário: indica os seus nomes e os seus nomes são aceitos.
“Ah, mas o discurso dele é que ‘bandido bom é bandido morto’. Ele diz que para matar todo mundo se contrapõe a ele”. Quem é esse todo mundo? Quem é que eles matam? Quem é esse miliciano pé de chumbo que é morto? Essas figuras são mortas ao longo do tempo, como eu falei, essa é a grande estratégia, vai eliminar pessoas, matar pessoas para que tudo permaneça como está. É preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está. Esse é o chavão da estrutura política no Rio de Janeiro.
No bojo da escolha, além de ser uma indicação dessa estrutura miliciana que segue, você tem a grana que o próprio Castro está negociando com a Assembleia Legislativa. Ele envia uma mensagem para a Assembleia Legislativa de R$ 4,5 bilhões dos fundos especiais, grana que não foi utilizada.
No fundo, os parlamentares da Assembleia Legislativa vão decidir para onde vai esse dinheiro agora. Essa é uma grande jogada na véspera de eleição, porque você vai distribuir para essa base dos deputados a grana que vai irrigar toda a campanha eleitoral e as bases eleitorais deles que, lá na frente, vão retornar para o governo do Estado.
Então, na verdade, é o Castro pavimentando a permanência dessa estrutura de poder no Rio de Janeiro, fortalecendo esses grupos, e, como eu disse, são grupos relacionados à estrutura miliciana. Esse é o cenário que está aqui no Rio de Janeiro desde a semana passada. Isso está rolando mais explicitamente.
Ponte — Tendo essa configuração do Estado com os grupos armados, de que maneira essa “aliança” pode ser quebrada?
José Cláudio Souza Alves — Você não consegue quebrar isso. Isso não é tão simples assim. Você não tem projeto. Primeiro teria que ter pessoas decididas a fazer isso e você não tem no Rio de Janeiro.
Não se constitui, de forma alguma, qualquer tipo de alternativa. O PT está apoiando matador aqui na Baixada. Gente que vem dessa estrutura de grupos armados aqui da Baixada estão sendo apoiados. Gente antiga aqui está sendo apoiada pela estrutura petista. Não tem nenhum grupo político discutindo isso, montando plataforma política com isso. Nem explicitamente, nem não explicitamente.
Praticamente, não há essa discussão, não há essa vontade política. O Rio é um medo. É um medo e, ao mesmo tempo, um comprometimento. Você começa a ter interesses nisso, você começa a ganhar. Na verdade, milícia é ganho. Milícia é faturar alto, faturar votos, faturar grana. Você controla territórios. A milícia é boa para todo mundo. A milícia virou um grande favorecimento, um grande benefício para qualquer um que se aproxima da milícia.
Ela dá, te dá isso. Vai dar para o pastor, para a associação de moradores, para o clube de futebol, para a prefeitura. Todas as prefeituras contratam empresas ligadas a milicianos para fazer obras.
As prefeituras têm, na Secretaria de Meio Ambiente, relações com milicianos para cobrar taxas. Seja quem for que vier instaurar negócios no seu território, a milícia vai levar o dela. Vai levar a taxação dela naquele empreendimento. Seja qual for o imóvel que está sendo vendido, a milícia sabe e vai cobrar a taxa dela. Ela penetrou todas as estruturas da sociedade. É uma estrutura totalitária no Rio de Janeiro. Como você vai quebrar isso?
Quem poderia fazer alguma coisa seria quem está fora desse domínio aqui, mas quem está fora desse domínio, como eu já falei, tem interesse nesse domínio que está aqui porque quer também ganhar alguma coisa com ele. Não é uma grande contradição?
Nós não temos saída. Não vejo possibilidade de modificar isso tão cedo. Isso só se aprofunda. A gente está piorando. Eu fico aqui no meio de tudo isso sem saber o que fazer. Porque, como eu domino esse cenário todo, conheço bem, cada vez eu fico mais acuado, sem saber o que, de fato, posso fazer para alterar isso.
Eu conheço gente, luto, faço movimento social, sou professor, faço debate, mas isso não significa nada. Eu só estou vivo porque eu sou insignificante. Eu só fico falando, os jornalistas devem rir muito de mim. Ainda bem que eu sou insignificante, porque ainda estou vivo.
Se eu tivesse algum poder de fazer alguma coisa, eu poderia estar morto há muito tempo. A Marielle rodou em função, talvez, dessa ameaça que ela, de alguma forma, representou para eles. Esse cenário sempre é um cenário muito ruim, difícil.